Ulisses Levy Silvério dos Reis

O governo Bolsonaro promoveu muitas modificações sobre o funcionamento do aparato estatal brasileiro nesse seu ciclo quadrienal prestes a ser finalizado. Uma das principais mudanças desta dinâmica que teve repercussão sobre a vida social brasileira é o papel dos militares na política e na burocracia civil. De atores antes considerados relativamente <a href="https://www.google.com.br/books/edition/Frágil_democracia/i15yKbdWX9wC?hl=pt-BR&amp;gbpv=0">ocultos</a>, eles agora surgem em todos os lugares da máquina pública ocupando postos do primeiro ao último escalão.
Seja nos ministérios ou em órgãos na ponta, <a href="https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml">milhares</a> de militares (da ativa ou reformados) ganharam proeminência e lugar de destaque nas atividades administrativas. Atualmente, é provável que hoje a classe seja mais conhecida pelas atividades que desempenham em substituição aos civis que por exercícios da caserna.
Em consonância com o protagonismo que atribuiu aos militares, Bolsonaro considera que é papel deles ditar os rumos do país e não perde a oportunidade de <a href="https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/03/31/bolsonaro-obras-ditadura-militar.htm">elogiar</a> o golpe militar de 31 de março de 1964 e suas consequências para o Brasil. Como estratégia para apresentar a sua interpretação desse episódio da história nacional, ele <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/ordem-para-celebrar-golpe-e-inedita-nos-ultimos-20-anos-e-incomoda-tambem-militares.shtml">determinou</a>, no início do seu governo, que o Ministério da Defesa passasse, anualmente, a publicar ordens do dia enaltecendo a intervenção militar feita na democracia brasileira que levou à destituição do ex-presidente João Goulart.
Em 2020, a Justiça Federal brasileira até impediu a veiculação das notas, mas o ministro Dias Toffoli, então na presidência do Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>), <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/toffoli-derruba-decisao-que-ordenava-remocao-de-texto-do-ministerio-da-defesa-05052020">garantiu</a> a sua veiculação. Sucessiva e anualmente, os ex-ministros Fernando Azevedo e Silva (2019 e 2020) e Walter Souza Braga Netto (2021 e 2022), ambos generais da reserva, apresentaram as versões oficiais do Ministério da Defesa sobre os fatos ocorridos décadas atrás.
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<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/eleicoes/jair-bolsonaro-a-trajetoria-militar-e-politica-do-presidente-que-busca-a-reeleicao-13052022">Jair Bolsonaro, a trajetória militar e política do presidente que busca a reeleição</a></li>
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Considerando que, mesmo com muitos <a href="https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/estudo-da-universidade-de-gotemburgo-inclui-brasil-entre-paises-com-declinio-democratico/">problemas</a>, o Brasil vive uma democracia há mais de três décadas, já teve uma Comissão Nacional da Verdade (CNV) e teve que se deparar com os crimes do passado autoritário tanto em julgamentos do <a href="https://www.conjur.com.br/2010-abr-29/julgamento-acao-revisao-lei-anistia-empatado">STF</a> quanto da <a href="https://pp.nexojornal.com.br/linha-do-tempo/2021/As-decisões-da-Corte-Interamericana-de-Direitos-Humanos-sobre-o-Brasil">Corte Interamericana de Direitos Humanos</a>, talvez não fosse tão ingênuo esperar que alguma consideração sobre as vítimas do período ou acerca das necessárias reformas institucionais fossem reverberadas nos aludidos documentos. Ao que tudo indica, para as Forças Armadas, a resposta é negativa. Uma análise das expressões constantes nos quatro documentos citados ajuda a compreender qual o tipo de discurso neles vocalizado <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Ao se calcular a frequência de repetição das mesmas expressões ao longo dos quatro textos, chega-se às seguintes imagens:
Ordens do dia (2019-2022)
[caption id="attachment_371741" align="aligncenter" width="1180"]<img class="wp-image-371741 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/05/captura-de-tela-2022-05-23-as-17-53-45.png" alt="" width="1180" height="694" /> Fonte: Elaboração por Ulisses Levy Silvério dos Reis[/caption]
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<img class="aligncenter wp-image-371742 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/05/captura-de-tela-2022-05-23-as-17-56-07.png" alt="" width="691" height="711" />
A visualização cruzada do gráfico de barras e da nuvem de palavras demonstra que algumas das expressões mais destacadas pelo Ministério da Defesa nas ordens do dia são, por exemplo, “Brasil”, “guerra”, “democracia”, “forças”, “armadas”, “ideologias”, “ameaças”, “conflitos” e “totalitária”. A nuvem contém mais termos porque nela é possível inserir maior número de elementos visuais, mas o gráfico de barras dá uma melhor dimensão da diferença na frequência com que expressões como “guerra” e “forças” surgem no desenvolvimento discursivo elaborado como apologia ao ocorrido em 1964.
Outra forma interessante de analisar graficamente esse corpus consiste na utilização de um grafo que correlacione as principais expressões utilizadas em pares nos documentos:
<img class="aligncenter wp-image-371743 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/05/captura-de-tela-2022-05-23-as-17-56-34.png" alt="" width="1306" height="823" />
A vantagem de correlacionar as palavras em duplas é enxergar que alguns termos-padrão utilizados habitualmente na linguagem dos militares brasileiros fazem-se presentes nas ordens do dia. Expressões como “ideologias totalitárias”, “intentona comunista”, “guerra fria”, “missão constitucional”, “tempos difíceis”, “espectro ideológico” e “ameaça real”, por exemplo, foram (e ainda são) rotineiramente empregadas para justificar a tutela da caserna sobre a sociedade brasileira e a ampliação de restrições às liberdades civis (no passado, inclusive, com o <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm">fechamento</a> do regime democrático).
Não há expressões de destaque no documento a respeito das milhares de <a href="https://memoriasdaditadura.org.br/memorial-mortos-e-desaparecidos/">vítimas</a> das atrocidades ocorridas entre 1964-1985, seja a título de execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados ou submissões a torturas. Os militares atuais, representados pelas ordens do dia de 2019-2022 comemorativas do golpe de 1964, parecem concordar com as versões dos fatos apresentadas por seus antecessores.
Embora o material colhido para esta rápida análise concentre-se sobre documentos produzidos por militares, as suas repercussões se dão também sobre as autoridades civis. Parece evidente que a redemocratização de 1988 foi incapaz de modificar a forma como os militares brasileiros enxergam e leem o mundo. Não é coincidência, por exemplo, o persistente e indefinido <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/justica-direito-25022021">descumprimento</a> das recomendações da CNV quase uma década após a finalização dos seus trabalhos. Quase 60 anos após o golpe que manteve inativa a democracia brasileira por mais de 20 anos, a gramática por meio da qual os militares manifestam para a sociedade as suas preocupações com o Brasil e o mundo é a mesma de então. Tudo indica que os currículos militares precisam de atualização.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Como os textos das ordens são curtos e compõem, cada um, uma lauda, optou-se, para fins de processamento e análise no software R, por agregá-los em apenas um documento. O acesso ao banco de dados e aos códigos reprodutíveis das imagens está disponível em <a href="https://github.com/ulisseslsreis/ordens_do_dia_bolsonaro1">https://github.com/ulisseslsreis/ordens_do_dia_bolsonaro1</a>. Acesso em: 16 mai. 2022.

militares

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JOTA

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