Doris de Miranda Coutinho

Uma das mais relevantes competências que fora confiada constitucionalmente ao Tribunal de Contas da União consiste, indubitavelmente, na apreciação das contas prestadas anualmente pelo Presidente da República por intermédio do Parecer Prévio. Tendo em vista a possibilidade de prolação de Parecer pela rejeição (hipótese que não ocorria desde 1937) das contas presidenciais do exercício de 2014, surgiram vários questionamentos quanto aos rumos da decisão definitiva a ser tomada pelo Poder Legislativo e seus desdobramentos.
Com efeito, não se olvida da importância que tem este documento à consolidação do regime democrático e da transparência financeira, subsidiando tecnicamente o Congresso Nacional no julgamento político das contas prestadas. No caso da reprovação, urge a pergunta: seria cabível algum recurso em face do Parecer Prévio com vistas à reapreciação da matéria pela Corte de Contas?
Para que seja respondida tal questão, impende se realizar uma rápida incursão acerca da natureza jurídica julgamento das contas anuais do chefe do Poder Executivo.
Foi um longo tempo que se passou até o reconhecimento do uso do termo “processo”, no sentido de uma correlação de atos prospectivos com vistas ao alcance de um ato final de cunho decisório, fora da atividade do Poder Judiciário, no exercício da função jurisdicional, aceitando-se a figura do “processo administrativo”.
Consequentemente, em abandono a tradicional cultura da administração unilateral em prol de uma bilateral, sobrelevou-se, dentro deste conceito processual, a necessidade de participação dos interessados no rito formador do ato de decisão, ou seja, admitiu-se a imprescindibilidade de contraditório dentro do processo administrativo.
No estado democrático de direito, com efeito, avilta ressaltar que o Estado deve obedecer ao princípio da legalidade objetiva e garantir, sobretudo, os direitos e garantias encartados na Constituição Federal. Dentre eles encontra-se um dos pilares do entendimento do processo como um todo, qual seja, o devido processo legal de cuja substância decorre o princípio do contraditório e da ampla defesa, estabelecendo-se que aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, serão assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art.5 º, LV da CF).
O Tribunal de Contas, por sua vez, quando emite o Parecer Prévio, exerce uma atividade tipicamente administrativa de auxilio e constrói um dos elementos mais importantes do processo de julgamento das contas anuais do chefe do Poder Executivo, não obstante a decisão final acerca das contas pertença ao Parlamento. Assim, é possível perceber que este Parecer é parte integrante de um processo administrativo e tem extrema relevância na sua condução.
Com efeito, esta relevância decorre não somente da sua obrigatoriedade, mas também do fato de exigir, para que não prevaleça, quórum qualificado do Legislativo, conforme disposição expressa para os municípios no art. 31, §2º da Constituição, de forma que, caso se decida contrariamente ao Parecer, surge a inversão do ônus argumentativo ao Parlamento, para fundamentadamente explicar porque desviou-se da análise técnica. Além disso, o conteúdo do parecer pode ensejar graves consequências ao agente político, como a sua inelegibilidade relativa, por exemplo, consoante prevê o art. 1º, I, “g” da Lei Complementar nº 64/90 (Lei da Inelegibilidade).
Diante deste forte caráter decisório, e considerando que esta peça esta inserida como documento crucial em um contexto “processual” de julgamento de contas, forçoso reconhecer que ele também seja alcançado pela máxima do devido processo legal e, como consequência lógica, do contraditório e da ampla defesa. Este é um postulado de interesse não só do indivíduo que tem as suas contas apreciadas, mas de toda sociedade que espera o cumprimento das garantias contidas na Constituição.
Neste sentido foi que o STF decidiu, em 15/09/1997, ao analisar a apreciação das contas do então governador Miguel Arraes pelo Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco, afirmando que: “a circunstância de o Tribunal de Contas exercer atribuições desinvestidas de caráter deliberativo não exonera essa essencial instituição de controle do dever de observar o direito de defesa e as demais prerrogativas inerentes ao due process of law”.
Com fulcro neste entendimento que o TCU, por seu ministro e relator do processo de análise das contas presidenciais em questão, Augusto Nardes, concedeu, com ineditismo e além dos termos do seu Regimento Interno, o prazo de 30 dias (depois prorrogado) para manifestação da Chefe do Poder Executivo acerca das irregularidades apresentadas no relatório técnico da Corte.
Ocorre que, em havendo a emissão de Parecer Prévio (pela rejeição das contas), também não está expresso na legislação do Tribunal de Contas federal e nem em sua jurisprudência, o cabimento de recurso contra o posicionamento apresentado em plenário a ser enviado ao Congresso Nacional.
Primeiramente, é importante ressaltar que a cláusula constitucional do devido processo legal é um princípio realizável de diversas maneiras e, no que tange a sua derivação do contraditório e da ampla defesa, as implicações não se restringem à possibilidade de apresentação de uma peça de defesa nos autos. Consiste, sobretudo, na oportunidade de esgotar os meios de manifestação e defesa no processo, incluindo-se a produção de provas, vistas, contestação e apresentação de recurso. Todos estes mecanismos são essenciais a uma plena defesa no processo e correspondem ao direito subjetivo de quem está envolvido.
Como dito anteriormente, a emissão de um Parecer Prévio, inobstante seja peça opinativa, pode gerar várias consequências sérias ao prestador das contas, de forma que é extremamente necessário reconhecer-lhe também a possibilidade de interposição de recurso com vistas à reapreciação pelo Tribunal de Contas.
Caso se queira argumentar pela sua impossibilidade face a ausência de previsão legal, salienta-se que esta conclusão decorre diretamente do texto constitucional, de maneira que dispensa disposição em lei, assim como qualquer norma infraconstitucional que impeça o exercício deste direito há de ser declarada inconstitucional.
Numa sociedade que se almeja renovada e democrática é de suma importância que se reconheçam tais direitos, independentemente de “a quem” ou “para quem”.
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Conselheira do Tribunal de Contas do Estados (TCE) de Tocantins e membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Foi procuradora do Ministério Público Especial junto ao TCETO. Cursa doutorado em Direito Constitucional na Faculdad de Derecho da Universidad de Buenos Aires

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JOTA

Esta conclusão decorre diretamente do texto constitucional

Mesmo com parecer prévio pela rejeição das contas, Governo ainda terá direito a recurso

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