Eduardo Borges Espínola Araújo

Com a aproximação da eleição presidencial, começam a ser discutidas as reformas que o país deve promover para escapar da crise. Entre as principais, defende-se a necessidade de alterações no sistema político, econômico, tributário e previdenciário, o que levaria à modificação dos dispositivos constitucionais que tratam da matéria. Entretanto, há quem defenda que a solução seria mesmo transferir tais normas do texto constitucional para as leis ordinárias – um “processo desconstituinte”.
De natureza analítica, a Constituição de 1988 desce até os mínimos detalhes ao garantir as liberdades fundamentais e estipular a organização do Estado, regulamentando sistema de Justiça, a distribuição dos impostos entre os entes federados, a atividade econômica, a política urbana e agrária, a seguridade social, a comunicação social e outras matérias que não estão usualmente detalhadas nos demais textos constitucionais.
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Ao contrário da enxuta constituição dos Estados Unidos, a “Carta Cidadã” foi para além dos princípios políticos para consagrar normas de maior concretude e especificidade a pretexto de fazer-se valer como instrumento de transformação social [1]. Vislumbra-se na riqueza de normas a intenção do legislador constituinte em levar adiante um projeto abrangente de Estado Social, pelo que cuidara dos pormenores da vida em sociedade.
O que em 1988 era admirado como virtuoso caminho ao desenvolvimento é hoje taxado por responsável pelas dificuldades encontradas ao longo da caminhada. O detalhamento e a amplitude do texto constitucional, quando somados às condições formais e materiais de reforma, dificultaria a adoção das medidas indispensáveis à governabilidade. A boa intenção do legislador constituinte, afirma-se, teria conduzido à impotência dos Poderes na administração e na superação da crise.
Eis que, por vezes, sugere-se superar a letargia institucional por meio de procedimentos constitucionais atípicos que prescindem da maioria qualificada exigida pelo artigo 60, § 2º, da Constituição: três quintos dos membros de cada casa legislativa.
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<li>+JOTA:<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/30-anos-crise-e-futuro-da-constituicao-de-1988-03052018"> 30 anos: crise e futuro da Constituição de 1988. Podemos identificar dois desfechos possíveis para a crise constitucional desencadeada em 2016</a></li>
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No calor de julho de 2013, a solução ventilada para promover tais reformas foi convocar uma assembleia constituinte específica. Trata-se de proposta que concilia as estratégias da revisão constitucional, que fortalece o princípio majoritário para enfraquecer o poder de veto de minorias, e da assembleia específica, que atribui as decisões a representantes que não integrariam o Congresso Nacional [2].
Como todas as propostas anteriores, a proposta de uma constituinte exclusiva para 2013 não foi adiante – em boa razão pelas fortes críticas que recebeu da comunidade jurídica, que enxergaram a medida como desnecessária, inconstitucional, perigosa e impossível. Primeiro, a constituinte seria desnecessária porque as reformas poderiam ser realizadas via emenda constitucional. Inconstitucional porque não encontraria respaldo no texto da Constituição. Perigosa porque não existiria garantia de que a constituinte exclusiva não fosse ampliar seu objeto de deliberação e, por fim, impossível porque a teoria do poder constituinte não admitiria assembleia constituinte tematicamente limitada.
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<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/dromocracia-brasileira-e-o-ritmo-da-constituicao-17052018">Dromocracia brasileira e o ritmo da Constituição</a></li>
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Neste ano de 2018, personagens políticos relevantes já passaram a defender a adoção de uma estratégia distinta de reforma. Não seria mais caso para uma constituinte, mas sim para uma “desconstituinte”: uma emenda constitucional cujo mérito seria o de transferir determinadas matérias do texto constitucional para o texto legal, assim simplificando os requisitos formais e materiais para a alteração. O que antes exigiria três quintos em dois turnos passaria a exigir, para a modificação, maioria simples ou absoluta – lei ordinária e lei complementar, respectivamente.
O coordenador do programa econômico de um dos principais presidenciáveis argumenta que artigos que dispõem sobre impostos e vinculam os gastos sejam transferidos para lei complementar, porque “a gestão econômica não pode ficar engessada pela Constituição. O mundo é dinâmico e não dá para administrar gastos e tributos e precisa mexer na Constituição para fazer isso” [3]. Uma desconstitucionalização, afirma Persio Arida, não implicaria modificações nas cláusulas pétreas.
Ao situar a crise que envolve o Supremo Tribunal Federal no contexto da judicialização da política, com o Poder Judiciário agora atendendo os chamados para resolver conflitos políticos, o Ministro aposentado e ex-Presidente do Tribunal Nelson Jobim atribuiu tais dificuldades à extensão do texto: “como há muitos temas constitucionais, toda discussão sobre leis acaba tendo uma referência constitucional” [4].
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<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/longevidade-constitucional-1988-21052018">Longevidade constitucional: o caso da Constituição de 1988</a></li>
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Tal qual a crise econômica, a institucional seria resolvida via desconstituinte a reduzir as competências do Tribunal ao reduzir o âmbito da Constituição. Para tanto, bastaria às matérias até então serem constitucionais serem deslocadas para o ato das disposições de natureza transitória. Dali em diante, em nível infraconstitucional, caberia ao Congresso Nacional discutir exatamente o que seria alterado [5]. O Ministro Nelson Jobim defende a “lipoaspiração” do texto constitucional já por ocasião da revisão de 1993.
Também para Antônio Delfim Netto seria o caso de reduzir a Constituição de 1988, cuja extensão poderia ser explicada pela reação da sociedade brasileira às restrições impostas pelo regime militar. Escrita justamente para não ser interpretada, a Constituição deveria ser reduzida a 25 artigos que cristalizassem a proteção da liberdade individual e a busca da felicidade – “os valores máximos que orientaram sua feitura” [6]. Contudo, diferente de Jobim, Delfim conferiria ao Supremo um papel ativo na interpretação dos princípios em face das condições dos novos tempos.
O mérito da proposta desconstituinte está em fugir da confusão que se estabeleceu entre revisão e constituinte ao jogar dentro das regras de emenda constitucional – mesmo que com o sinal invertido. Ainda assim, três reflexões são necessárias.
Primeiro, de ordem prática, como seria operacionalizada uma desconstituinte? Em 2006, em meio a mais uma discussão sobre constituinte, André Ramos Tavares respondeu essa questão: seriam necessárias uma proposta de emenda e um projeto de lei sobre o mesmo tema. “A complexidade política desse acasalamento o fulmina de imediato” [7]. Sem o rebaixamento da matéria, qualquer iniciativa legislativa ordinária em sentido contrário à norma constitucional será natimorta. Por outro lado, sem a disciplina ordinária do tema, o vazio normativo provocará uma insegurança jurídica sem precedentes.
Segundo, quais as chances de uma desconstituinte acontecer? Se não há consenso acerca do que e de como reformar, por que haveria em torno do que eliminar?
A Constituição Federal de 1988 é recheada de dispositivos que não fazem mais do que entrincheirar interesses corporativos. Ou seja, é bem provável que as partes insatisfeitas com os resultados da emenda levem a indignação ao Supremo a partir da cláusula pétrea da federação, do voto direto, secreto, universal e periódico, da separação entre poderes e dos direitos e garantias individuais – para não cogitar ainda do princípio da vedação do retrocesso social.
Veja-se, por exemplo, a reforma tributária. Desde o primeiro governo democraticamente eleito, correções no modelo tributário são alardeadas por necessárias. Na presidência de Fernando Henrique, quando a discussão da reforma prosperava, o governo abandonou a proposta devido aos superávits primários ancorados no crescimento da receita tributária [8]. De lá para cá, nada mudou: o maior empecilho à obtenção do denominador comum sobre a reforma tributária são os possíveis impactos sobre o federalismo, que é cláusula pétrea, vez que a reforma poderá levar à perda de arrecadação para determinados entes.
Por fim, assim como no caso da assembleia constituinte exclusiva, inexiste a garantia de que a emenda desconstituinte não saia dos trilhos para deliberar e eliminar temas outros que aqueles inicialmente previstos. A proposta de emenda “desconstituinte” orientada à reforma do sistema político poderá, dentro do jogo parlamentar, terminar por discutir o sistema econômico. Mesmo se cogitando de violação aos limites formais e materiais do poder de emenda, o insatisfeito dependerá de uma decisão do Supremo sobre a eventual afronta ao artigo 60 da Constituição – e a jurisprudência do Tribunal é muito refratária ao exercício do controle preventivo de constitucionalidade.
Não há dúvidas de que a sugestão de desconstitucionalizar matérias hoje constitucionais suscita questionamentos e exige refinamentos. Como todas as demais propostas voltadas às reformas do ordenamento constitucional, a emenda desconstituinte deverá passar pelo escrutínio público. Não é só o destino dos brasileiros que será definido nas eleições de 2018: está igualmente a definir o futuro da Constituição tal qual a conhecemos desde 05 de outubro de 1988.
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[1] AGUILLAR, Fernando Herren Fernandes. Constituição sintética ou analítica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 24, n. 96, out./dez. 1987. p. 96.
[2] Cf. COSTA, Alexandre Araújo; ARAÚJO, Eduardo Borges. Legitimidade política e compatibilidade constitucional. A&amp;C. Revista de Direito Administrativo &amp; Constitucional, v. 60, p. 207-241, abr./jun. 2015.
[3] BALTHAZAR, Ricardo; SALOMÃO, Alexa. Gestão da economia não pode ser engessada pela Constituição, diz Persio Arida. Coordenador do programa de Alckmin diz que governo precisa de flexibilidade. Disponível em: &lt;https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/gestao-da-economia-nao-pode-ser-engessada-pela-constituicao-diz-persio-arida.shtml&gt;. Acesso em 05 de maio do 2018.
[4] CANÁRIO, Pedro. STF não pode criar mecanismos interpretativos e dar solução fora da lei. Revista Consultor Jurídico, abr. 2018. Disponível em: &lt;https://www.conjur.com.br/2018-abr-18/entrevista-nelson-jobim-ex-presidente-supremo-tribunal-federal&gt;. Acesso em 08 de maio de 2018.
[5] ARAGÃO, Alexandre. Constituição deve passar por “lipoaspiração”, defende ex-Presidente do STF. BuzzFeedNews, fev. 2018. Disponível em: &lt; https://www.buzzfeed.com/alexandrearagao/constituicao-deve-passar-por-lipoaspiracao-defende-ex?utm_term=.ouBzB6xb5#.mtaOZR9zP&gt;. Acesso em 11 de maio de 2018.
[6] DELFIM NETTO, Antonio. Lipoaspiração: talvez devêssemos atender à sugestão de reduzir a Constituição a 25 artigos de princípios. Folha de São Paulo, mar. 2018. Disponível em: &lt;https://www1.folha.uol.com.br/colunas/antoniodelfim/2018/03/lipoaspiracao.shtml&gt;. Acesso em 11 de maio de 2018.
[7] TAVARES, André Ramos. (Des)constituinte? É inimaginável justificar uma constituinte sem que venha à mente uma ideia de um golpe à Constituição ou de uma ingenuidade exacerbada. Folha de São Paulo, set. 2006. Disponível em: &lt;http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0809200608.htm&gt;.
[8] DALL’ACQUA, Fernando Maida. Uma análise das propostas de reforma tributária recentes. Disponível em: &lt;http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2969 &gt;. Acesso em 11 de maio de 2018.

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