Flávio de Leão Bastos Pereira

Em sua clássica obra sobre o estudo da memória coletiva, intitulada “Crises da memória e a Segunda Guerra Mundial”, Susan Suleiman, professora em Harvard e especialista em história e literatura comparada, afirma que "o esquecimento é a última borda da memória, borda que igualmente a define e a coloca em questão". Suleiman recorda que também o etnógrafo francês Marc Augé, em seu livro “Les formes de l'oubli”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, propõe que "o esquecimento é o agente ativo da formação das memórias… em suma, é a força viva da memória [la mémorie], e a recordação [le souvenir] o seu produto"<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Chamamos a atenção para os perigos do esquecimento que conduz à cobrança por um passado que sequer existe (William Faulkner) e que nos devora (Jean-Paul Sartre). “Esquecer”, assim, é sempre um risco, pois passado e presente se alimentam mutuamente.
As reflexões acima parecem adequadas a algumas situações que tanto no exterior quanto no Brasil vêm envolvendo as lutas pelo domínio hegemônico sobre a interpretação do passado. Afinal, "controla o futuro quem controla o passado" (George Orwell).
O caso do hotel Villina Vlas, na cidade bósnia de Visegrad, projeta com clareza o contexto da luta pelo predomínio sobre a memória histórica. Localizado numa bela e bucólica área, com águas termais, e tido como hotel ideal para restabelecimento da saúde, vem hospedando turistas, pessoas em viagens de negócios etc. nas últimas décadas.
Em 2008, a atriz, diretora e escritora Kym Vercoe realizou reserva no citado hotel. Durante sua hospedagem passou a se sentir mal. Não conseguia dormir e a sensação de ansiedade parecia permanente. Ao pesquisar a história do local foi surpreendida com a constatação de que o hotel, durante a Guerra da Bósnia, especialmente no ano de 1992, fora convertido em campo de estupros (rape camp) ocupado pelo grupo paramilitar sérvio White Eagles, comandado por Milan Lukić, condenado à prisão perpétua pelo Tribunal Criminal Internacional para a ex-Iugoslávia (ICTY).
Recentemente, um abaixo-assinado foi organizado para que o Google retirasse o hotel das buscas na internet – sem sucesso, contudo.
Atualmente, turistas e profissionais se hospedam no hotel Villina Vlas sem que sejam informados sobre o passado recente do local, marcado por torturas, estupros e execuções. Em torno de 200 mulheres cativas, inclusive meninas de 14 anos, foram aprisionadas naquele hotel entre maio e agosto de 1992 e repetidamente estupradas, torturadas e assassinadas.
Hoje, o debate sobre o local ocorre em torno do silêncio e do esquecimento e a luta pela criação de um memorial no local.
A disputa pela hegemonia sobre a interpretação dos fatos passados não é privilégio europeu, mas presente também no Brasil, país que enfrenta dificuldades na apuração da verdade e memória históricas e na punição de seus perpetradores.
A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ditadura-militar">ditadura militar</a> de 1964, como é comprovado, empregou agentes voltados à repressão em locais clandestinos (não necessariamente secretos) que sediaram centros de sequestro, tortura e extermínio em todo o país e que entraram para a história como símbolos do chamado terrorismo de Estado voltado contra a população civil.
Após a redemocratização no Brasil, cresceu de modo relevante o interesse pela identificação dos locais que, outrora, sediaram as estruturas estatais que promoveram a ruptura com as balizas civilizatórias.
A antropologia e a arqueologia forenses passaram a ganhar em importância, uma vez que capazes de fornecer aos sistemas de justiça o embasamento científico necessário à comprovação dos cometimentos de crimes contra a paz (genocídios, crimes de guerra e crimes contra a humanidade).
Caso recente no Brasil acaba de ser <a href="https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2022/08/04/dops-antigo-centro-de-tortura-oferta-hospedagem-e-surpreende-turista-no-rs.htm">divulgado pela imprensa</a>. Ao reservar um quarto em hospedagem na cidade de Porto Alegre pela internet (serviço do Airbnb), um casal descobriu que o imóvel no qual passariam alguns dias com colegas de trabalho para participar de um evento naquela capital sediou o famigerado “Dopinho”, também centro clandestino para sequestro, tortura e extermínio da ditadura militar e que funcionou entre 1964 e 1966.
O local pode ser identificado por ser um casarão antigo, com pichações em seu muro exatamente denunciando que sangue, sofrimento e impunidade marcam a história do local.
Uma placa instalada no endereço relata que lá funcionou uma "estrutura paramilitar para sequestro, interrogatório, tortura e extermínio de pessoas ordenadas pelo regime militar de 1964", comandada pelo major Luiz Carlos Menna Barreto, sob cujo comando atuavam 28 militares, policiais e agentes do Dops, dentre outros.
Dois aspectos devem ser objeto de reflexão, no caso.
O primeiro deles diz respeito à reação dos proprietários do imóvel localizado na capital gaúcha e que se manifestaram no sentido de que desejam “esquecer” o fato de o casarão ter sido utilizado pelo "Dopinho" na década de 1960.
Locais de memória não são locais destinados à celebração da morbidez. Lembrar o passado sob um contexto reflexivo não apenas dá voz às vítimas que não mais podem falar, mas também permite o estabelecimento de parâmetros e ensinamentos para que as futuras gerações não cometam os mesmos erros do passado.
Um segundo aspecto que deve ser considerado nas situações de Visegrad e de Porto Alegre refere-se à responsabilidade social corporativa (RSC).
Um hotel ou uma plataforma da internet são empreendimentos, portanto, empresas que buscam o lucro. Contudo, nem todo lucro ou os caminhos para obtê-lo são legítimos e, a depender da sociedade, admitidos. Quanto mais conscientes os consumidores, cada vez menos serão tolerados empreendimentos que violam um dos pilares acima mencionados e os direitos humanos, em geral. Memória e verdade são expressão do direito à cultura, portanto, <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/direitos-fundamentais/">direitos humanos fundamentais</a>.
Exemplo interessante pode ser apontado em nossa análise: a companhia Siemens, na Alemanha, que se beneficiou de trabalho escravo no campo de concentração de Ravensbrück, um campo voltado às mulheres e que tem em sua história um recorte específico quanto às violências de gênero próprias dos conflitos armados, exige que todo novo estagiário ou trainee admitido pela empresa permaneça, ao menos, uma semana em centro de treinamento instalado no exato local no qual a companhia manteve trabalhadoras/es escravas/os, isto é, no atual Memorial do Campo de Concentração de Ravensbrück.
Conforme <a href="https://new.siemens.com/global/en/company/about/history/company/1933-1945.html">explica a empresa alemã</a>, com o intuito de que seu passado seja conhecido por seus futuros empregados e gestores, para que jamais permitam que estes erros do passado voltem a ocorrer e sirvam de alerta para o futuro.
No caso de Porto Alegre, o Airbnb retirou o anúncio de sua plataforma e afirmou que verificaria a situação. Em Visegrad, o negacionismo perdura e o hotel Villina Vlas continua recebendo visitantes que ignoram o passado macabro do local, que deveria se tornar um memorial às vítimas.
Responsabilidade social empresarial, verdade e memória históricas se entrelaçam em tais cenários. Um povo sem memória e conhecimento de sua própria história jamais será uma nação, pois jamais terá identidade própria.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> "As formas do esquecimento".
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SULEIMAN, Susan. Crises de memória e a Segunda Guerra Mundial. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019, p. 283.

casa-onde-funciona-centro-clandestino-de-tortura-e-anunciada-no-airbnb-1659535689415_v2_900x506.jpg

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Responsabilidade social empresarial, verdade e memória se entrelaçam em casos de hotel e anúncio de hospedagem

Memória histórica e identidade: um paralelo entre a Bósnia e o Brasil

Responsabilidade social empresarial, verdade e memória se entrelaçam em casos de hotel na Bósnia e anúncio de hospedagem em Porto Alegre