Monique Cheker

Rodrigo Leite Ferreira Cabral

Desde a semana passada uma celeuma jurídica surgiu com força de oposição política nos diversos órgãos de imprensa: a nomeação pela Presidente da República, Dilma Roussef, do ex-Procurador-Geral de Justiça da Bahia, Wellington César César Lima e Silva, para o cargo de Ministro da Justiça.
​Imediatamente, aqui e acolá, alguns juristas davam conta de que a referida nomeação encontra óbice no art. 128, § 5º, II, “d”, da Constituição que dispõe sobre a vedação de membro do Ministério Público (MP) exercer qualquer outra função pública, ainda que em disponibilidade, salvo uma de magistério.
​A tese é a de que ao membro do MP, que teria ingressado no regime posterior à Carta da República de 1988, seria absolutamente vedado o afastamento para exercer cargo de Ministro de Estado, sendo que isso somente seria possível para aqueles que ingressaram na Instituição antes a promulgação da Constituição, por conta do disposto no art. 29, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Para quem concorda com essa tese, a situação de Wellington César César Lima e Silva se adequaria à primeira hipótese, de vedação. 
​Concomitantemente, surgiram referências a algumas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em sede de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), fez a seguinte interpretação do dispositivo constitucional:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR DO ESTADO DE SERGIPE. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. EXERCÍCIO DE OUTRA FUNÇÃO. ART. 128, § 5º, II, d, DA CONSTITUIÇÃO. I. O afastamento de membro do Parquet para exercer outra função pública viabiliza-se apenas nas hipóteses de ocupação de cargos na administração superior do próprio Ministério Público. II. Os cargos de Ministro, Secretário de Estado ou do Distrito Federal, Secretário de Município da Capital ou Chefe de Missão Diplomática não dizem respeito à administração do Ministério Público, ensejando, inclusive, se efetivamente exercidos, indesejável vínculo de subordinação de seus ocupantes com o Executivo. III. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos itens 2 e 3 do § 2º do art. 45 da Lei Complementar sergipana 2/90.”
​Com o devido respeito, temos que a Suprema Corte – assim como outros participantes do debate sobre o tema – neste e em outros precedentes, acabou não se atentando para algumas considerações que são de extrema relevância para a solução da questão acerca da possibilidade ou não de Membro do Ministério Público afastar-se para ocupar cargo fora da Instituição. 
​Inicialmente é de rigor trazer à colação o texto do art. 128, §5º, II, “d”, da Constituição da República, que estabelece a vedação aos Membros do Ministério Público:
"§ 5º Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, observadas, relativamente a seus membros: 
(...) 
II - as seguintes vedações: 
(...) 
d) exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério;"
Ao que parece, a discussão atual tem se valido de uma visão que não leva em conta o conceito jurídico-administrativo de “função”, previsto na aludida norma.
A Constituição da República e o Direito Administrativo são bem claros ao diferenciarem o exercício de cargo e de função.
Sobre o conceito de função, veja-se o que dispõe o art. 37, inciso V, da Constituição:
"V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento;"
Já o conceito de cargo, é previsto no incisos I e II, do art. 37:
"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: 
I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; 
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;" 
É justamente nesse sentido a conceituação e distinção promovida por Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Funções públicas são plexos unitários de atribuições, criados por lei, correspondentes a encargos de direção, chefia ou assessoramento, a serem exercidas por titular de cargo efetivo, da confiança da autoridade que as preenche (art. 37, V, da Constituição). Assemelham-se, quanto à natureza das atribuições e quanto à confiança que caracteriza o seu preenchimento, aos cargos em comissão. Contudo, não se quis prevê-las como tais, possivelmente para evitar que pudessem ser preenchidas por alguém estranho à carreira, já que em cargos em comissão podem ser prepostas pessoas alheias ao serviço público, ressalvado um percentual deles, reservado aos servidores de carreira, cujo mínimo será fixado em lei.” (grifou-se)
De tal maneira, é de se ter bem clara a distinção de que o exercício de um cargo é algo juridicamente distinto do exercício de uma função.
Assentada essa premida, é de se ter que a Constituição inegavelmente vedou ao Membro do Ministério Público tão somente o exercício de outra função e não de outro cargo. A clareza do texto nesse ponto afigura-se indiscutível.
De tal maneira, um Promotor de Justiça ou um Procurador da República não poderá, por exemplo, ser cedido para outra Instituição ou Poder para exercer função de confiança (exclusiva de servidores de cargo efetivo) no órgão de destino. É justamente essa a situação vedada pela Constituição.
No entanto, o Membro do Ministério Público pode claramente exercer o cargo de agente político, como é o caso de Ministro de Estado, uma vez que não há vedação constitucional expressa nesse sentido, mesmo porque, como é sabido, as vedações devem ser interpretadas restritivamente.
Para afastar qualquer dúvida, basta verificar que a Constituição deu tratamento diverso aos Juízes ao proibir-lhes o exercício de cargo e de função, conforme se vê do art. 95, parágrafo único, inciso I:
"Parágrafo único. Aos juízes é vedado: 
I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;" (grifou-se)
Essa divisão entre cargo e função é utilizada em inúmeras outras passagens da Constituição (v.g. CR, art. 14, §9º, art. 28, §1º, 38, II), o que deixa ainda mais claro que, quando a norma fundamental quis vedar o exercício tanto de cargo, quanto de função, ela o fez expressamente.
Essa, porém, não foi a opção que a Constituição fez relativamente aos Membros do MP. Nesse caso, o constituinte optou claramente por vedar apenas o exercício de outra função.
Não é possível interpretar duas opções constitucionais distintas – uma de proibir o exercício de outro cargo ou função (como fez, por exemplo, para os Juízes) e outra que claramente optou por proibir apenas o exercício de outra função (como é o caso para os Membros do MP) – de forma igual. Onde a Constituição expressamente distingue, deve, também, o intérprete distinguir.
Assim, considerando-se que o exercício das atividades de Ministro de Estado constitui evidentemente a ocupação de um cargo em comissão e não de uma função, afigura-se perfeitamente possível que os Membros do Ministério Público, inclusive os que ingressaram na carreira após 1988, se afastem para o exercício desse cargo.
Não bastasse tudo isso, é de se consignar que o Conselho Nacional do Ministério Público, por meio da Resolução n. 72/11, revogou expressamente os artigos 2º a 4º da Resolução do CNMP nº 5/2006, de 20 de março de 2006, que vinham servindo de fundamento normativo para justificar a impossibilidade do exercício de outros cargos por Membros do Ministério Público.
Tal revogação decorreu das diversas decisões do CNMP possibilitando o afastamento de membro do Ministério Público que ingressou na carreira após a Constituição Federal de 1988 para exercer outro cargo público.
Nesse sentido, veja-se os seguintes julgados e casos: a) Procedimento n. 092/2006-21: ato do Procurador-Geral de Justiça do Estado do Paraná que autorizou Promotor de Justiça a exercer funções de Secretário de Estado da Segurança daquele Estado; b) Procedimento de Controle Administrativo n. 116/2011-18: ato de afastamento de Promotor de Justiça de São Paulo para assumir o cargo de Diretor do Departamento Penitenciário Nacional; c) Procedimento de Controle Administrativo n. 149/2011-50: ato de afastamento de Promotor de Justiça do Estado da Bahia para exercer o cargo de Secretário de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Governo naquele estado; d) Procedimento de Controle Administrativo n. 381/2013-50: ato de afastamento de promotor de justiça do Estado de Minas Gerais para exercer o cargo de Subsecretário de Promoção de Qualidade e Integração do Sistema de Defesa Social; e) Procedimento de Controle Administrativo n. 465/2010-41: ato de nomeação de Procurador de Justiça do Estado do Amapá para integrar o Conselho Estadual de Meio Ambiente – COEMA.
​O argumento do CNMP é de que, da mera leitura do art. 128, § 5º, II, “d”, da CR, é imperioso considerar que sua interpretação deva ser conjugada com a do art. 129, IX, muitas vezes esquecido, pois ambos tratam de uma mesma realidade: vedações.
​O art. 129, IX, da CF, prevê a possibilidade de o membro do MP: “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas” (destacou-se).
​Não há qualquer parte desse dispositivo que faça a limitação “para órgãos de dentro do MP”, como aduziu o STF nos precedentes referidos. Interpretar assim seria alargar o conceito de uma norma restritiva.
​Diante dessa nova e clara posição, o CNMP estabeleceu os seguintes parâmetros para viabilizar o afastamento do Membro do Ministério Público para ocupação em outro cargo: 1) Não pode haver exercício cumulativo de funções públicas com recebimento de vencimentos. Por isso, essencial haver um ato formal de afastamento exarado pelo Procurador-Geral da Instituição, após autorização do respectivo Conselho Superior; 2) As funções públicas a serem exercidas devem guardar pertinência temática, devem ser compatíveis com as atribuições constitucionais do Parquet, a teor do inciso IX do art. 129 da Constituição Federal. Isso permitiria, por exemplo, a nomeação de um membro do Ministério Público para o cargo de Ministro de Estado.
​Sobre a pertinência temática da nova função, a legislação infraconstitucional, no art. 44, parágrafo único, da Lei n. 8.625/93 – Lei Orgânica do Ministério Público – plenamente em vigor, afirma categoricamente: “Não constituem acumulação, para os efeitos do inciso IV deste artigo, as atividades exercidas em organismos estatais afetos à área de atuação do Ministério Público” (destacou-se). O art. 53, VI, “a, do mesmo diploma ainda registra a possibilidade de designação do Procurador-Geral de Justiça para “a realização de atividade de relevância para a instituição” (destacou-se).
​É inegável que o cargo de Ministro da Justiça tem pertinência temática com as atribuições dos membros do Ministério Público. Inclusive, em alguns sistemas o cargo de Ministro da Justiça coincide com o que aqui no Brasil é o cargo do Procurador-Geral da República.
​Frise-se que, em alguns procedimentos listados acima, como o PCA n. 381/2013-50, os Conselheiros do CNMP consideraram, inclusive, eventuais decisões do STF em sentido contrário e, ainda assim, mantiveram o entendimento pela possibilidade, acrescentando fundamentos.
​Aliás, justamente nessa linha de raciocínio é que o em. Cons. Otávio Brito, no dia 02.03.2016, indeferiu pedido de concessão de medida liminar formulada para impedir a posse do Procurador de Justiça, Dr. Wellington Cesar Lima, para exercer o cargo de Ministro da Justiça (vide Procedimentos de Controle Administrativos números 1.00093/2016-47 e 1.00094/2016-09).
Não bastasse tudo isso, convém ressaltar que o exercício de outro cargo, no caso em exame, de Ministro de Estado, pelo Membro do Ministério Público evidentemente não importa em acumulação remunerada de funções públicas e, assim, a vedação da segunda parte da alínea “d”, do inciso II, art. 128, §5º, da Constituição da República não incidirá, uma vez que, com o afastamento de sua carreira, sem receber subsídio, tecnicamente não é possível afirmar que ocorreu acumulação .
​Diante disso tudo o que foi exposto, é de se assentar as seguinte premissas: (i) a vedação do exercício de cargo é algo juridicamente distinto da vedação do exercício de uma função; (ii) a Constituição da República optou claramente por vedar, ao Membro do Ministério Público, apenas o exercício de outra função (art. 128, §5º, II, “d”), não proibindo – como feito em relação ao Poder Judiciário (art. 95, par. único, inciso I) - o exercício de outro cargo; (iii) o inciso IX, do art. 129, conforme reiteradamente proclamado pelo CNMP, reafirma a compatibilidade do exercício de cargo por Agente Ministerial fora do Ministério Público; (iv) o exercício de outro cargo pelo Membro do Ministério Público não importa em acumulação remunerada de funções públicas e, assim, a vedação da segunda parte da alínea “d”, do inciso II, art. 128, §5º, da Constituição da República não incide quando houver afastamento formal do membro do Ministério Público de suas atividades.
​Forte nessas premissas, é de se concluir que é perfeitamente possível que Membro do Ministério Público ocupe o cargo fora da Instituição, como é o caso do de Ministro do Estado, desde que previamente autorizado pelo Procurador-Geral, depois de ouvido o respectivo Conselho Superior.

image

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A controvérsia em torno da nomeação de Wellington César para o Ministério da Justiça

Pelo MP: Membro do MP pode se afastar para ocupar cargo fora da instituição

A controvérsia em torno da nomeação de Wellington César para o Ministério da Justiça