Fabio Feldmann

Suely Araújo

Rafael Giovanelli

Vem progressivamente ganhando força nas duas últimas décadas o papel do Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) como arena para tentar reverter retrocessos na legislação e nas políticas públicas de proteção do meio ambiente. Muitos se lembrarão do movimentado julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade apresentadas pelo Ministério Público Federal contra a Lei Florestal aprovada em 2012 <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, mas há vários outros casos relevantes.
Foi o STF que impediu que se continuasse a importação de pneus usados por riscos à saúde pública e ao meio ambiente <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, que rejeitou flexibilizações das regras do licenciamento ambiental por meio de leis estaduais <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, que vetou a alteração ou supressão de Unidades de Conservação por meio de medida provisória, passando a exigir lei em senso estrito para essa finalidade <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, e que afastou práticas cruéis contra os animais <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, entre outras decisões. Tudo isso ancorado no artigo 225 da Constituição Federal, que instituiu o direito das gerações presentes e futuras ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao mesmo tempo em que impôs ao Poder Público deveres concretos de defesa e conservação ambiental.
Direitos ambientais constitucionais, portanto, não são locuções retóricas ou protocolos opcionais, que alguém adota ou deixa de adotar segundo o que lhe for mais conveniente. Ao contrário, são verdadeiros mandamentos, limitantes e direcionadores da atuação do poder público, que é obrigado a seguir o que a Constituição lhe ordena para garantir às gerações presentes e futuras o equilíbrio ecológico e a vida saudável. São direitos que tiveram seu nascedouro exatos 50 anos atrás, em Estocolmo, na primeira grande conferência das Nações Unidas sobre o tema. Foi nessa conferência, aliás, que a Assembleia Nacional Constituinte se inspirou para a redação do capítulo "Do Meio Ambiente".
Diante do enorme desafio de preservar o meio ambiente para a vida digna das gerações futuras, optaram os nossos constituintes por direcionar a atuação dos administradores, reduzindo o seu campo de discricionariedade e impondo-lhes uma série de deveres. As autoridades políticas e os administradores públicos não podem escolher não implementar políticas eficazes de proteção do meio ambiente.
Com a operacionalização do projeto de esvaziamento das políticas ambientais em curso desde o início do governo Bolsonaro, os deveres constitucionais atribuídos ao Poder Público vêm sendo descumpridos de forma reiterada e sistemática. Na área ambiental, a gestão federal é marcada por estratégias que abrangem omissões, deslegitimação das agências de controle e de seus servidores e enfraquecimento da regulação. Esse quadro de desmonte <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> intensificou o recurso ao Judiciário, com aumento substancial de novas ações no Supremo Tribunal Federal.
Para lidar com isso, o STF pautou o julgamento de sete ações para esta quarta-feira (30/3). Seis delas estão sob relatoria da ministra Cármen Lúcia, e uma, sob relatoria da ministra Rosa Weber. A decisão de reunir esses casos em um pacote único tem gerado esperança de que a Corte Suprema recoloque a gestão ambiental brasileira no rumo correto da história.
Segundo as análises mais recentes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, a temperatura global subiu mais rápido a partir de 1970 do que em qualquer outro período de 50 anos se computados os últimos dois milênios. Para termos mais de 80% de chance de estabilizar em 1,5ºC o aumento de temperatura considerando os níveis pré-industriais, o mundo pode emitir apenas mais 300 bilhões de toneladas de CO2, o equivalente a menos de uma década de emissão se mantidos os níveis atuais. Além disso, metade da população mundial já vive sob risco climático. Nas regiões mais vulneráveis, muitas vezes coincidentes com as mais carentes, o número de mortes por secas, enchentes e tempestades foi 15 vezes maior na última década <a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Algo desolador que ameaça o direito à vida, à saúde, ao bem-estar e à alimentação de todos nós, de nossos filhos, e dos filhos de nossos filhos. Um quadro que só pode ser enfrentado com ações contínuas e eficazes do poder público, sem desconsiderar a participação de entes privados e da coletividade. No dia 30 de março, o STF terá a oportunidade de dar contribuição relevante para o enfrentamento dessa grave crise, resgatando a esperança no porvir que marcou a Conferência de Estocolmo. Acreditávamos no coletivo e precisamos voltar a acreditar.
O primeiro item da pauta é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 760, proposta por sete partidos políticos <a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> em conjunto com dez organizações não governamentais que requereram seu ingresso como amici curiae na própria petição inicial <a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. No centro desse processo está o requerimento de retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), implementado entre 2004 e 2018 e apontado pelos técnicos como o principal fator para a redução em 83% nas taxas de desmatamento do bioma entre 2004 e 2012.
Com a paralisação do PPCDAm desde o início do atual governo, o desmatamento na Amazônia assumiu números inaceitáveis: a média anual entre 2019 e 2021 é 75% maior do que a média referente aos dez anos anteriores <a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>. Além disso, o país não conseguiu cumprir meta estabelecida na <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12187.htm">Lei 12.187/2009</a>, a Lei da Política Nacional sobre Mudança do Clima, que limitava a 3.925 km² o desmatamento da Amazônia, em 2020. Ficamos em 10.851 km² – mais que o dobro do aceitável. Em 2021, atingimos 13.235 km² – mais que o triplo do que seria aceitável para o ano anterior.
É evidente que esses dados caracterizam descumprimento do dever, atribuído pela Constituição ao Poder Executivo, de preservar a floresta amazônica. O descumprimento desse dever também é debatido na ADO nº 54, ação incluída na pauta do dia 30, que trata de controle do desmatamento e das queimadas na região amazônica.
O Brasil é o quinto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, e o setor de mudanças de uso da terra respondeu por 46% das emissões brutas do país em 2020. O desmatamento da Amazônia gerou 78,4% desse total <a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. As emissões do desmatamento desse bioma em 2020 geraram 782 milhões de toneladas de CO2 em 2020, mais do que as emissões da Alemanha <a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>. Por isso, a ADPF nº 760 tem uma relevante dimensão climática. E, por isso, a decisão a ser tomada pelo STF impactará, diretamente, a vida das gerações futuras.
Outra ação na pauta do Supremo diretamente relacionada com o desmatamento da Amazônia e com o clima global é a ADO nº 59 <a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>, que trata da completa paralisação do Fundo Amazônia desde janeiro de 2019. Por meio dela, busca-se a reativação do fundo que, desde sua criação, em 2008 <a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>, passou a ser reconhecido internacionalmente como uma experiência modelo de pagamento por redução de desmatamento no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (1992).
O impressionante neste caso são os valores envolvidos na inação governamental. Não ocorreram novas contratações nem novos aportes no governo Bolsonaro, pela implosão da governança do Fundo Amazônia. Conforme relatório de 2020 <a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>, havia R$ 3,028 bilhões – já depositados – disponíveis para novas contratações no fundo, valor que, se atualizado pelo IPCA, chega a R$ 3,3 bilhões. Somente a título de comparação, na Lei Orçamentária de 2022, o Ibama tem autorizados R$ 198 milhões para todas as operações de fiscalização ambiental no ano <a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>, no país inteiro. Em 2020, essa ação orçamentária contava apenas com R$ 64 milhões <a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a>. A paralisação sem justificativa do Fundo Amazônia deve ser compreendida como uma opção deliberada de não fazer, um desmantelamento ativo <a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a>, algo que não tem espaço no arranjo definido pela Constituição de 1988.
Diante das regras ambientais constitucionais, em um quadro de altas sucessivas de desmatamento, inexiste margem de discricionariedade para que o governo – qualquer que seja seu matiz ideológico – escolha paralisar a arrecadação de recursos ou deixe de empenhar os recursos disponíveis em ações aptas a conter a destruição da floresta. Constitucionalmente, é obrigado a fazer. Arrecadar, empenhar, executar e conter o desmatamento com todos os recursos disponíveis. Cabe ao STF determinar o cumprimento dessas obrigações.
As demais ações em pauta tratam da exclusão da sociedade civil do conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente; de enfraquecimentos em padrões de qualidade do ar, definidos pelo Conama; da concessão automática, sem análise humana, de alvará de funcionamento e licenças para determinadas empresas; e da ausência de autonomia do Ibama para atuar como agente de fiscalização, diante da Operação Verde Brasil 2.
Trata-se de uma pauta muito importante, estreitamente relacionada à crise climática e, por isso, capaz de definir futuro. Estão em jogo ações que buscam garantir a plena consecução de disposições da Constituição que impõem obrigações bem claras ao poder público em termos de proteção ambiental. Esperamos que o STF, como guardião máximo de nossa Carta Magna, continue consolidando avanços nesse tema e que decida de maneira justa nos processos aqui apresentados. Justiça que deve alcançar sobretudo as futuras gerações.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Ver Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4901; ADI nº 4902, ADI nº 4903 e ADI nº 4937. Ver também Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 42, todas relatadas pelo Ministro Luiz Fux.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ver Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 101, relatada pela Ministra Cármen Lúcia.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ver, por exemplo, ADI nº 1086, relatada pelo Ministro Ilmar Galvão; ADI nº 5312, relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes; ADI nº 6650, relatada pela Ministra Cármen Lúcia; ADI nº 6288, relatada pela Ministra Rosa Weber; ADI nº 5475, relatada pela Ministra Cármen Lúcia; ADI nº 6672, relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a>ADI nº 4717, relatada pela Ministra Cármen Lúcia.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Por exemplo, ADI nº 4983, relatada pelo Ministro Marco Aurélio.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BAUER, Michael W.; JORDAN, Andrew; GREEN-PEDERSEN, Christoffer; HERITIER, Adrienne. Dismantling Public Policy. Preferences, Strategies and Effects. 1. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Ver resumos do Observatório do Clima disponíveis em: <a href="https://www.oc.eco.br/painel-da-onu-quantifica-influencia-humana-no-aquecimento-pela-1a-vez/">https://www.oc.eco.br/painel-da-onu-quantifica-influencia-humana-no-aquecimento-pela-1a-vez/</a> e <a href="https://www.oc.eco.br/ipcc-soa-a-trombeta-das-perdas-e-danos-do-clima/">https://www.oc.eco.br/ipcc-soa-a-trombeta-das-perdas-e-danos-do-clima/</a> . Acesso em: 20 mar. 2022.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Partido Socialista Brasileiro (PSB), Rede Sustentabilidade, Partido Democrático Trabalhista (PDT), Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Verde (PV).
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Artigo 19, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Conectas Direitos Humanos, Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Engajamundo, Greenpeace Brasil, Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Alana, Observatório do Clima (OC) e associação Terrazul.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Ver: <a href="http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes">http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes</a>. Acesso em: 20 mar. 2022.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> OBSERVATÓRIO DO CLIMA (OC). SEEG 2021. Análise das emissões brasileiras de e suas implicações para as metas climáticas do Brasil 1970-2020. Piracicaba, 2021. Páginas 8 e 29. Disponível em: <a href="https://seeg-br.s3.amazonaws.com/Documentos%20Analiticos/SEEG_9/OC_03_relatorio_2021_FINAL.pdf">https://seeg-br.s3.amazonaws.com/Documentos%20Analiticos/SEEG_9/OC_03_relatorio_2021_FINAL.pdf</a>. Acesso em: 20 mar. 2022.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> OBSERVATÓRIO DO CLIMA (OC). A conta chegou: o terceiro ano de destruição sob Jair Bolsonaro. Piracicaba, 2022. Página 7. Disponível em: <a href="https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2022/02/A-conta-chegou-HD.pdf">https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2022/02/A-conta-chegou-HD.pdf</a>. Acesso em: 20 mar. 2022.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Apresentada por PSB, Rede Sustentabilidade, PT e PSOL e relatada pela Ministra Rosa Weber.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Ver Decreto nº 6.527/2008.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> Disponível em: <a href="http://www.fundoamazonia.gov.br/export/sites/default/pt/.galleries/documentos/rafa/RAFA_2020_port.pdf">http://www.fundoamazonia.gov.br/export/sites/default/pt/.galleries/documentos/rafa/RAFA_2020_port.pdf</a>. Página 28. Acesso em: 22 mar. 2022.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> Na ação orçamentária 214N. Ver dados disponíveis no SIOP acesso público: <a href="https://www1.siop.planejamento.gov.br/acessopublico/?pp=acessopublico">https://www1.siop.planejamento.gov.br/acessopublico/?pp=acessopublico</a>.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> Idem.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> Bauer et al. (2012), obra citada.

O meio ambiente ‘nas mãos’ do STF

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JOTA

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