Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">"As guerras surgem de causas invisíveis e geralmente insignificantes, sendo o primeiro surto, muitas vezes, apenas uma explosão de raiva" - Tucídides.</blockquote>
Um dos meus aforismos prediletos de Confúcio é aquele que diz: “estude o passado se você quer divisar o futuro”. E por que queremos antever o futuro? Para que possamos nos antecipar a ele, menos para lucrar com as possíveis oportunidades do que para evitar que uma catástrofe aconteça. Esta a tragédia do estadista: o seu sucesso é medido mais pela magnitude daquilo que ele evita que aconteça do que por aquilo que ele realiza efetivamente. “Nenhuma boa ação fica impune”.
Entre os próximos dias 14 e 19 de outubro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) realizará audiências públicas para examinar os pedidos de aplicação de medidas provisórias do Azerbaijão e da Armênia em dois casos relacionados entre os dois Estados, protocolados em setembro último. As partes se acusam mutuamente de ofensas perpetradas contra os dispositivos da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
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O caso é delicado, porque, como a leitora há de se recordar, as partes entraram em um conflito armado assaz sangrento, há pouco menos de um ano, em setembro de 2020, cujas hostilidades cessaram com um armistício, garantido pela Rússia, em novembro passado. As estimativas oficiais são de que o conflito terminou com mais de 5000 baixas militares, cerca de 143 baixas civis, além de dezenas de milhares de refugiados. Uma carnificina.
O histórico de conflito entre os dois Estados pela região de Nagorno-Karabakh é longo. Na era contemporânea, ambos os Estados faziam parte da União Soviética, mas, com a desintegração do bloco socialista a partir dos anos 1980, as tensões étnicas e religiosas na região vieram à tona. A área é parte do Azerbaijão, mas é controlada por separatistas armênios. A Armênia e o Azerbaijão entraram em guerra nos anos 1980, no início dos anos 1990 e agora, novamente no ano passado. São mais de 40 anos, cara leitora, de pesados conflitos pelo controle da região.
Área montanhosa situada no Cáucaso, Nagorno-Karabakh possui considerável relevância estratégica pela sua localização entre o Mar Cáspio e o Mar Negro e as suas reservas aquíferas e minerais. O Azerbaijão é um grande produtor de petróleo e qualquer conflito que o envolva poderá ter impacto no preço da commodity nos mercados globais. Além disso, a Armênia, de maioria cristã, é mais próxima da Rússia, ao passo em que o Azerbaijão, país islâmico, é mais próximo da Turquia e do Irã.
Desde o armistício de novembro passado, vem-se reportando rusgas entre os dois países na região, incluindo a inauguração, pelo Azerbaijão, do “Parque dos Troféus de Guerra”, um parque público na capital Baku, que exibe os despojos da guerra de 2020. No início do mês passado, assim, Azerbaijão e Armênia protocolaram pedidos independentes perante a CIJ por alegadas discriminações raciais de ambos os lados, com pedidos preliminares de medidas provisórias.
<blockquote class="jota-article__eye">O Azerbaijão, dentre outras medidas preliminares, pede à CIJ que determine à Armênia que desmantele as minas terrestres alegadamente instaladas na região e que coíba a ação de organizações paralelas que estariam promovendo campanhas de ódio racial nas mídias sociais, em especial pelo Twitter.</blockquote>
Já a Armênia, por sua vez, dentre outras medidas, solicita à Corte que determine ao Azerbaijão que libere todos os cidadãos armênios detidos por ocasião do conflito de 2020, que garanta o tratamento humanitário deles, que proteja o patrimônio cultural e histórico armênio em seu território e que garanta o acesso a eles aos cidadãos da Armênia. Além disso, a Armênia também solicita que a CIJ determine que o Azerbaijão se abstenha de apoiar campanhas de ódio contra os armênios e “feche ou suspenda as atividades do Parque dos Troféus Militares”.
As medidas provisórias da CIJ são um instrumento de importância crescente na manutenção da paz internacional. O Art. 41 do Estatuto da Corte é bastante amplo no sentido de que ele prevê que “a Côrte terá a faculdade de indicar, se julgar que as circunstâncias o exigem, quaisquer medidas provisórias que devem ser tomadas para preservar os direitos de cada parte”, devendo ser notificadas as partes e o Conselho de Segurança da ONU sobre a sua determinação. Com a crescente judicialização da vida internacional, a questão principal passa a ser a do monitoramento do cumprimento das decisões da CIJ, tema que já tivemos a oportunidade de abordar nesta coluna.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
A cresce importância do assunto, em particular no que se refere às medidas provisórias, foi objeto de recente reforma da Resolução referente à Prática Judiciária Interna da Corte, um dos instrumentos basilares para o seu funcionamento. Ao final do ano passado, no dia 21 de dezembro de 2020, assim, a CIJ adotou um novo Art. 11 à Resolução, que prevê o estabelecimento de um Comitê Ad Hoc, composto por três juízes, que assistirão à Corte no monitoramento e na implementação das medidas provisórias que venham eventualmente a ser determinadas.
O Comitê Ad Hoc requisitará informações às partes e reportará periodicamente à Corte, sugerindo linhas de ação. Mais interessante é o item iii que determina claramente que “qualquer decisão a este respeito deverá ser tomada pela Corte”. Ou seja, cabe à CIJ, dentro da sua jurisdição inerente, monitorar o cumprimento das suas próprias decisões.
O caso Azerbaijão v Armênia é um importante teste para o novo sistema de monitoramento da implementação das medidas provisórias determinadas pela CIJ. O movimento histórico mais amplo a se notar aqui, cara leitora, é o de que se reproduz no âmbito internacional a mesma tendência geral verificada domesticamente de crescente judicialização das divergências, com o necessário reforço das estruturas judiciárias, que vêm sendo chamadas, cada vez mais, a exercer um papel preponderante na pacificação dos conflitos sociais, mantendo a ordem e preservando os frágeis pilares da civilização, para que não desmoronem nas trevas da barbárie. O risco, atualmente, é cada vez mais alto.
Há que se ter enorme cuidado, cara leitora, para não se minimizar a importância do conflito sobre Nagorno-Karabakh, como uma disputa na periferia do sistema internacional. O padrão histórico demonstra que a grande maioria dos conflitos armados de grandes proporções tiveram como estopim conflitos periféricos que, pela pressão implacável da chamada “armadilha de Tucídides”, arrastou as grandes potências para a guerra, mesmo contra a sua vontade e contra o seu interesse.
Daí a importância capital de se fortalecer os sistemas judiciários, em um mundo marcado pela volatilidade, pela polarização e pela ausência cada vez maior de empatia para com outro. A única alternativa à Justiça, cara leitora, é a barbárie. “Melhor um diamante com uma falha do que um seixo sem nenhuma.”
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/descumprimento-de-sentenca-da-corte-internacional-de-justica-17092021

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JOTA

O caso Azerbaijão vs. Armênia e a importância da CIJ para a preservação da paz

Medidas provisórias da Corte Internacional de Justiça

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