Juliana Leme Faleiros

A partir do PL 948/2021, a Assembleia Legislativa de Rondônia editou a <a href="https://sapl.al.ro.leg.br/norma/9987">Lei 5.123/2021</a> e estabeleceu medidas protetivas aos estudantes no sentido de vetar o uso de linguagem neutra ou inclusiva – todes, por exemplo – no sistema de ensino daquele estado.
O então deputado estadual Sargento Eyder Brasil (PL-RO), autor do <a href="https://sapl.al.ro.leg.br/materia/23423">projeto</a>, em brevíssimo resumo do que seriam as transformações linguísticas do latim e do português, afirma que o masculino é o gênero neutro e que, por isso, não há qualquer machismo na nossa língua portuguesa (sic). Trazendo suposto posicionamento da Academia Francesa, afirma que a linguagem neutra é “uma aberração inclusiva” e que esse “dialeto não binário afasta ainda mais as pessoas, polarizando a sociedade".
Diante da inovação legislativa rondoniense e de possíveis inconsistências da norma, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que a declarasse inconstitucional.
Nomeado relator da <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6292373">ADI 7019</a>, o ministro Edson Fachin concedeu medida cautelar no sentido de suspender a sua eficácia sob o argumento de ofensa formal e material à Constituição. Em síntese, quanto à forma, entendeu que a Assembleia Legislativa de Rondônia tratou de tema que compete à União e, quanto ao aspecto material, o ministro chamou a atenção para o fato de que a linguagem inclusiva visa rebater vieses que subordinam um gênero a outro e que abre espaço para a pluralidade, em todos os aspectos, ainda mais em ambiente escolar onde o foco é desenvolver as habilidades e o livre pensar.
A lei impugnada, segundo Fachin, é exemplo de censura prévia e fere o direito fundamental à igualdade sem discriminações, sendo que a corte já se posicionou no sentido de que este direito abrange a identidade e expressão de gênero. Em 2023, a ADI foi levada ao plenário virtual e a lei foi declarada inconstitucional por unanimidade.
É curioso observar que na própria justificativa do projeto de lei está consignado o impacto das transformações sociais e históricas na língua ao mencionar a passagem do latim para o português moderno e, na mesma medida, contraditoriamente, seu autor rejeita as transformações que vêm sendo expressas pela demanda por linguagem inclusiva. É curioso observar, também, que os detratores da linguagem neutra não se intimidam em afirmar que o masculino é o gênero neutro, desconsiderando que isso, por si só, evidencia o caráter discriminatório, invisibilizador e violento que pode ter a comunicação.
É igualmente interessante que os defensores da norma padrão – eles chamam de norma culta – não se atentam nem se incomodam com os estrangeirismos: live, online, fast food, self service, freelancer, show, réveillon, videogame, marketing, lingerie, uísque, turnê etc. Todas são palavras importadas, não pertencentes à língua oficial e exaustivamente usadas por brasileiras e brasileiros de todas as idades, gêneros e classes sociais.
O incômodo é com a inclusão – que o autor do projeto nomeia de aberração inclusiva –, pois, ao que parece, sua perspectiva é no sentido de que a pluralidade e a inclusão de pessoas fora do padrão heteronormativo e com pessoas que não aceitam se submeter àquilo que rigidamente se convencionou como masculino/feminino significam a anomalia, um acinte aos defensores da moral, dos bons costumes e, claro, do idioma. Para eles, os defensores de uma sociedade inclusiva, que passa por repensar o uso do idioma, são os causadores da cizânia e da polarização.
O conflito é inerente à sociedade e saudável para experimentações, aprendizados, transformações e inclusão. Vale esclarecer que o sentido de conflito aqui utilizado é positivo, é aberto ao diálogo; não tem caráter beligerante nem de discurso de ódio e muito menos de incentivo à eliminação da diferença.
A linguista <a href="https://www.youtube.com/watch?v=a-YvJ6PuXTo">Janaísa Viscardi</a> se pronuncia sobre esta temática há alguns anos e coloca que, além da língua ser viva e, por isso, sujeita a modificações, ela é desentendimentos que se desfazem – ou não – na interação entre as pessoas e grupos.
O projeto de lei em debate deveria ter sido extinto em sua gênese, pois afronta os ditames constitucionais que os parlamentares, ao tomarem posse, juraram defender. Existe uma dissociação severa entre o que é prioridade para a sociedade brasileira – no momento da deliberação do projeto vivíamos uma crise sanitária com impactos econômicos sem precedentes – e sobre o que os legisladores se ocupam. Ressalte-se que não são “privilégio” da Assembleia Legislativa de Rondônia projetos dessa natureza; existem outros com teor similar nos demais estados e municípios brasileiros, como no Paraná e em Mato Grosso do Sul e nas cidades de Rancho Queimado (SC), Joinville (SC) e Juiz de Fora (MG).
A Constituição da República de 1988 é a expressão de um projeto societal organizado a partir da proteção da dignidade de todas as pessoas, indistintamente, e que tem como objetivo a construção de uma sociedade justa, livre, solidária, sem discriminação de qualquer natureza. Esses pilares é que devem guiar as ações políticas e qualquer medida contrária deve ser rechaçada de plano, como bem se posicionou o STF nesse caso.
Enquanto as casas legislativas são consideradas a casa do povo, é o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a> que tem sido uma barreira de contenção diante da barbárie, do retrocesso e da institucionalização da violência contra grupos minorizados. O que se tem vivenciado é o alinhamento da corte aos diversos tratados firmados e ratificados pelo Brasil e à defesa intransigente da Constituição e, desse modo, é o STF que tem se mostrado a casa do povo.
O argumento corriqueiro de que os ministros do STF têm usurpado funções de outros Poderes, o chamado ativismo judicial, vem, em regra, de quem não tem a Constituição como guia, pois nos casos que violam direitos dos grupos minorizados, o STF tem o dever de agir – e assim tem se posicionado – como seu firme guardião, nos termos de seu art. 102.
No contexto da lei impugnada, estabelecer medidas protetivas significa cercear o desenvolvimento de crianças e jovens, limitar o acesso ao conhecimento e impedir a liberdade de cátedra dos professores. Do mesmo modo que, em dado momento histórico, o latim deixou de ser o idioma de falantes nativos, as forças sociais poderão transformar a dinâmica da sociedade e, portanto, as línguas ditas oficiais. Não será por decreto, nem por lei, que o movimento da história será impedido.

sala de aula

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JOTA

Assembleia Legislativa de Rondônia aprova lei que veta linguagem neutra em estabelecimentos de ensino, mas STF derruba

Medidas protetivas contra linguagem inclusiva?

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