José Eduardo Faria

<p>Independentemente das justificativas “técnicas” que o ministro da Economia, Paulo Guedes, venha dando com relação às inúmeras e polêmicas medidas que tem tomado ao longo de sua gestão, dois pontos chamam a atenção.</p>
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<p>Por um lado, todas elas têm um nítido enviesamento político, na medida em que favorecem o capital em detrimento do trabalho. Por outro lado, vai ficando cada vez mais explícita a estratégia do ministro, que inclui nas Medidas Provisórias dos programas emergenciais, que têm validade apenas enquanto a crise de saúde pública causada pela pandemia não for superada, alterações jurídicas de caráter permanente.</p>
<p>A MP 1045/2021 é ilustrativa nesse sentido. Formalmente, ela foi baixada com o objetivo de prorrogar o Programa Emergencial do Emprego e da Renda, mitigando os efeitos do prolongamento da pandemia. Contudo, ela não se limita a estabelecer dispositivos destinados a viabilizar a manutenção de empregos e a criar estímulos para a inclusão produtiva de jovens de baixa renda no mercado de trabalho. Vai muito além, tratando de temas que nada têm a ver com essa questão. É esse o caso, por exemplo, do dispositivo que dificulta o acesso de famílias carentes à gratuidade dos serviços judiciais. É o caso, igualmente, dos dispositivos que alteram a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), restringem a autonomia dos juízes do Trabalho, retiram da Polícia Federal e do Ministério Público Federal prerrogativas para atuar na fiscalização do cumprimento das normas de proteção aos trabalhadores e diminuem o valor das horas extras de categorias com jornadas de trabalho com menos de oito horas diárias, como bancários e operadores de telemarketing.</p>
<p>Assim, se na aparência essa MP se destina a combater o desemprego e incluir jovens no mercado de trabalho em tempos de retração do nível de atividade econômica, na essência ela cria modalidades de contrato de trabalho sem vínculo de emprego – e, portanto, sem previsão de 13º salário e de recolhimento de FGTS. Do ponto de vista da lógica, faz sentido que uma redução drástica de proteção previdenciária e de direitos trabalhistas possa ser invocada como um modo de incentivar a qualificação e a formação de jovens, no âmbito de uma sociedade fortemente marcada pela desigualdade e pela negação às novas gerações de uma educação com qualidade e equidade?</p>
<blockquote class="jota-article__eye"><p>Do ponto de vista ético, desproteger os jovens pode ser justificado como estímulo, seja lá para o que for?</p></blockquote>
<p>Além da afronta à lógica e à ética, há ainda outro problema – este do ponto de vista político-institucional – não menos importante. Trata-se do risco de perenização de medidas que, tomadas a título emergencial, alteram drasticamente o alcance de determinados direitos e o campo de atuação dos tribunais. Trata-se de um expediente não apenas imoral, mas, também autoritário, que tende a minar a segurança do direito em decorrência da banalização da ideia de urgência. Por fim, há ainda uma questão de técnica jurídica, uma vez que, ao tratar dos mais variados institutos jurídicos, a MP 1045 afronta a Constituição. Entre outros motivos, porque ela altera por meio de uma medida provisória o que só pode ser mudado por uma Proposta de Emenda Constitucional e porque desorganiza parte da legislação ordinária, ao promover uma minirreforma trabalhista disfarçada.</p>
<p>Se por um lado o ministro da Economia pode ser acusado de aporofobia e de darwinismo social, por outro, contudo, não pode classificado como incoerente. Afinal, os expedientes de que se valeu na MP 1045 são os mesmos que utilizou na MP  905, mais conhecida como a MP da Carteira de Trabalho Verde e Amarela. Baixada em 2019 com o objetivo de estimular a geração de empregos para jovens num período de estagnação econômica, em seu texto básico ela chegou ao disparate de prever a cobrança de 7,5% sobre o seguro-desemprego, a título de imposto de renda do segurado. Também restringia algumas prerrogativas dos fiscais do trabalho encarregados de autuar empresas que não cumprem as normas de proteção aos empregados – mais uma evidência do privilegiamento do capital em detrimento do trabalho.</p>
<p>O mesmo expediente usado na MP 1045 foi igualmente utilizado na MP 881, mais conhecida como a MP da liberdade econômica. Baixada também em 2019, com o objetivo de estimular o livre jogo de mercado e estabelecer um princípio de intervenção mínima do Estado, ela continha uma minirreforma trabalhista que  restringia direitos dos trabalhadores.</p>
<p>Numa sociedade complexa, heterogênea e iníqua como a brasileira, essa tentativa de esvaziar os direitos de cada cidadão, responsabilizando-o por seu futuro, é aberrante. Sem se preocupar com o dia de amanhã nesse contexto social em que pobreza e violência desmoralizam cotidianamente o princípio da igualdade de todos perante a lei, o que o Ministério da Economia vem propondo, por meio de MPs, é um processo de hiper-responsabilização de cada indivíduo com relação ao seu destino. Na prática, contudo, há uma perversidade nessa proposta: ela atribui a capacidades e fraquezas de cada um o que sempre foi resultante de fatores sociais.</p>
<blockquote class="jota-article__eye"><p>Dito de outro modo, o ministro da Economia invoca um liberalismo extremado para afirmar que cada indivíduo tem uma capacidade de escolha total sobre sua vida. Essa é uma forma nada sutil de inverter a lógica das coisas.</p></blockquote>
<p>Afinal, ao afirmar que é ele é fruto de seu esforço e de seu mérito, o que está sendo dito é que os pobres, desempregados e favelados devem ser classificados como os únicos culpados de sua situação social. Tão ou mais grave, a defesa dessa hiper-responsabilização, expressa pela ideia de que desproteger o jovem é um modo de incentivar sua qualificação e formação profissional, ocorre justamente num período de precarização trabalhista e de supressão de direitos por MPs, como as que já foram mencionadas.</p>
<p>Esse é o aspecto mais torpe do tipo de programa emergencial que o governo vem adotando desde o início da pandemia. Em termos políticos, esses programas não passam de pretexto para a conversão do que é excepcional e temporário em duradouro, suprimindo direitos, corroendo conquistas democráticas e levando a um processo de regressão institucional. Em termos morais, os cidadãos vão sendo hiper-responsabilizados no mesmo ritmo em que as MPs arquitetadas pelo Ministério da Economia reduzem ao mínimo sua capacidade de controlar os fatores que condicionam sua situação pessoal e social. Seria engraçado, se não fosse dramático e pérfido – são esses os cidadãos que, em junho deste ano, o ministro da Economia considerou os destinatários das sobras dos restaurantes, como forma de política de combate à crise social e aos crescentes índices de insegurança alimentar. “Aquilo dá para alimentar pessoas fragilizadas, mendigos, pessoas desamparadas. É muito melhor que deixar estragar”, afirmou, em evento sugestivamente promovido pela Associação Brasileira de Supermercados.</p>
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JOTA

Programas de Paulo Guedes suprimem direitos, corroendo conquistas democráticas

Medidas emergenciais, mudanças permanentes

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