Marcelo Perlman

Sabrina Becue

Os procedimentos de recuperação de empresas envolvem interesses divergentes de múltiplas partes e configuram espaço fértil para assimetrias informacionais, alianças e rivalidades, e vieses comportamentais. Não é incomum que, tomados de espírito adversarial, credores e devedores supervalorizem suas convicções e probabilidades de êxito, subestimem riscos, resistam à perda de direitos já fragilizados, estigmatizem a parte contrária. Com isso, litígios complexos enfrentam incertezas jurídicas e podem ocasionar deterioração do valor da empresa devedora e dos créditos.  
A natureza contenciosa é um traço histórico dos modelos de insolvência, carregados de juízos de valor sobre a responsabilidade dos empresários pelo insucesso da empreitada e desconfiança dos credores no que diz respeito à transparência nas informações disponibilizadas e imprescindíveis para a correta análise do risco do crédito no cenário da crise.
O embate devedor-credores se desdobra em múltiplos conflitos de agência entre os próprios credores e outros stakeholders. Da perspectiva de credores, predominam incertezas sobre a preferência no recebimento dos créditos e a taxa de retorno dos investimentos, variáveis sujeitas à barganha coletiva e a diferentes níveis de influência sobre o resultado final. Outros stakeholders – como acionistas, fornecedores, consumidores e comunidade em geral – são fragilizados pela ausência de voz no processo de reestruturação e, no caso de acionistas, por eventuais interferências na estrutura de governança da empresa.  
A mediação é capaz de resolver, direta ou indiretamente, esses conflitos de agência, ao lidar com as divergências financeiras que dizem respeito aos detentores de títulos de dívida (sujeitos e não sujeitos à reestruturação, mas todos impactados pela crise) e/ou de participações societárias. O êxito na solução consensual preserva o valor da empresa e indiretamente favorece os stakeholders que não possuem um direito de crédito contra a devedora, mas que por ela são afetados. Quando o perfil de endividamento envolve credores estrangeiros ou instrumentos de dívida contratados no exterior, a mediação traz mais segurança aos envolvidos, permitindo que as partes negociem em um ambiente protegido, especializado e sem interferências.  
Daí plenamente acertada a recente visão legislativa e judicial de estímulo à mediação na recuperação judicial. Sob confidencialidade, a mediação permite o compartilhamento adequado de informações, a mitigação de riscos e custos – de natureza financeira, jurídica, relacional, de imagem e de oportunidade – e o controle do resultado pelas próprias partes. O mediador, como terceiro imparcial e isento, atua como amortecedor dos atritos entre os envolvidos, agente de realidade para moderar expectativas e combatividade, conselheiro para comunicação e negociação, e impulsionador de caminhos de acordo. Deste modo, a mediação soluciona os problemas que estão na raiz do conflito de agência: a desconfiança dos credores quanto às informações recebidas e o receio de uma solução imposta pela maioria, mas insatisfatória de uma perspectiva individual da parte afetada.  
Quando, no âmbito da mediação, as partes e seus procuradores conseguem articular e acomodar interesses, e percorrer toda distância entre suas posições, resulta-se em acordo, atendendo-se em medida suficiente e aceitável os direitos de crédito e criando-se condições para a aprovação do plano de recuperação judicial. Quando persistem divergências entre as partes, a mediação é útil para aproveitar aproximações parciais alcançadas e oferecer às partes maiores conhecimento e segurança quanto a informações relevantes ao caso.
Ainda, as partes que, na mediação, tomam contato com os riscos do caso e modulam possíveis excessos de confiança, ao prosseguirem na disputa judicial e depararem com suas típicas incertezas e custos, muitas vezes alimentam-se dos aprendizados da mediação e dos canais de comunicação experimentados para engajar em novos esforços de autocomposição. No Brasil, em curto espaço de tempo, já temos experiências em ambas as situações acima: acordos celebrados tanto no âmbito da mediação, quanto após a mediação, por meio de negociação direta e, eventualmente, com impulso da conciliação judicial.
Os benefícios da mediação para procedimentos complexos de recuperação de empresas são reconhecidos por instituições internacionais e países de diferentes tradições jurídicas. Mas, para ser eficaz, a mediação depende de condições adequadas. Sua duração não pode ser tão curta que não haja tempo para alinhamento de informações e reflexões sobre riscos e oportunidades, nem tão longa para perder-se ritmo e senso de urgência. Seus participantes devem abranger todos os agentes com influência relevante sobre o sucesso da recuperação, mas não tantas partes que o procedimento resulte fragmentado e impraticável.  
Ainda, o custeio da mediação deve ser claro e adequado, de modo a estimular engajamento e eficiência dos participantes e dos mediadores. O objeto do procedimento, ainda que maleável, deve ser direcionado a temas prioritários e a uma pauta negocial apropriada para a reestruturação das dívidas e o soerguimento da empresa. O juiz ou administrador judicial devem adotar medidas concretas para estimular as partes a sentarem à mesa, junto com um ou mais mediadores com expertise e credibilidade, mas sem prejudicar confidencialidade ou interferir na autonomia dos envolvidos para negociar e transacionar direitos.  
Não há fórmula única para a mediação, mas há parâmetros para o melhor design do procedimento. Nesse sentido, merecem acolhida os diferentes experimentos com mediação antecedente e incidental à recuperação judicial que têm sido observados junto às varas judiciais brasileiras. Igualmente, vê-se com bons olhos a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>) de estimular a mediação em procedimentos de insolvência, a exemplo dos enunciados aprovados pelo Fórum Nacional de Recuperação Empresarial e Falências (Fonaref). 
De outro lado, como a introdução da mediação em recuperação judicial é relativamente recente, há também riscos nas iniciativas acima que não podem ser ignorados. Fatores como confidencialidade, timing da mediação, tempo de duração, local e formato das reuniões, custeio e escopo, perfil e número de participantes e mediadores são decisivos para o sucesso da mediação. Assim, incentivos do Poder Judiciário à mediação que possam desconsiderar essas variáveis – seja por omiti-las, seja por fixá-las inadequadamente – podem gerar experiências frustrantes e, perante partes e procuradores, arriscar a credibilidade da mediação para novos casos. 
Da mesma forma, alguns enunciados do Fonaref acerca da medida cautelar antecedente de suspensão de execução das dívidas, regulada pelo no §1º, do artigo 20-B, da Lei de Recuperação e Falências, merecem olhar cauteloso. Sem aqui entrar no mérito do cabimento de outras providências judiciais de suspensão de atos de constrição (tutelas de urgência antecedentes ou incidentais), o Enunciado 6, que sugere que apenas os credores convidados para a mediação fiquem vinculados à medida cautelar antecedente, pode estimular que um número excessivo de credores seja chamado pela devedora à mediação. Como consequência, ao invés de sentarem-se à mesa os credores com importância econômica para reestruturação das dívidas em nível suficiente ao afastamento da necessidade da recuperação judicial, corre-se o risco de fragmentação de esforços entre muitos interlocutores, perda de foco e articulação negocial, e incorrência de custos elevados.  
Ainda, o Enunciado 8 do Fonaref, que permite ao magistrado revogar a medida cautelar antecedente diante da demonstração, por qualquer credor, de que a devedora não promove ou procrastina o regular andamento da mediação, pode ferir de morte a confidencialidade do procedimento, que é essencial para as partes revelarem interesses e negociarem livremente. Melhor que haja, de início, rigor legal na concessão da medida cautelar e, durante o prazo de até 60 dias da mediação, confie-se que o mediador trabalhará com afinco para suscitar engajamento das partes e, não logrando sucesso, não hesitará em encerrar antecipadamente o procedimento.  
A exitosa experiência internacional da mediação em situações de insolvência e reestruturação de empresas, assim como os limites e as fragilidades do processo de recuperação judicial para equilibrar a preservação da empresa e o pagamento dos créditos, demonstram que os esforços em promover a mediação são importantes. Porém, para além de apreciar-se conceitualmente os méritos da autocomposição na recuperação empresarial, é necessário aprofundar os debates sobre o funcionamento da mediação, em termos concretos e detalhados.  
Precisamos da construção de um corpo de melhores práticas para mediações em recuperações judiciais. Não para enrijecer o procedimento, cuja flexibilidade tão bem atende a complexidade e o caráter multiparte da recuperação judicial, mas para oferecer caminhos práticos, estruturados e chancelados institucionalmente que uniformizem o incentivo judicial à mediação, ofereçam segurança às partes, e otimizem a eficácia da ferramenta.  
O cavalo selado da mediação em recuperações judiciais pode passar apenas uma vez. Autoridades e a comunidade jurídica e financeira devem aproveitar esta chance.

recuperação judicial

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JOTA

Precisamos da construção de um corpo de melhores práticas para mediações em recuperações judiciais

Mediação em recuperação judicial: o cavalo selado só passa uma vez

Precisamos da construção de um corpo de melhores práticas para mediações em recuperações judiciais