Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__citation">“Ouvi, acrescentou o Senhor, o que disse este juiz injusto. Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite, embora seja demorado em defendê-los? Digo-vos que bem depressa lhes fará justiça. Contudo quando vier o <a href="https://pt.wikipedia.org/wiki/Filho_do_homem">Filho do homem</a>, achará, porventura, fé na terra?”                                                                                                                                                                                                                                                       ― Lucas 18:1-8.</blockquote>
Uma das principais etapas do processo de amadurecimento humano é o da aceitação de que nós, os indivíduos, quando isolados de nosso contexto mais amplo, temos uma capacidade de ação muito limitada neste mundo. É somente pelo reconhecimento de que não passamos de um elo, frágil e inconsistente, em uma longa cadeia que remonta ao início dos tempos e que continuará sua trajetória muito além do breve período das nossas vidas, é que podemos encontrar a nossa verdadeira força. A humildade é infinita.
Na última segunda-feira, 5 de dezembro, realizou-se, na belíssima sede da OAB/PR, a solenidade de instalação da Subsede no Instituto dos Advogados Brasileiros (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/iab">IAB</a>) no Estado do Paraná. Trata-se da primeira Subsede do IAB, a instituição jurídica mais antiga das Américas, no sul do Brasil. Montezuma, que fundou o instituto em 1843, sob os auspícios do Imperador D. Pedro II, estaria orgulhoso de ver a pujança e a continuidade da sua obra ao longo do tempo.
Na ocasião, além de ter sido empossado como o Representante Institucional do IAB no Estado do Paraná, fui também agraciado com a Medalha Luiz Gama, condecoração desenhada por Oscar Niemeyer e concedida a personalidades que se destacam na defesa da dignidade da pessoa humana e na luta contra a discriminação racial. A honraria nos foi concedida em reconhecimento pela luta histórica, minha e de minha família, contra a discriminação.
Luiz Gama (1830-1882) foi um dos maiores vultos da nossa história. Filho de uma escrava liberta com um fidalgo português, aos 10 anos de idade fora vendido pelo próprio pai como escravo. Autodidata, Gama tornou-se um “rábula”, isto é, um advogado sem educação formal, mas que, não obstante, foi extremamente hábil em conseguir, primeiro, a sua própria libertação, por ter nascido livre, e, em seguida, a libertação judicial de mais de 500 escravos, que, por exemplo, haviam sido comercializados ilegalmente. Além disso Luiz Gama foi também jornalista e escritor, com obra fundamental para o desenvolvimento da campanha abolicionista. Um gênio e um herói indiscutível de nossa história nacional.
Minha família, igualmente, destacou-se muito cedo na campanha abolicionista e ofereci a homenagem à memória de dois familiares: Venâncio de Oliveira Ayres e o Barão Brasílio Augusto Machado de Oliveira. Ambos tiveram enorme destaque na campanha abolicionista e na defesa da dignidade humana em nosso país.
Venâncio de Oliveira Ayres (1841-1885) foi, como Luiz Gama, advogado, jornalista e escritor. Formou-se na Faculdade de Direito de São Paulo e logo conseguiu um assento como Deputado Provincial. Natural de Itapetininga, ali abriu uma banca de advocacia que se notabilizou também pelo enorme sucesso na libertação judicial de escravos. Além disso, Venâncio Ayres fundou ali o primeiro jornal da localidade, “O Município”, de onde iniciou uma intensa e pujante campanha abolicionista.
Venâncio Ayres, pouco depois, casa-se com uma sobrinha, Anna Florisbela Pinheiro Machado, e muda-se para Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, onde ele funda um dos principais jornais abolicionistas do país, “A Federação”, cuja direção ele passará, devido a problemas de saúde, para Júlio de Castilhos, líder republicano que viria a se tornar Constituinte em 1891 e Presidente do Rio Grande do Sul por muitos anos.
Como diretor d´A Federação, Venâncio Ayres destacou-se na campanha abolicionista em âmbito nacional, mantendo intensa correspondência com os maiores líderes do movimento, como José do Patrocínio. A Federação, inclusive, foi pioneira em referendar a obra clássica de Joaquim Nabuco, “O Abolicionismo”. Venâncio Ayres, contudo, não chegou a ver a abolição em 1888, tendo, infelizmente, falecido três anos antes, em 1885.
Seu último ano de vida coincidiu com o ano de gestão de um primo seu na Presidência da Província do Paraná: o Barão Brasílio Augusto Machado de Oliveira (1848-1919), que governou a então província do Império entre 22 de agosto de 1884 e 21 de agosto de 1885. O Barão Brasílio, cujo título nobiliárquico lhe fora concedido não por D. Pedro II, mas pelo Papa Pio X, pela sua defesa da fé Católica. Como Venâncio Ayres, era advogado, jornalista e escritor, tendo tido enorme destaque como fundador da Academia Paulista de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Federação Católica. Era pai do imortal José de Alcântara Machado de Oliveira, que cunhou o termo “paulista de quatrocentos anos”.
Exímio administrator, e fiel aos ditames de caridade da Igreja Católica, marcou sua gestão à frente da Província do Paraná pela concessão de uma das maiores alforrias do Império, tendo libertado 1017 cativos, reduzindo drasticamente o número de escravos na região. Ao mesmo tempo, o Barão Brasílio intensificou exponencialmente a imigração no Paraná, criando núcleos coloniais ao redor da província, que foram a principal origem da força e do desenvolvimento do Estado, toda ela baseada na diversidade e na adoção antecipada da mão-de-obra livre e imigrante. O Paraná deve a sua pujança econômica e os seus altos índices de desenvolvimento humano a Estadistas que, como o Barão Brasílio, combinavam uma alta capacidade técnico-administrativa com uma enorme compaixão pelo ser humano.
Compaixão essa que, seguramente, inspirou a edição da Lei Áurea em 1888, cujos autores, talvez com um certo grau de ingenuidade, acreditavam que encerraria a escravidão no Brasil. Ledo engano. Como bem havia alertado Joaquim Nabuco, a escravidão, para além de uma instituição social altamente nefasta e vergonhosa, havia já se tornado o modo principal de relacionamento social em nosso país, que com ela teria de conviver por muito tempo ainda. A escravidão era – e ainda o é – um câncer que corrói as entranhas da sociedade brasileira, como já denunciava José Bonifácio ao tempo da Independência.
A escravidão, apesar de abolida formalmente, continua a existir e a se espraiar em nosso país de maneira velada, disfarçada, porém reforçada, em formas de relacionamento social de uma matriz tipicamente escravocrata como o clientelismo, a corrupção, a lógica do favor. A lógica do casa-grande e senzala se manifesta no mais alto grau de personalismo e de patrimonialismo, que se traduz em relações verticais de violência e subjugação do mais fraco, que, assediado, diminuído, humilhado, tudo deve aceitar na esperança de que a sua vez vai chegar. A sua vez de assediar, subjugar, humilhar, reproduzindo assim, esse câncer que nos corrói as entranhas, em todas as esferas de relacionamento social em nosso país.
Nas relações de trabalho, por exemplo, o assédio, tanto moral quanto sexual, encontra-se generalizado no Brasil. E muitas vezes, a relação de hierarquia baseada na violência, na humilhação, na intimidação e, principalmente, na chantagem, é ainda mais presente em ambientes ditos “sofisticados e elegantes”. O diabo, muitas vezes, veste Prada.
Ao longo de minha vida, pude presenciar inúmeras vezes as pessoas sendo tratadas como coisas, como animais, o que nunca permiti e ao que sempre me opus de maneira intransigente. Até que, em certo momento, o diabo se voltou contra mim, e tentaram, diversas vezes, me subjugar, ora me perseguindo brutalmente, ora tentando me cancelar, para que nada nem ninguém tivesse coragem de me ouvir. Jogaram-me, mais de uma vez, no que São João da Cruz chama de “a noite escura da alma”, o pântano tenebroso do qual aparentemente não existem saídas.
Jamais, contudo, acreditei que o mau tem a palavra final nas coisas deste mundo. Como Luiz Gama, Venâncio Ayres e o Barão Brasílio, sempre acreditei na força da advocacia e do Direito e, como a viúva inoportuna do Evangelho de São Lucas, pedi insistentemente à Justiça, que me concedesse reparação. E pedi à Justiça dos homens que, como todos nós, seres humanos, é falha e imperfeita, mas que, por algum elemento de Graça, mais cedo ou mais tarde, e invariavelmente, nos dá uma resposta. Alguma resposta. Como a honraria que me foi concedida, por exemplo.
A Medalha Luiz Gama, entendo, não foi concedida para mim, como indivíduo isolado, mas sim como a encarnação no momento presente de uma longa cadeia de grandes homens que não se furtaram a se arriscar perante o mundo por aquilo que julgavam ser o correto, o justo, o bom e o decente. A comenda, em mim, é uma espécie de símbolo, de farol, para todos aqueles que neste momento e que em momentos futuros venham a ser vítimas de assédio, de violência, de discriminação, para que jamais sucumbam perante a ilusão de que o mau tem a última palavra e que acreditem na força do Direito e da Justiça para pedirem insistentemente, perante os tribunais humanos, uma reparação por aquilo que lhes é negado. A resposta, pela força da Fé da oração, em algum momento e invariavelmente lhes será dada. Veritas numquam perit.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “A verdade nunca perece” - Sêneca, o Jovem (4 a.C. – 65 d.C.).

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JOTA

A força da Fé e do Direito em uma sociedade ainda profundamente escravocrata

Medalha Luiz Gama

A medalha Luiz Gama, principais honrarias concedidas pelo IAB; a força da Fé e do Direito em uma sociedade ainda profundamente escravocrata.