Silvio Guidi

No final de 2020, o mundo passou a ver os primeiros passos para a imunização da população contra a Covid-19. A aprovação em tempo recorde das primeiras vacinas se deu, também, pela flexibilização dos requisitos técnicos para aprovação de imunizantes.
Em tempos de normalidade, imperam as melhores práticas internacionais para aprovação de vacinas, as quais exigem, ao menos, três etapas experimentais, a bem de atestar a efetividade da vacina, para além de controlar e dominar seus efeitos adversos.
Somente após o esgotamento de todas essas etapas, há a submissão do pedido de registro da vacina, cuja autorização para sua utilização pública depende de uma verificação exaustiva, tanto do fabricante quanto da vacina fabricada.
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A realidade pandêmica de 2020 inviabilizou o cumprimento meticuloso dessas etapas. Aguardar o esgotamento de todas as fases significava conviver tempo demais com a doença e com todos os seus agravos, muito mais severos e irreversíveis à sociedade. Em razão disso, o mundo começou a adotar medidas voltadas a diminuir o tempo de experimentação/aprovação da vacina, sem submeter a população a grandes riscos.
Dessa necessidade derivou o “uso emergencial”. Na prática, as agências sanitárias passaram a dar maior credibilidade às conclusões advindas dos estudos clínicos experimentais, em especial pelo alto nível científico empregado e pelos mecanismos de mitigação de influência econômica nos resultados técnicos. Os comitês independentes são o melhor exemplo disso.
Com essa credibilidade, os passos da autorização emergencial, a serem dados dentro das agências sanitárias, foram encurtados. Na balança, mais riscos são tomados, como a incerteza da janela de imunidade. Mas, o uso emergencial não transforma a vacinação em uma loteria. Garante-se, dentro daquilo que as ciências da saúde conseguem garantir, a segurança da população e a eficácia do imunizante.
No Brasil, no entanto, o uso emergencial ganhou ares deformadores de sua essência. No âmbito legal, algumas estratégias bem que merecem ser celebradas. Em especial, aquela posta no §7-A do artigo 3º da Lei da Pandemia nº 13.979/2020, qual seja a dispensa de uma autorização da Anvisa para vacinas aprovadas em agências sanitárias estrangeiras de primeira linha.
Já no campo infralegal (Resolução nº 444/2020 Anvisa), confundiu-se o uso emergencial com o experimental. Esse último está inserido em um ambiente científico, no qual o objetivo não é precisamente o de cuidar da saúde do indivíduo ou da coletividade, mas testar a eficácia de certo insumo de saúde, com resultados ainda de difícil controle.
O benefício ao indivíduo, se vier, será uma decorrência indireta. Tanto é assim, que nas fases experimentais, há um grupo de controle, no qual se administra somente placebo. No uso emergencial, ao contrário, a vacina já não é mais testada.
Essa confusão desaguou em uma postura que burocratizou em excesso o início do processo de imunização da população brasileira. De um lado, porque impôs protocolos típicos de procedimentos experimentais para o uso emergencial. Exemplo disso é a exigência de que todo o cidadão vacinado assine um termo, pelo qual declara sua ciência acerca dos riscos da vacina e que, ainda assim, concorda em ser vacinado.
Não que o indivíduo não tenha o direito de ser informado a respeito dos riscos aos quais estará submetido. Mas existem técnicas de comunicação muito mais efetivas do que um documento com conteúdo técnico-jurídico (tradicionalmente incompreensível ao cidadão comum), a ser assinado no mesmo instante da vacinação.
A outra possível finalidade desse termo seria uma imunidade estatal ao dever de indenizar o indivíduo, na possibilidade de ineficácia ou de eventos adversos derivados da vacinação. Essa finalidade também parece equivocada, especialmente em razão da aplicação da teoria do risco integral.
Sua aplicabilidade à hipótese ocorre em razão da vacinação do indivíduo ser meio para o fim da imunização coletiva e porque o indivíduo é confrontado com um termo que a ele transfere ao mesmo tempo os riscos de se vacinar (ineficácia ou eventos adversos) ou de não se vacinar (contaminação pela Covid).
Além dessa tentativa de compartilhamento de riscos com a população, o Estado brasileiro criou outra, qual seja a de comungar os riscos com os fabricantes ou fornecedores das vacinas. Trata-se de hipótese prevista na recente Medida Provisória nº 1.026, de 06 de fevereiro de 2021.
<blockquote class="jota-article__eye">Essa MP trouxe um regime excepcional, supostamente com o único objetivo de acelerar a aquisição de insumos necessários à imunização social, especialmente por meio da dispensa de licitação para essas contratações.</blockquote>
Mas, pelo artigo 5º dessa MP, “será obrigatória a previsão de matriz de alocação de riscos entre contratante e contratado” para contratos superiores a 200 milhões. A adoção de uma matriz de riscos em contratos públicos representa uma evolução da legislação brasileira.
A aplicação de suas premissas acaba com uma distribuição ineficiente de riscos contratuais, passando para uma orientação que visa a alocar o risco à parte contratual que melhor tem condições de geri-lo (seja impedindo sua materialização ou mitigando os seus efeitos, na hipótese de sua concretização).
Apesar de a técnica de alocação eficiente de riscos ser motivo de comemoração, sua aplicação para esses contratos emergenciais de saúde parece ter resultado oposto. Algumas razões permitem essa conclusão. A primeira delas é o evidente desejo de transferir o risco de ineficácia da vacina ou de eventos adversos, postura que contraria a racionalidade que orientou os laboratórios nesse período emergencial.
Não faz sentido os laboratórios tomarem esse risco, porque foi a urgência estatal que impôs o encurtamento das etapas de autorização das vacinas. Ou seja, para atender a uma necessidade pública os laboratórios diminuíram alguns gatilhos para evitar a materialização desses riscos. Parece um contrassenso devolver essa responsabilidade aos laboratórios.
Outro elemento relevante é que a matriz de riscos é sempre fruto de estudos de alto nível, geralmente desenvolvidos por órgãos governamentais técnicos e até mesmo por consultores privados independentes. A matriz também é desafiada por um stress test, seja no momento de sua submissão a consultas e audiências públicas, seja pela fiscalização das instâncias de controle.
Isso, sem falar nas impugnações feitas em licitação. Num regime emergencial de contratação, esse processo conformador da matriz de riscos não acontece, havendo grandes chances da matriz de riscos desenhada para aquisição de vacinas ser deficiente e, provavelmente, excessivamente favorável ao contratante público.
Mas esse favorecimento ao ente público reverte em desfavorecimento à sociedade. Isso em razão de duas questões: a precificação dos riscos adicionais alocados à esfera dos laboratórios/fornecedores (o preço da vacina aumenta); o desestímulo para o fornecimento ao Brasil, sempre que houver condições mais favoráveis apresentadas por outros países. E em tempos de escassez desses insumos, não será difícil encontrar países mais dispostos a assumir os riscos que o Brasil parece não querer correr.
E parece intuitivo querer correr esses riscos, porque não são incertos e de dimensões incalculáveis. O nível de segurança dado pelo regime emergencial deixa evidente que efeitos adversos ou a ineficácia da vacina para certos indivíduos serão muito excepcionais (milhões já foram vacinados e até agora nada de grave foi reportado).
Assumir esses riscos parece ter impacto econômico e sociais muito menores do que aqueles que seguem sendo experimentados há praticamente um ano (desemprego, retração econômica, colapso do sistema de saúde etc.).
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE

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JOTA

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