Thaís Pinhata

Isabelle Gibson

O ministro Luís Roberto Barroso, do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a>, reconheceu no último dia 17, um dia depois da morte do ex-governador de São Paulo Luiz Antônio Fleury Filho, o trânsito em julgado de duas decisões que mantiveram a sentença do Superior Tribunal de Justiça de restabelecer as condenações dos policiais militares envolvidos no massacre do Carandiru. 
O massacre do Carandiru completou 30 anos no último dia 2 de outubro como a maior chacina carcerária da história do Brasil, ainda sem nenhum servidor envolvido ter sido penalizado, o que mudará agora, com a certificação do trânsito em julgado que, ao retornar para o Tribunal de Justiça de São Paulo (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjsp">TJSP</a>), permitirá as primeiras prisões.  
Ao TJSP caberá analisar uma apelação dos agentes e estabelecer as penas – sendo que de tal decisão pode caber recurso. Os policiais foram considerados culpados pelas mortes, sendo aplicadas diferentes penas para cada um dos grupos participantes. As penas mais altas foram para os soldados da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), que ocuparam o terceiro pavimento (segundo andar) do Pavilhão 9, no qual mais de dois terços dos presos mortos foram encontrados. Com a decisão de Barroso, encerrou-se a tramitação do caso no STF, que analisou dois recursos extraordinários com agravo. 
Diversos outros massacres se sucederam desde aquele longínquo 1992, entretanto os números ainda impressionam: 111 custodiados mortos e mais de uma centena de feridos.  
A Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru, abrigava 7.257 presos, alojando mais que o dobro dos internos que sua capacidade permitia. Desse total, 2.706 presos estavam recolhidos no Pavilhão 9: a maioria era composta por jovens entre 18 a 25 anos de idade e muitos sequer tinham sido condenados, isto é, estavam presos preventivamente.  
Esses detentos estavam encarcerados em 248 celas: oito presos em média ocupavam cada cela, nas quais se amontoavam sem espaço físico. Nesse contexto degradante, às 14h do dia 2 de outubro de 1992, dois presos começaram a brigar com outros reclusos no segundo andar do pavilhão. Com o fim da briga, os guardas fecharam o acesso ao corredor, aglomerando e confinando os detentos, que conseguiram romper as trancas e iniciaram o motim. Rebeliões eram comuns naquela época – devido à superlotação carcerária, às condições de vida dos detentos e ao número reduzido de guardas penitenciários – e rapidamente a Polícia Militar foi acionada, iniciando uma ação marcada por gravíssimas violações aos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade no Carandiru: homicídios, lesões corporais e uso excessivo de violência. 
Nos autos do processo de responsabilização, a reconstituição dos fatos informa que o hoje falecido coronel Ubiratan Guimarães, comandante do Policiamento Metropolitano, foi acionado por Ismael Pedrosa, diretor da Casa de Detenção, assumindo o poder de decisão por volta das 14h51. Junto a ele, foram acionados o Comando do Policiamento de Choque de São Paulo, na pessoa do tenente-coronel da PM Luiz Nakaharada, os juízes Ivo de Almeida e Fernando Antônio Torres Garcia, além do então secretário de Segurança Pública, Pedro Franco Campos. Mais tarde, somaram-se a eles três batalhões especiais: o Gate, o COE e a Rota, com aproximadamente 350 policiais.  
Pontualmente às 15h30, a tropa de choque estacionou do lado de fora da muralha da prisão, sendo recebida pelos presos com faixas nas janelas indicando um pedido de trégua, pedido corroborado pelo desfazer de armas, com o lançamento, pelos detidos, de suas facas e estiletes pelas janelas. Apesar do grande tumulto e de algum sinal de fogo, a denúncia apresentada pelo Ministério Público informa que nada indicava que haveria resistência ou mesmo fuga.  
Prevendo um possível desastre, o diretor da Casa de Detenção se propôs à uma última negociação, que nunca chegou a acontecer. Às 16h30 é feita a entrada no pavilhão 9, destinado aos presos provisórios, em sua maioria, réus primários. Ingressaram nas galerias 325 policiais militares sem as respectivas insígnias e crachás de identificação. Não foi permitida a presença de autoridades civis durante a invasão. A maioria dos presos refugiou-se em suas celas, onde muitos deles foram mortos. Onze horas depois, após a meia-noite, a PM se retirou da prisão e a guarda penitenciária assumiu seu posto.  
Ao final do confronto foram encontrados 111 detentos mortos: 103 vítimas de disparos (515 tiros ao todo) e 8 devido a ferimentos promovidos por objetos cortantes. Não houve policiais mortos. Houve ainda 153 feridos, sendo 130 detentos e 23 policiais militares. Os laudos necroscópicos[1] indicam que a maior parte dos detentos morreu com tiros na cabeça ou no tórax, em uma clara evidência de ação de execução.
Quando foram autorizados pela polícia a ingressar no pavilhão, os juízes declararam que viram canos, facas, paus, correntes e pedras no chão, assim como muitos prisioneiros nus, sentados no chão com as mãos sobre a cabeça. Segundo a perícia, foram verificadas rajadas de metralhadoras a cerca de 50 centímetros do solo, o que demonstra que muitos foram mortos ajoelhados. Todas as marcas de bala foram disparadas em uma só direção, o que demonstrava que não houve tiros em direção aos policiais.  
Os presos que sofreram lesões corporais graves tiveram que esperar vários dias antes de terem atendimento e os primeiros oito feridos que foram encaminhados ao hospital morreram antes ou logo após chegarem a ele, o que indica que também foram executados no trajeto.  
Imediatamente após o massacre, as principais provas que teriam permitido identificar pessoalmente os responsáveis sumiram: policiais militares destruíram as provas que poderiam determinar a responsabilidade de cada um dos homicídios. Até a tarde do dia seguinte, as famílias das vítimas não receberam informação alguma. A lista oficial de vítimas só foi divulgada em 8 de outubro, seis dias após o massacre. Jornalistas foram inicialmente impedidos de divulgar o fato e dois fotógrafos chegaram a ser encaminhados à delegacia por estarem fotografando a remoção dos corpos.  
O massacre do Carandiru ocupa, neste momento, o 3º lugar em número de mortos no ranking dos piores casos conhecidos de violência em prisões no mundo, atrás apenas do massacre na prisão militar de Tadmor (Síria), em 27 de junho de 1980, no qual membros da Brigada de Defesa executaram cerca de 500 presos por determinação do presidente Hafez al-Assad, e do massacre de Lima e Callao (Peru), em 18 de junho de 1986, quando o governo peruano declarou a região dos presídios como zona de guerra e convocou as Forças Armadas para reprimir os motins restando em pelo menos 244 mortes. 
Em 22 de fevereiro de 1994, dois anos após o massacre do Carandiru, foi apresentada denúncia contra o Estado brasileiro perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Juntamente, foram denunciadas as lamentáveis condições carcerárias que contribuíram para a ocorrência do massacre, bem como a morosidade da Justiça brasileira em identificar, julgar e punir os responsáveis pelas graves violações. 
Após a realização de quatro audiências sobre o caso (uma em 1995, duas em 1996 e uma em 1997), descartou-se a possibilidade de solução amistosa, sendo prolatada decisão no sentido de que o Estado brasileiro havia incorrido em responsabilidade internacional pela violação de diversos direitos substantivos da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, tanto em razão das execuções sumárias cometidas por agentes do Estado, quanto pela obstrução e demora injustificada para o julgamento dos responsáveis individuais pelas ações.  
O relatório da comissão ressaltou que a ação da polícia foi efetuada com absoluto desprezo pela vida dos detentos, demonstrando-se uma atitude retaliativa e punitiva, absolutamente contrária ao papel do Estado como garante dos direitos dos presos, na condição de responsável pelos estabelecimentos carcerários. Tais mortes não decorreram de condutas em legítima defesa, nem para desarmar os detentos, uma vez que as armas que tinham em sua posse, de fabricação caseira, haviam sido depostas no pátio ao entrarem os policiais. Qualquer atitude violenta dos presos foi rapidamente superada pela entrada maciça da polícia fortemente armada. 
Por tais razões, a CIDH determinou a realização de investigação completa, imparcial e efetiva para identificar e processar as autoridades e funcionários responsáveis pelas violações dos direitos humanos; adoção das medidas necessárias para que as família recebessem indenização adequada pelas violações; desenvolvimento de políticas e estratégias destinadas a descongestionar a população das casas de detenção com o objetivo de prevenir surtos de violência nesses estabelecimentos.  
Passados 30 anos do caso, o quadro de violações massivas de direitos humanos de pessoas privadas de liberdade continua em vigor no Estado brasileiro. Nenhum agente responsável pelas violações no Carandiru foi responsabilizado ou punido. A decisão de Barroso abre espaço para, finalmente, vermos alguma resposta estatal.
Por outro lado, o número de pessoas privadas de liberdade no país aumentou exponencialmente: ocupamos o terceiro lugar mundial em número de pessoas presas. Além disso, no Brasil, encarcera-se principalmente crimes patrimoniais e tráfico de drogas, sendo certo que a maioria dos presos são jovens negros. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, na ADPF 347/DF, declarou a inequívoca falência do sistema prisional brasileiro: o tribunal constatou o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário nacional, em razão da violação massiva e persistente de direitos fundamentais nas prisões brasileiras.  
A lembrança dos fatos, e os primeiros desfechos condenatórios agora possíveis, são necessários e urgentes para trazermos à tona os fatos ocorridos no massacre do Carandiru há 30 anos, como registro máximo de desprestígio à vida humana, para repensarmos as práticas diárias de nossas polícias, que seguem vitimando intra e extramuros.
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[1] Christovão, Nanci Tortoreto. Os 111 laudos necroscópicos do Carandiru: evidências de uma execução (dissertação). São Paulo: FGV, 2015.

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JOTA

Quadro de violações de direitos humanos de pessoas privadas de liberdade continua em vigor no Estado brasileiro

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Quadro de violações de direitos humanos de pessoas privadas de liberdade continua em vigor no Brasil 30 anos após o massacre do Carandiru