Patrick Mariano

<blockquote class="jota-article__quote">
<p dir="ltr">“Então, Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se estavam queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado, retirou-se para a eternidade. A penúltima imagem que ainda viu foi a de espingardas apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o dos disparos, mas na última imagem já havia corpos caídos sangrando, e o último som estava cheio de gritos e de lágrimas”. <span style="color: #4d4d4d; font-family: Roboto, sans-serif; font-size: 0.875em; font-style: normal; font-variant-caps: normal;">José Saramago</span></p>
</blockquote>
<p dir="ltr">No dia 17 de abril de 1996, cerca de 1.500 trabalhadores rurais sem-terra, acampados às margens da curva do S, em Eldorado dos Carajás, sudeste do Pará, pretendiam ir a pé e em marcha até a capital Belém, para reivindicar a desapropriação para fins de reforma agrária da fazenda Macaxeira, ocupada por 3,5 mil famílias.</p>
<p dir="ltr">O contexto daquela luta das famílias era a mesma de milhares de famílias sem-terra no Brasil, naquela metade da década de 90: reivindicar a execução de uma política constitucionalmente assegurada, a Reforma Agrária, em um país em que a distribuição da terra era e, ainda é, uma das mais desiguais do planeta.</p>
<p><a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a></p>
<p dir="ltr">A caminhada daquelas famílias, que tinha começado no dia 10 de abril, foi interrompida por incontáveis disparos de arma de fogo da Polícia Militar paraense, indiscriminadamente despejadas sobre os corpos de crianças, jovens, mulheres e homens, todos trabalhadores em busca de terra e trabalho. O resultado da tragédia, que ficou mundialmente conhecida como o Massacre de Eldorado dos Carajás: 21 camponeses mortos, 19 no local do ataque, e outros dois que faleceram no hospital.</p>
<p dir="ltr">Três meses antes do massacre, em 5 de março de 1996, as famílias haviam ocupado a fazenda Macaxeira – em Curionópolis, município vizinho a Eldorado – e buscavam negociação com Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para iniciar o processo de desapropriação da terra improdutiva. Sem respostas e tendo recebido promessas que nunca foram cumpridas, os camponeses decidiram protestar na capital.</p>
<p dir="ltr">A marcha partiu de Curionópolis e pretendia passar por Eldorado dos Carajás e Marabá, antes de chegar a Belém. Quem assistiu às imagens gravadas pela TV Liberal, afiliada da Rede Globo no Pará, pode ver a violência que vitimou as famílias sem-terra em Eldorado. A repórter Marisa Romão chegou a pedir aos policiais aos gritos de "só tem mulher e criança".</p>
<p dir="ltr">O problema da questão agrária no Brasil está diretamente ligado à injusta distribuição da propriedade da terra, em um país cuja formação territorial tem a nódoa indelével da escravidão. O abolicionista Joaquim Nabuco, em célebre discurso publicado em 1884, já vaticinava que de nada adiantaria acabar com a escravidão se permanecesse intacta a estrutura fundiária que a sustentava.</p>
<p dir="ltr">Passados 25 anos do massacre de Eldorado, o vaticínio de Nabuco se mostra cada vez mais presente na realidade brasileira. Ao mesmo tempo em que a concentração da propriedade da terra não diminuiu, a violência direta de proprietários conta não somente com a anuência do Estado, como em certas oportunidades divide o protagonismo no papel ativo contra esses homens e mulheres, vítimas de um sistema econômico que os oprime, aprisiona e assassina.</p>
<blockquote class="jota-article__eye" dir="ltr"><p>A reforma agrária não apenas não se tornou uma realidade, como ainda estampa as bem intencionadas direções da Constituição Cidadã de 1988 para construção de um Estado de direito verdadeiramente democrático.</p></blockquote>
<p dir="ltr">Se o comando constitucional determina sua efetivação, os governantes que não a cumprem são diretamente responsáveis por essa violência contra milhões de trabalhadores rurais sem terra.</p>
<p dir="ltr">Importante que se diga que o sangue desses brasileiros, como o de tantos outros a exemplo da chacina de Felisburgo, do assassinato de Chico Mendes e Irmã Dorothy, não foram totalmente em vão. Muitas conquistas também marcaram esses anos, assentamentos, cooperativas e uma vida um pouco mais digna para milhões de brasileiros, no entanto, só será completamente honrada a memória desses lutadores quando realizada uma massiva e verdadeira reforma agrária no país. Até lá, esses mártires continuarão, com grandeza, a emprestar o exemplo das suas vidas para gerações e gerações de homens e mulheres, herdeiros da sua luta.</p>
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Eldorado do Carajás_1996_Pesquisa de imagens Arquivo e Memória MST_ Foto J.R. Ripper

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JOTA

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