Bernardo Abreu de Medeiros

Thiago C. Araújo

Rafael Sérgio de Oliveira

Os marketplaces se tornam cada vez mais populares no mundo das compras eletrônicas. Gigantes como Amazon e eBay possibilitam a vendedores disponibilizar suas mercadorias para legiões de possíveis adquirentes. Em poucas palavras, os marketplaces são uma dentre muitas possibilidades de e-procurement (aquisições eletrônicas)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, que utiliza uma plataforma digital para oferecer produtos e serviços de inúmeros vendedores para possíveis compradores.
Esse modelo de aquisições pode ser utilizado para compras públicas? Tal possibilidade parece estar cada vez mais próxima: o governo federal anunciou medidas para a criação de um marketplace para compras públicas, tendo, inclusive, realizado <a href="https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/julho/governo-debate-com-sociedade-implantacao-de-marketplace-para-compras-publicas" target="_blank" rel="noopener noreferrer">audiência pública</a> sobre o tema. Mas será a adoção de um modelo de marketplace, nos termos pretendidos pelo governo federal, a panaceia para os problemas de aquisições públicas no Brasil?
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Compras públicas tendem a ser extremamente custosas para o erário. Além de questões referentes ao preço dos produtos e serviços adquiridos, que podem apresentar custos mais elevados em relação às aquisições entre particulares, o próprio procedimento licitatório envolve uma série de custos de transação relacionados à burocracia que, em algumas situações, acabam por consumir mais recursos do que a futura contratação. A utilização de plataformas de marketplace para compras públicas pretende, justamente, atenuar esse problema.
Para compreender a relevância dos marketplaces para as contratações públicas, é necessário ter em vista seus principais atributos. Inicialmente, eles são exemplo de um mercado de dois lados (two-sided market), também chamados mercados multilaterais (multi-sided markets), nos quais diversas plataformas possibilitam a interação entre usuários finais, e buscam incentivos para atrair tais usuários, que remunerarão a plataforma através da cobrança de taxas.
Além disso, atuam de forma dinâmica, mediando os interesses entre os compradores e os vendedores. É de interesse desse tipo de intermediário que haja um grande volume de transações, pois quanto mais transações houver, mais dinheiro será movimentado e mais taxas serão cobradas.
Os pagamentos são instantâneos, efetuados através de cartões de crédito, boletos bancários ou instrumentalizados por meio de utilidades como o PayPal, ou, no caso brasileiro, do recém-criado Pix.
Por fim, as plataformas desempenham ainda funções relevantes de screening – rastreio de qualidade<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>– e rating – atribuição de uma nota de acordo com a performance. O marketplace funciona como screening na medida em que força os vendedores a fornecerem informações valiosas, sobretudo referentes a preços, mitigando o problema de assimetria informacional.
Funciona, ainda, como rating por possibilitar a conferência de notas aos vendedores, notas essas referenciadas com base na execução pretérita de contratos. Vendedores ruins são, assim, punidos, mitigando o problema de seleção adversa.
Diversos países utilizam marketplaces para compras públicas: a Itália, com o MePa; o Chile, com o ChileCompra Express; a Índia com o IndiaGoveMktpl; e o Reino Unido com o UK CrownCommercial. No Brasil, mesmo antes do estabelecimento do marketplace federal, alguns <a href="https://www.e-compras.am.gov.br/publico/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">entes subnacionais</a> já criaram seus próprios <a href="https://www.compras.rs.gov.br/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">portais de compras</a>. Mas o que podemos, afinal, esperar do portal de compras federal? Qual desenho adotará? Será, de fato, a revolução que se almeja?
Conforme veiculado pelo <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/ministerio-de-economia-quer-marketplace-para-licitacoes-ate-o-fim-do-ano-24072020">JOTA</a>, a proposta do Ministério da Economia é, ao menos inicialmente, criar o marketplace para hipóteses de dispensa de licitação. A ideia seria permitir ao Poder Público, ao invés de percorrer os trâmites habituais de uma dispensa, adquirir, diretamente via portal, produtos e serviços permanentemente disponibilizados por diversos fornecedores.
Enquanto o marketplace federal não for uma realidade, estaremos restritos a um exercício de futurologia. Há, contudo, disposições normativas vigentes que pavimentam o caminho para a formalização do marketplace independentemente de maiores alterações legislativas.
Um primeiro prenúncio do marketplace é a ata de registro de preços. A formação da ata permite aos aderentes ter catalogados, previamente, os preços e informações referentes aos bens e serviços a serem adquiridos. Uma segunda etapa pode ser enxergada através do chamado sistema de dispensa eletrônica, introduzido pelo art. 51 do Decreto Federal nº 10.024/2019, o novo regulamento do pregão eletrônico<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
O aludido dispositivo permite a utilização de um sistema eletrônico para aquisições de bens e serviços comuns abrangidos pelas hipóteses de dispensa de licitação enumeradas pelos incisos do art. 24 da lei nº 8.666/93. Tal sistema não foi, contudo, implementado, estando pendente da regulamentação exigida pelo parágrafo 1º do art. 51.
Apesar do entusiasmo no anúncio da proposta, pairam dúvidas sobre a possibilidade de entregar aquilo que se promete com o arcabouço vigente. Isso porque o desenho normativo atual não fornece os incentivos necessários para a criação de um marketplace adequado. A adstrição ao valor da dispensa, bem como as limitações na formação de atas de registros de preços geram um cenário que lembra duas realidades caricaturais: a loja de R$ 1,99 e o filme Adeus, Lenin.
A loja de R$ 1,99 pela tendência à formação de um mercado de produtos de baixa qualidade; e Adeus, Lênin em razão da provável pouca variedade de produtos disponibilizados para aquisição dos gestores. Não seria, assim, a panaceia prometida aos males que acometem as compras públicas. A criação do marketplace deve ser acompanhada por alterações jurídicas mais substanciais que viabilizem as potencialidades do sistema.
Ponto central é o aumento do valor limite da dispensa. Atualmente, em razão do estado de calamidade pública decorrente da crise de Covid-19, esse limite é de 50 mil reais para compras e serviços em geral e de 100 mil reais para obras e serviços de engenharia, conforme Lei nº 14.065/2020.
Esse também é o limiar previsto para o regime de contratação das empresas públicas e das sociedades de economia mista (art. 29, I e II, da Lei nº 13.303/2016). Entretanto, ultrapassado o estado de calamidade pública, a Administração Pública direta, autárquica e fundacional volta aos limites de R$ 17.600,00 para compras e serviços em geral e de R$ 33.000,00 para obras e serviços de engenharia (art. 24, I e II, da Lei nº 8.666/1993 c/c o Decreto nº 9.412/2018).<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">Esses valores são significativamente baixos e, por isso, retiram do marketplace o potencial que ele tem de gerar bons resultados, aproximando o modelo do indesejável cenário da loja de R$ 1,99.</blockquote>
Seria interessante também que se adotasse a pré-qualificação nos moldes previstos para as empresas estatais (art.64 da Lei nº 13.303/2016). Ou seja, haveria um cadastro prévio na plataforma de licitantes e dos respectivos bens e serviços; quando a Administração desejasse contratar algo, ela dispararia o anúncio dentro da plataforma e apenas os cadastrados poderiam apresentar as suas propostas; esse anúncio seria composto de um edital simplificado, já que os licitantes já teriam sua habilitação e seus produtos previamente analisados pela Administração.
Esse é um modelo interessante para a aquisição de bens, serviços e obras considerados comuns, nos termos do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520/2002. Seria algo semelhante a um pregão eletrônico – julgado apenas pelo preço, porém mais simplificado.
Ademais, há experiências estrangeiras que podem contribuir para o modelo brasileiro. A introdução no ordenamento jurídico brasileiro de acordos-quadro com um sistema dinâmico de aquisições, como o <a href="https://www.crowncommercial.gov.uk/help-and-support/frameworks/dynamic-purchasing-system/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">britânico</a>, poderia potencializar a ferramenta.
O referido arranjo dinâmico é similar aos acordos-quadros habituais, com a diferença de permitir a participação de novos entrantes que satisfaçam os critérios de seleção, o que aumenta a variação de itens disponíveis e confere o dinamismo necessário para que não se caia no cenário Adeus, Lênin<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Por fim, seria muito útil a sistematização jurídica de modelos de centralização de contratações, inclusive com a possibilidade de compartilhamento entre entes da federação. A estrutura de muitos municípios brasileiros não comporta a instituição de uma boa estrutura para contratações públicas, de modo que a instituição de centrais interfederativas seria uma maneira de proporcionar a esses entes municipais a estrutura de que carecem.
A criação de um marketplace federal será acompanhada de muito entusiasmo em um primeiro momento. É natural. A novidade fascina o ser-humano, e os operadores do Direito não fogem à regra. É preciso, contudo, ter uma boa dose de realismo. Evitar a realidade da loja de R$ 1,99 e a escassez de produtos da moribunda Alemanha Oriental retratada pelo filme Adeus, Lenin será o maior desafio do futuro portal de compras.
O atual estado da arte jurídica nacional de aquisições públicas não parece promissor para evitar esse prognóstico pessimista. É necessária uma certa dose de inovação. Os países que já disponibilizam portais de compras públicas terão muito a oferecer ao Brasil nessa fase de implantação.
Buscar neles inspiração, importando aquilo que deu certo e adequando à realidade brasileira parece ser um bom caminho. Apenas criar o marketplace, sem o adequado desenho jurídico, se mostrará, em verdade, apenas como remendo novo em uma roupa velha.
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O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça:
https://youtu.be/a6M2upbiCFY
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Conforme esclarece Pop Sitar Corina, não há um conceito definitivo de e-procurement, pois se trata de um gradiente de possibilidades que vai desde a compra direta através de modalidades de leilão reverso a iniciativas colaborativas que acontecem em ambientes virtuais. Pode se entender as aquisições eletrônicas como soluções de compras baseadas na web, com o escopo de simplificar transações comerciais a partir da utilização da tecnologia da informação para realização de pedidos; operação de logística; e manutenção de sistemas de pagamentos. (CORINA, Pop Sitar. The role of the e-procurement in the purchasing process. Annals of Faculty of Economics, v.1, n. 1, p. 687-691, 2011.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> STIGLITZ, Joseph. The Theory of “Screening”: Education, and the Distribution of Income. The American Economic Review, v. 65, n. 3, 1975, p. 283-300. Disponível em: &lt;http://www.jstor.org/stable/1804834&gt;. Acesso: 21 de outubro de 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> NÓBREGA, Marcos, TORRES, Rony. Licitações Públicas e E-Marketplace: um sonho não tão distante. O licitante. Disponível em: &lt;<a href="http://www.olicitante.com.br/marketplace-sonho-distante/">http://www.olicitante.com.br/marketplace-sonho-distante/</a>&gt;. Acesso em 20 de outubro de 2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> O Projeto de Lei nº 1.292/1995, que dispõe sobre um novo regime de contratação pública brasileiro, amplia os limites da dispensa em razão do valor, igualando-o ao previsto para as empresas estatais.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> OZBILGIN, Izzet; IMAMOGLU, Meltem. The impact of dynamic purchasing systems in the electronic public procurement processes. Procedia Computer Science, v. 3, 2011, p. 1571-1575. Disponível em: &lt;<a href="https://doi.org/10.1016/j.procs.2011.01.051">https://doi.org/10.1016/j.procs.2011.01.051</a>&gt;. Acesso em 23 de outubro de 2020.

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JOTA

Criação do marketplace deve ser acompanhada por alterações jurídicas que viabilizem potencialidades do sistema

Marketplace à brasileira: entre o R$ 1,99 e 'Adeus, Lênin'?

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