Hélio Roberto Silva de Sousa

Discutir o marco legal do transporte interestadual de passageiros no Brasil é, antes de tudo, um tributo à segurança jurídica, por vezes tão esquecida pelos aplicadores do direito.
A concessão de serviços de transportes de passageiros remonta, quase que como gêmeos siameses, à transformação da antiga Comissão de Estradas e Rodagens Federais no Departamento Nacional de Estradas e Rodagens - DNER, fruto da <a href="https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-1939/lei-467-31-julho-1937-555595-publicacaooriginal-74903-pl.html#:~:text=Art.,da%20Via%C3%A7%C3%A3o%20e%20Obras%20P%C3%BAblicas.&amp;text=promover%20entendimento%20com%20os%20Estados,estradas%20de%20rodagem%20do%20Pa%C3%ADs.">Lei n. 467/1937</a> que, ao positivar as atribuições do novel Departamento dispôs, ainda que de forma tímida, que a este caberia “conceder, regulamentar e fiscalizar os serviços de transporte coletivo nas estradas de rodagem”.
A Lei n. 467/1937 permaneceu vigente durante as Constituições de 1934 e 1937, conquanto estas duas Cartas Políticas apenas tangenciassem o instituto da concessão, prevendo sua aplicação, de forma expressa, para um restrito número de serviços público, a exemplo dos serviços de radiodifusão.
Cerca de 12 anos depois, em 1945, foi editado o Decreto-Lei n. 8.463, cujo fim foi o de reorganizar o então DNER. Quanto ao transporte coletivo de passageiros, limitou-se a reproduzir o que continha na norma anterior, acrescentando a expressão “passageiros”, o que melhor direcionava as concessões a serem realizadas neste setor. Assim dizia o texto: “Ao Departamento Nacional compete (...) a concessões de serviços de transporte coletivo de passageiros”.
Apenas 7 dias após a Constituição de 1967 ser outorgada (24 de janeiro de 1967), foi editado o Decreto-Lei n. 122, de 31 de janeiro de 1967, o qual, já em seu artigo 2º versava sobre a concessão de serviços de transporte coletivo de passageiros, assim dispondo:
Art. 2º Ao DNER compete (...), bem como exercer a política de trânsito (...), inclusive no que se refere às concessões dos serviços de transporte coletivo de passageiros. (grifo nosso)
Passados pouco mais de 2 anos, visando à regulação da Política Nacional de Viação Rodoviária, foi editado o Decreto-Lei n. 512/1969, normativo este que inseriu em tal Política a “concessão, permissão e fiscalização do serviço de transporte coletivo de passageiros e de carga, nas estradas federais ou de ligação, interestaduais e internacionais”.
Mesmo sem detalhar quais casos tratariam de concessão e quais tratariam de permissão, a norma buscou estruturar esses modelos de outorga, máxime porque o Estado não tinha condições de prestar esse serviço com capilaridade e eficiência.
Pois bem. O Decreto-Lei n. 512/1969 vigeu até o ano de 2001, sendo tacitamente revogado pela Lei n. 10.133 que criou a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/antt">ANTT</a>, DNIT e ANTAQ, além de extinguir o antigo DNER.
Em 1986 foi editado importante normativo que buscou dar previsibilidade e segurança jurídica aos operadores: Decreto n. 92.353. Este Decreto diferenciou as concessões das permissões, sendo aquelas provenientes de concorrência pública (art. 11, I) e estas provenientes de seleção sumária (art. 11, II).
No que tange às empresas que já operavam na data da edição deste Decreto, foi-lhes concedida a natureza jurídica de permissionárias, conforme dispôs o Decreto em seu art. 139: “Os serviços regulares atualmente existentes são enquadrados no regime de permissão”.
As outorgas concedidas após a elaboração do Plano dos Serviços Rodoviários Interestaduais e Internacionais de Transporte Coletivo de Passageiros (art. 7º) receberam a natureza jurídica de concessões.
Para estas, o Decreto n. 92.353/1996, em seu art. 17, II, assim dispôs:
Art. 17 - Constarão, obrigatoriamente, do "Contrato de Concessão" cláusulas que determinem:
II - prazo de duração de 20 (vinte) anos consecutivos, renovável por iguais períodos, desde que a concessionária, a critério do DNER, haja desempenhado satisfatoriamente suas obrigações contratuais e regulamentares.
Ora, parece que se está diante de verdadeiro direito subjetivo assegurado a estes prestadores de serviço, vez que, cumpridos os requisitos de desempenho, dever-se-ia garantir a renovação dos referidos contratos.
Malgrado a revogação do Decreto n. 92.353/1986 pelo Decreto n. 952/1993, parece estarmos diante de verdadeiro direito subjetivo da concessionária, sob a égide do ato jurídico perfeito, o qual não pode ser prejudicado pela nova ordem constitucional, nos termos do art. 5º, XXXVI, da Carta Maior.
Com o advento da Constituição de 1988, foram inseridas no texto constitucional (além das concessões e permissões) as autorizações de serviços públicos, conforme se extrai do art. 21, XII, “e”, da CR/88.
Visando adequar a norma que regia o tema à Carta Constitucional em vigor, foi editado o Decreto n. 952/1993, que, segundo sua ementa: “Dispõe sobre a outorga de permissão e autorização para a exploração de serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros (...)”.
Buscando conferir segurança jurídica às outorgas existentes desde 1937, o Decreto 952/1993 assim dispôs:
Art. 94. Ficam mantidas, sem caráter de exclusividade, pelo prazo de quinze anos, prorrogável por igual período, as atuais permissões e autorizações, decorrentes de disposições legais e regulamentares anteriores.
Observe-se o caráter amplo e geral trazido pela referida norma ao citar “decorrentes de disposições legais e regulamentares anteriores”, não se limitando a determinado lapso temporal, abarcando toda e qualquer outorga vigente, decorrente de norma anterior.
Todavia, o referido Decreto deu prazo de validade de 15 anos para essas permissões e autorizações, deixando claro ao próprio poder público, e aos agentes privados, que o setor deveria passar por processo licitatório, caminho natural ao se considerar o novo marco jurídico-constitucional.
Em seguida, foi editado o famigerado Decreto n. 2.521/1998, que, sob a pretensão de regulamentar a lei geral de concessões (lei n. 8.987/95), assim dispôs:
Art. 98. Em atendimento ao disposto no artigo 42 do Lei nº 8.987, de 1995, ficam mantidas, sem caráter de exclusividade, pelo prazo improrrogável de quinze anos contado da data de publicação do Decreto nº 952, de 7 de outubro de 1993, as atuais permissões e autorizações decorrentes de disposições legais e regulamentares anteriores.
A ratio essendi do Decreto n. 2.521/1998 foi regulamentar o art. 42 da lei geral de licitações, que havia prorrogado pelo prazo previsto no contrato ou no ato de outorga as concessões firmadas até a vigência daquela lei, observado o dispositivo que afirmava que as concessões de serviço público outorgadas, sem licitação, antes da CR/88, deveriam ser extintas.
Ora, quis a lei n. 8.987/1995 prorrogar apenas os contratos de concessão, ou se deve interpretar tal prorrogação às permissões e às autorizações, conquanto não tenha assim disposto de forma expressa?
De mais a mais, o Decreto n. 2.521/1998 se fulcrou no art. 84, VI da CR/88. Neste ponto, há que se reconhecer que o referido dispositivo constitucional (Art. 84, VI), ao tratar do Decreto Autônomo, restringiu sua aplicabilidade à organização da administração pública, não se subsumindo à criação de regras e direitos afetos ao serviço de transporte de passageiros, o que deveria ser realizado por meio de lei formal, em homenagem ao princípio da legalidade apregoado no art. 5º, II, da CR/88.
Diante da iminência do término do prazo de 15 anos concedido pelo Decreto n. 952/1993, sem que os serviços tenham sido regularmente licitados, coube à ANTT (criada em 2001) editar duas Resoluções, 2.868 e 2.869, ambas de 2008, positivando o até então desconhecido instituto das “Autorizações Especiais”.
Em suma, as referidas Resoluções alteraram os “nomes” das outorgas que já existiam, dando-lhes nova roupagem (Autorizações Especiais), até que se realizassem as licitações exigidas pela Constituição da República.
Por fim, no ano de 2014, o Congresso Nacional editou a Lei n. 12.996, que, em seu art. 5º, apregoou que as Autorizações Especiais criadas pela ANTT deveriam ser extintas até o dia 20/06/2015, mantendo as “permissões” apenas para os serviços de característica semiurbana (cidades contíguas em Estados diferentes), restando o modelo de autorizações para todos os outros tipos de serviços de transportes de passageiros.
Não se pode olvidar que a lei que n. 12.996/14 é objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (5.549 e 6.270), pendentes de julgamento pelo STF.
Essa viagem pelo marco legal do transporte interestadual de passageiros deve nos fazer ponderar sobre o fato de que estamos diante de um complexo arcabouço jurídico-legal, no qual se podem identificar contratos revestidos do ato jurídico perfeito, além da necessidade de tratar tais contratos sob a ótica do direito intertemporal, sem desconsiderar a norma constitucional vigente, mas garantindo-lhes segurança jurídica, princípio basilar na aplicação do direito, ao lado da necessidade de abertura dos mercados a novos agentes, mormente aqueles que propõem a inovação do setor e uma melhor prestação de serviços ao usuário.
Essa transição de modelo não deve prejudicar os contratos firmados, de modo a se resguardar os investimentos já realizadas, devendo, por outro lado, permitir a entrada de novos agentes, como fator de inovação e atendimento da vontade do legislador, derrubando as cláusulas de barreira desarrazoadas, tudo isso por meio de uma regulação sadia que proporcione segurança jurídica a quem opera e àqueles que operarão o setor, ouvindo todos os interessados, sempre com foco na melhor prestação de serviço ao usuário.

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JOTA

Transporte de passageiros entre estados é um tributo à segurança jurídica

Marco Legal do Transporte Interestadual de passageiros no Brasil

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