Luiz Alberto Rodrigues Gonçalves

"Vocês desrespeitaram o povo brasileiro, que estava morrendo, transmitindo o show daquela pornográfica. Aquilo é um ritual satânico e todo mundo sabe. Estavam fazendo oferenda com os corpos do Rio Grande do Sul. Qualquer um que tem o mínimo de entendimento sabe o que estava acontecendo naquele lugar." Essa declaração foi feita em uma live do influenciador digital e empresário <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pablo-marcal">Pablo Marçal</a> após o show da cantora Madonna no Rio de Janeiro, em 4 de maio, em referência à transmissão ao vivo pela TV Globo. Em seguida, foi distribuída por inúmeros perfis de cortes no TikTok, Instagram, Discord e YouTube.
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Marçal destacou-se nas redes sociais vendendo cursos com a proposta de prosperidade por meio de “mudança de mentalidade”. Também teve destaque por performances de caráter religioso, como a tentativa de fazer uma mulher cadeirante voltar a andar.
A grande exposição que conseguiu com as lives e a mobilização de doações durante as enchentes no Rio Grande do Sul, em maio deste ano, fizeram a sua imagem extrapolar os limites de sua bolha digital, o que facilitou o passo político de se lançar <a href="https://www.jota.info/eleicoes/quem-sao-os-candidatos-a-prefeito-de-sao-paulo-nas-eleicoes-municipais-de-2024">candidato a prefeito de São Paulo</a>. A declaração ligando a Globo e Madonna a um ritual de oferenda de corpos representou um pico de exposição da sua mensagem para o público conservador de direita, especialmente o eleitor bolsonarista, e atravessou a fronteira de um fenômeno que não é novo: o chamado pânico satânico.
O conceito tem origem na expressão “pânico moral”, usada no livro Folk Devils and Moral Panics (Demônios folclóricos e pânico moral, em tradução livre), do sociólogo e criminalista britânico Stanley Cohen. Os “demônios” do título são pessoas, figuras ou objetos considerados pela opinião pública como a razão de todos os males, que se apresentam como um agente de comportamento social desviante.
Conforme Cohen, “uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas emerge para ser definido como uma ameaça aos valores e interesses sociais; sua natureza é apresentada de maneira estilizada e estereotipada pelos meios de comunicação de massa; as barricadas morais são conduzidas por editores, bispos, políticos e outras pessoas com pensamento de direita; especialistas credenciados socialmente pronunciam seus diagnósticos e soluções; formas de enfrentamento são desenvolvidas ou (mais frequentemente) reordenadas; a condição então desaparece, submerge ou se deteriora e se torna mais visível”.
O sociólogo Francis Moraes de Almeida, em <a href="https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2021/06/18/o-que-e-panico-satanico-e-como-ele-tem-atrapalhado-investigacoes-desde-1970.htm">entrevista ao UOL</a>, detalhou o fenômeno afirmando que “o pânico satânico é um tipo específico de pânico moral, centrado na crença em rituais e cultos satanistas e na certeza de que o Mal, encarnado, está por trás de algum crime. Geralmente está relacionado a relatos de abusos sexuais a crianças por supostos cultos satânicos”.
A ampliação deste fenômeno está intrinsecamente ligado ao fato de o pânico satânico ser também um fenômeno midiático, cujos casos ganharam ambientação de conspiração de satanistas pela dominação mundial, principalmente nos Estados Unidos.
No território norte-americano ocorreram diversos casos, incluindo supostos abusos de crianças relacionados a rituais promovidos por adoradores do demônio entre o final dos anos 1970, com maior incidência nos anos 1980 e 1990. Nesse período, o pânico satânico se expandiu em um momento no qual o “sonho americano” estava em crise, causado por fatores como a derrota na Guerra do Vietnã, transmitida quase em tempo real pela televisão, causando a descrença em valores tradicionais.
Além de assassinatos, brinquedos e músicas foram incluídos no rol do pânico satânico. No Brasil ficaram famosas as lendas urbanas de que o boneco do personagem Fofão teria um punhal em seu interior, para assassinar crianças à noite, e que os discos de vinil da apresentadora Xuxa quando ouvidos na rotação contrária teriam mensagens demoníacas.
Nos EUA destacaram-se eventos que despertaram a fúria antissatanista contra a prática do jogo de interpretação de papéis, o RPG (Role-Playing Game). Em 1993, os jovens Damien Echols, Jessie Misskelley Jr. e Jason Baldwin formaram um clube de Dungeons &amp; Dragons (D&amp;D) chamado “Gryphons &amp; Gargoyles” (“Grifos e Gárgulas”). O grupo usava para a ambientação das partidas de D&amp;D miniaturas de chumbo, representando monstros do RPG, e músicas de heavy metal.
Foi o suficiente para que eles fossem acusados de uma série de assassinatos cruéis que ocorreram na cidade natal de Damien, West Memphis, no Tennessee. Damien recebeu a pena de morte e seus amigos do grupo foram condenados à prisão perpétua. Os três foram julgados novamente em 2011 por meio de exames de DNA, sendo considerados inocentes e libertados.
O pânico satânico tende a estar presente quando discursos que apelam aos extremos ressurgem. A ascensão de Donald Trump nas eleições de 2016 está vinculada a essa retomada, com o discurso do MAGA (Make America Great Again), assim como do ex-presidente Ronald Reagan em seus dois mandatos na década de 1980, época que o fenômeno se expandiu fortemente.
O ódio incitado pelo pânico satânico relaciona-se com a leitura superficial de textos, ocasionando interpretações baseadas em viés de confirmação de conceitos pré-estabelecidos, que operam dentro do conceito do pensamento mágico-imagético-circular.
Em sua obra O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade, o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser apresenta o que define ser o pensamento mágico-imagético-circular, referindo-se às primeiras narrativas humanas, que eram imagéticas, não textuais, como comprovam os desenhos pictóricos, pinturas rupestres e estênceis de mãos encontrados em cavernas na África, na Ásia, na Europa e no Brasil.
Para o pesquisador da Comunicação Vinicius de Souza, em seu livro Quer que desenhe? Imagens, fake news e mudança no modo de pensamento, o tipo de pensamento mágico-imagético-circular é “um modo de raciocínio pelo qual qualquer pessoa, mesmo com pouca instrução, pode obter informações a partir das semelhanças entre os objetos que conhece e sua representação imagética. No pensamento mágico-imagético-circular, o olhar circula pela imagem, retirando dela seus significados de uma única vez. As imagens contam histórias, sendo, portanto, também uma forma de narrativa”.
A consequência imediata é a produção de julgamentos rápidos e imagens pré-concebidas, levando grupos a comportamentos e ações extremas contra pessoas ou mesmo objetos considerados fora do padrão aceitável em sociedade. Para Flusser, em oposição a essa forma de pensamento está a que é baseada em textos, o pensamento tempo-histórico-linear, que pressupõe uma relação de causa e consequência.
No caso de Marçal, o discurso incitando pânico satânico em relação ao show de Madonna resultou, exatamente no dia seguinte, em um ganho de popularidade no termômetro de buscas Google Trends entre os assuntos e palavras-chave mais buscados no Brasil, no filtro dos últimos 12 meses.
Quatro meses depois dos eventos narrados, o hoje político <a href="https://www.jota.info/eleicoes">Marçal é candidato a prefeito</a> da maior capital do país pelo PRTB, crescendo nas pesquisas de intenções de voto. Sua campanha tem protagonizado o que pode ser chamado de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/bolsonarismo">bolsonarismo</a> 2.0, aliando novas estratégias de marketing digital para o mundo político, as mesmas que usou por anos para vender cursos com ênfase em programação neurolinguística.
Os adversários ainda tentam um contraponto à estratégia de choque de Marçal, divulgando denúncias sobre seus aliados do presente e o envolvimento no passado com uma quadrilha condenada por fraude bancária.
Se o pânico satânico será novamente usado para alavancar sua campanha, não sabemos. Mas é notório que o pacto que Marçal fez com esse fenômeno social e midiático lhe trouxe resultados em um alto volume, sem necessidade de ouvir um LP ao contrário, mas apenas o velho disco riscado, como na canção “Não vale a pena”, de Maria Rita:
De repente, cai o nível 
E eu me sinto uma imbecil 
Repetindo, repetindo, repetindo 
Como num disco riscado 
O velho texto batido.

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JOTA

Pacto que o candidato a prefeito de São Paulo fez com esse fenômeno social e midiático lhe trouxe resultados em alto volume

Marçal e o pânico satânico

Pacto que Pablo Marçal, candidato a prefeito de São Paulo, fez com fenômeno do pânico satânico lhe trouxe resultados em alto volume