Felipe Tavares

A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm">Lei 14.026/2020</a> foi uma das leis mais discutidas na sociedade brasileira para a sua implementação. Conhecida como novo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/novo-marco-legal-do-saneamento">Marco Legal do Saneamento Básico</a>, a lei trouxe inovações já vistas em outros setores que ainda não eram internalizadas no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/saneamento">saneamento</a>, sendo a principal delas as metas de universalização do artigo 11-B, definindo que os contratos de prestação dos serviços devem auferir 99% de água tratada e 90% de esgoto coletado e tratado para a população até 2033.
Após esta breve introdução, já entende-se a segunda grande inovação do novo Marco do Saneamento, que é colocar os titulares do serviço como responsáveis pela universalização, sendo estes passíveis de punição, bem como as agências reguladoras <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Em relação às agências reguladoras, tem-se a terceira grande inovação do novo Marco, que coloca as agências como corresponsáveis pela universalização, além de ter inserido a responsabilidade pela uniformização regulatória do setor de saneamento à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/agencia-nacional-de-aguas">Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico</a> (ANA), tendo a atribuição de produzir normas de referência para o setor.
Por fim, porém não menos importante, o novo Marco Legal do Saneamento colocou em pé de igualdade as empresas licitadas e as empresas estaduais que operavam via contratos de programa que não passaram por licitação, pois todos os contratos de programa foram obrigados a passar por um processo de comprovação de capacidade econômico-financeira para aditivação dos seus contratos com as metas de universalização. A obrigatoriedade para tal comprovação foi dada pelo artigo 10-B da lei e o Decreto 10.710/2021 regulamentou o processo.
Assim, todas as empresas que operassem via contratos de programa e as privadas que tivessem o interesse em aditivar os seus contratos para incluir as metas de universalização deveriam enviar os documentos comprovatórios até o dia 31 de dezembro de 2021 para as agências infranacionais e teriam mais cinco dias para encaminhar as cópias à ANA. As agências infranacionais deveriam finalizar o processo até 31 de março de 2022.
O processo era relativamente simples, pelo menos do ponto de vista das etapas e do que deveria ser considerado em cada uma delas. Em termos gerais, as empresas teriam que dividir a sua comprovação em duas fases: uma em que apresentariam indicadores gerais de liquidez do grupo econômico e outra na qual apresentariam um plano de investimentos detalhado sobre os investimentos que comporiam o processo de universalização dos serviços.
É importante destacar que o processo incluía documentos específicos obrigatórios, como o termo de anuência dos titulares. Outro ponto importante a considerar é que qualquer documento ausente na comprovação colocaria o prestador de serviços em situação ingrata, pois este estaria em desconformidade com o rito do decreto e, consequentemente, o contrato passaria a ser irregular e sujeito a sanções do titular.
Embora muitos casos sejam extremamente discutíveis no processo, como prestadores que não apresentaram termo de anuência com os titulares ou reguladores fizeram comprovação da capacidade econômico-financeira por amostragem, esse não é o principal ponto deste artigo (aguarde o próximo).
O tema aqui é o número representativo de municípios que foram abandonados pelas empresas estaduais para auferir a capacidade de investimentos, pois foram mais de mil municípios deixados de lado neste processo que agora terão que buscar alternativas à provisão dos seus serviços, como prestação direta ou concessões.
Os dados utilizados neste texto são de um estudo conduzido pela FT Economics que está em processo de publicação.
O estudo mostra que existem dois motivos gerais que fizeram os municípios ficarem de fora do processo de comprovação da capacidade econômico-financeira das empresas estaduais:
<ol>
<li>municípios de empresas estaduais que não comprovaram a capacidade econômico-financeira, seja por motivos de não apresentação ou por reprovação (Saneacre, Cosama, Caer, Cosanpa, ATS, Caema, Agespisa, Copanor, Caerd em Ji-Parana e Águas de Serra do Ramalho e Cedae);</li>
<li>municípios que não foram incluídos no processo de comprovação da capacidade econômico-financeira, seja por motivos de contratos irregulares (vencidos, sem prazo etc.) ou por vencimento próximo ou sem nenhuma explicação (são necessárias ressalvas para alguns casos, pois existem empresas que apresentaram justificativas plausíveis para a exclusão).</li>
</ol>
As empresas estaduais que operavam via contratos de programa detinham um total de 3.862 municípios sob operação. Após o processo de comprovação de capacidade econômico-financeira, restaram 2.764, isto é, um total de 1.098 municípios ficaram sem prestador de serviços – 28% do total inicial. Destaca-se a região Norte, que teve uma redução de 88% dos municípios atendidos após decreto. Contudo, é importante relembrar que um estudo do Trata Brasil apontou Macapá como a pior capital em termos de saneamento básico no país, mas o Amapá foi um dos pioneiros no processo de concessão dos serviços de água e esgoto, estando hoje em um processo acelerado de melhoria e sendo um dos exemplos de retomada no país.
Em números absolutos, a região Nordeste foi a que teve mais municípios que deixaram de ser atendidos pelas empresas estaduais, totalizando 662, que representam 47% do número inicial. Ainda no Nordeste, destaca-se Salvador, cujo contrato não tinha prazo de vigência, sendo esta a causa da capital baiana ter sido excluída do processo de comprovação de capacidade econômico-financeira.
A Tabela 1 apresenta os resultados preliminares do estudo por região, enquanto a Tabela 2 apresenta os resultados por operador.
Tabela 1 – Nº de municípios atendidos por empresas estaduais em 2020, após decreto e variações
<table width="669">
<tbody>
<tr>
<td width="118">Regiões</td>
<td width="138">Nº municípios operados por empresas estaduais em 2020</td>
<td width="137">Nº municípios após Decreto</td>
<td width="138">Nº municípios deixaram de ser atendidos</td>
<td width="138">% municípios que deixaram de ser atendidos</td>
</tr>
<tr>
<td width="118">Norte</td>
<td width="138">188</td>
<td width="137">23</td>
<td width="138">143</td>
<td width="138">86%</td>
</tr>
<tr>
<td width="118">Nordeste</td>
<td width="138">1.423</td>
<td width="137">761</td>
<td width="138">662</td>
<td width="138">47%</td>
</tr>
<tr>
<td width="118">Centro-Oeste</td>
<td width="138">294</td>
<td width="137">187</td>
<td width="138">107</td>
<td width="138">36%</td>
</tr>
<tr>
<td width="118">Sudeste</td>
<td width="138">1.101</td>
<td width="137">981</td>
<td width="138">120</td>
<td width="138">11%</td>
</tr>
<tr>
<td width="118">Sul</td>
<td width="138">856</td>
<td width="137">813</td>
<td width="138">43</td>
<td width="138">5%</td>
</tr>
</tbody>
</table>
&nbsp;
Tabela 2 – Nº de municípios atendidos pelos prestadores estaduais em 2020 e após o processo de comprovação de capacidade econômico-financeira
<table style="height: 1978px; width: 692px;" width="692">
<tbody>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Sigla</td>
<td style="width: 203.75px;">Nº de municípios antes</td>
<td style="width: 139.734px;">Nº de municípios depois</td>
<td style="width: 212.273px;">Municípios que deixaram de ser atendidos</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Saneacre</td>
<td style="width: 203.75px;">22</td>
<td style="width: 139.734px;">0</td>
<td style="width: 212.273px;">22</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Casal</td>
<td style="width: 203.75px;">10</td>
<td style="width: 139.734px;">10</td>
<td style="width: 212.273px;">0</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Cosama</td>
<td style="width: 203.75px;">14</td>
<td style="width: 139.734px;">0</td>
<td style="width: 212.273px;">14</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Embasa</td>
<td style="width: 203.75px;">366</td>
<td style="width: 139.734px;">289</td>
<td style="width: 212.273px;">77</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Cagece</td>
<td style="width: 203.75px;">152</td>
<td style="width: 139.734px;">149</td>
<td style="width: 212.273px;">3</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Cesan</td>
<td style="width: 203.75px;">53</td>
<td style="width: 139.734px;">46</td>
<td style="width: 212.273px;">7</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Saneago</td>
<td style="width: 203.75px;">226</td>
<td style="width: 139.734px;">121</td>
<td style="width: 212.273px;">105</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Caema</td>
<td style="width: 203.75px;">140</td>
<td style="width: 139.734px;">0</td>
<td style="width: 212.273px;">140</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Copanor</td>
<td style="width: 203.75px;">78</td>
<td style="width: 139.734px;">0</td>
<td style="width: 212.273px;">78</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Copasa</td>
<td style="width: 203.75px;">582</td>
<td style="width: 139.734px;">568</td>
<td style="width: 212.273px;">14</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Sanesul</td>
<td style="width: 203.75px;">68</td>
<td style="width: 139.734px;">66</td>
<td style="width: 212.273px;">2</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Cosanpa</td>
<td style="width: 203.75px;">53</td>
<td style="width: 139.734px;">1</td>
<td style="width: 212.273px;">52</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Cagepa</td>
<td style="width: 203.75px;">200</td>
<td style="width: 139.734px;">48</td>
<td style="width: 212.273px;">152</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Compesa</td>
<td style="width: 203.75px;">173</td>
<td style="width: 139.734px;">161</td>
<td style="width: 212.273px;">12</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Agespisa</td>
<td style="width: 203.75px;">155</td>
<td style="width: 139.734px;">0</td>
<td style="width: 212.273px;">155</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Sanepar</td>
<td style="width: 203.75px;">345</td>
<td style="width: 139.734px;">329</td>
<td style="width: 212.273px;">16</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Cedae</td>
<td style="width: 203.75px;">15</td>
<td style="width: 139.734px;">0</td>
<td style="width: 212.273px;">15</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Caern</td>
<td style="width: 203.75px;">156</td>
<td style="width: 139.734px;">48</td>
<td style="width: 212.273px;">108</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Caerd</td>
<td style="width: 203.75px;">37</td>
<td style="width: 139.734px;">22</td>
<td style="width: 212.273px;">15</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Caer</td>
<td style="width: 203.75px;">15</td>
<td style="width: 139.734px;">0</td>
<td style="width: 212.273px;">15</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Corsan</td>
<td style="width: 203.75px;">316</td>
<td style="width: 139.734px;">306</td>
<td style="width: 212.273px;">10</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Casan</td>
<td style="width: 203.75px;">195</td>
<td style="width: 139.734px;">178</td>
<td style="width: 212.273px;">17</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Deso</td>
<td style="width: 203.75px;">71</td>
<td style="width: 139.734px;">56</td>
<td style="width: 212.273px;">15</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Sabesp</td>
<td style="width: 203.75px;">373</td>
<td style="width: 139.734px;">367</td>
<td style="width: 212.273px;">6</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">ATS</td>
<td style="width: 203.75px;">47</td>
<td style="width: 139.734px;">0</td>
<td style="width: 212.273px;">47</td>
</tr>
<tr>
<td style="width: 75.6797px;">Total</td>
<td style="width: 203.75px;">3.862</td>
<td style="width: 139.734px;">2.764</td>
<td style="width: 212.273px;">1.098</td>
</tr>
</tbody>
</table>
Fonte: Elaboração própria com dados do SNIS e da ANA<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a><a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Diante dos dados, é importante destacar que grande parte dos contratos de municípios que não foram apresentados no processo de comprovação da capacidade econômico-financeira estavam vencidos ou não continham cláusulas obrigatórias para que estes fossem válidos, como prazos de vigência. Neste quesito, é importante que os órgãos competentes, como os Ministérios Públicos, atuem ativamente para garantir que as prestações de serviços sejam dadas em termos jurídicos adequados e em conformidade com a legislação vigente, permitindo a segurança para realização dos investimentos necessários à universalização.
Vale destacar que os mais de mil municípios que não foram incluídos no processo de comprovação de capacidade econômico-financeira representam oportunidades de investimentos para as localidades e para as empresas, pois são potenciais concessões. É crucial que os prefeitos entendam o seu papel neste processo rapidamente, pois, como já dito, eles são os responsáveis pela universalização, seja via concessão ou prestação direta. Ainda, nesse processo é importante considerar que com o encerramento da prestação do serviço pelas companhias estaduais, estas reivindicarão indenizações aos municípios, o que praticamente inviabiliza a prestação direta. No caso de se optar por uma licitação, o novo Marco Legal do Saneamento permite que esse pagamento seja transferido ao novo prestador do serviço, o que tende a tornar o processo mais viável e célere.
Por fim, destaca-se que o processo de comprovação da capacidade econômico-financeira não tem por objetivo prejudicar a população, dificultar a prestação do serviço público ou muito menos encarecer o serviço à população. Aliás, o objetivo é exatamente o oposto, pois infelizmente o Brasil possui ainda 15% da sua população sem água tratada e 44% sem esgoto coletado e tratado porque as empresas públicas estaduais não tinham condições de cumprir as suas obrigações contratuais e pelos próprios contratos de programa serem elaborados de forma precária.
Desta maneira, o Decreto e todo o processo de normatização das metas nos contratos visam a pactuar com a sociedade que o cenário de prestação de serviço precária chegará ao fim, exigindo garantias de que o prestador consiga entregar a universalização prometida.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> artigo 11-B § 2º: Contratos firmados por meio de procedimentos licitatórios que possuam metas diversas daquelas previstas no caput deste artigo, inclusive contratos que tratem, individualmente, de água ou de esgoto, permanecerão inalterados nos moldes licitados, e o titular do serviço deverá buscar alternativas para atingir as metas definidas no caput deste artigo, incluídas as seguintes
artigo 45... 
6º A entidade reguladora ou o titular dos serviços públicos de saneamento básico deverão estabelecer prazo não superior a um ano para que os usuários conectem suas edificações à rede de esgotos, onde disponível, sob pena de o prestador do serviço realizar a conexão mediante cobrança do usuário.
<ul>
<li>
 7º A entidade reguladora ou o titular dos serviços públicos de saneamento básico deverá, sob pena de responsabilidade administrativa, contratual e ambiental, até 31 de dezembro de 2025, verificar e aplicar o procedimento previsto no § 6º deste artigo a todas as edificações implantadas na área coberta com serviço de esgotamento sanitário.
</li>
</ul>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/noticias-e-eventos/noticias/ana-divulga-relacao-dos-prestadores-de-servicos-de-agua-potavel-ou-de-esgotamento-sanitario-que-apresentaram-documentacao-de-capacidade-economico-financeira">https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/noticias-e-eventos/noticias/ana-divulga-relacao-dos-prestadores-de-servicos-de-agua-potavel-ou-de-esgotamento-sanitario-que-apresentaram-documentacao-de-capacidade-economico-financeira</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="http://www.snis.gov.br">http://www.snis.gov.br</a>

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JOTA

Locais representam oportunidades de investimentos, pois são potenciais concessões com o novo Marco do Saneamento

Mais de mil municípios abandonados na comprovação de capacidade financeira

Saneamento: Municípios não incluídos na comprovação de capacidade financeira das empresas públicas são oportunidades de investimento