Antonio Carlos Sirqueira Rocha

Reza o artigo 37 caput da Constituição da República que a Administração Pública obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Mas o que significa isso sob o ponto de vista das Procuradorias Fazendárias? Caberia a elas tão-somente defender e exigir o crédito tributário a todo custo?
Antes de mais nada, uma resposta adequada ao problema deve se ater que princípios se diferenciam de regras na medida em que resgatam o mundo prático. Dada a premissa de que se fundem no tempo histórico no qual estão inseridos, evidencia-se que o uso correto deles depende da melhor justificativa no contexto em que figuram<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
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Levando-se isso a efeito, o sentido a ser conferido aos princípios administrativos, sob a perspectiva das Procuradorias Fazendárias, será aquele que melhor atingir o objetivo pertinente atribuído a eles. Obviamente, tal intento somente logrará êxito se se tomar em consideração o horizonte atual, com todas as suas transformações no âmbito cultural, social, econômico e tecnológico.
Especificamente no âmbito de suas atribuições na esfera tributária, as Procuradorias da Fazenda estão obrigadas a se situarem rumo ao caminho para onde a tributação se dirige, isto é, guiar-se para o interior da relação entre as Administrações Fazendárias e os contribuintes. Assim, a compreensão acerca dos signos presuntivos de riqueza tributável perpassa captar o que acontece no seio do comportamento de seus usuários.
Atualmente, revela-se que o fenômeno da tributação está sendo fortemente influenciado pela digitalização (lato sensu). Pedindo-se vênia pelo empréstimo de estrangeirismo, tornou-se comum sua caracterização pelo uso de termos como digital economy, tax and digilitalization, digitalization in tax, diglitalization of tax collection, digital tax etc.
Realmente, o uso de tecnologias disruptivas, a exemplo da aplicação de RPA, Big Data, Data Analytics, IA’s, BI, alteraram drasticamente o mundo tributário. Seu impacto provocou a remodelagem de negócios e modos de produção tanto dos Fiscos quanto dos contribuintes, de maneira que ambos experimentaram um salto gigantesco de eficiência e, portanto, a tributação deixou de ser a mesma.
No Brasil, a mudança mais profunda se deu a partir da criação da Nota Fiscal Eletrônica – Nfe (Ajuste SINIEF 07/05) e, em seguida, com a instituição do Sistema Público de Escrituração Digital – SPED (Decreto nº 6.022, de 22 de janeiro de 2007). Toda a massa de dados recepcionada, reflexo de cada operação dos contribuintes, passou a ser tratada para possibilitar soluções decisórias preditivas e prescritivas.
Diante dessas modificações, pensamos que as Procuradorias das Fazendas Públicas precisam, urgentemente, revisitar o paradigma do tradicional escritório de advocacia no qual estão inseridos. A figura dos paladinos da justiça, que militam até às últimas instâncias, não mais promove o valor dos princípios administrativos em questão.
Prova da premente necessidade da reelaboração do conceito e papel desempenhado pelas Procuradorias das Fazendas Públicas são os dados alarmantes divulgados pelo CNJ<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Dos números apresentados, evidenciou-se que 3 entre os 5 assuntos com maior recorrência são classificações e subclassificações de matérias tributárias.
Identificou-se, também, que os processos de execução fiscal representam 39% dos casos pendentes e 70% das execuções pendentes no Poder Judiciário, realçando-se que estes alcançaram um percentual de taxa de congestionamento de 86,9%. De se lembrar, ainda, que as estatísticas do STF<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> registraram impressionantes 18.209 decisões colegiadas no ano de 2020, das quais 10,41% são de matéria tributária.
Sem dúvida alguma, é conclusivo que o litígio tributário em massa acaba comprometendo toda a dinâmica e estrutura do Poder Judiciário, contribuindo para a sua morosidade e ineficiência. Doutra banda, outro efeito colateral da litigiosidade é o fomento a decisões heterogêneas, criando um palco de grande imprevisibilidade e insegurança para todos (contribuinte e Fisco).
A partir desse diagnóstico, reafirmamos que a representação judicial da Fazenda Pública merece ser repensada para o enfrentamento de direitos interindividuais. Nessa conjuntura, os conceitos de “lide” ou de “causa” são insuficientes para lidar com a complexidade do fenômeno da macrolitigância fiscal.
Alçados ao altiplano das exigências e possibilidades de contemporaneidade, os princípios administrativos devem se orientar pela evolução e transformações deflagradas pelo processo tecnológico, sempre tendo em mente a satisfação dos direitos fundamentais. Assim, uma compreensão atualizada deles passa a ganhar densidade normativa com a aplicação dos conceitos de governança, compliance e gestão. Mais do que ocupar-se de teses jurídicas, é necessário desenvolver uma estrutura de organização centrada em soluções sistêmicas, preditivas e assertivas.
A título de exemplo, frisamos que as diversas autorizações para dispensa de contestar e recorrer existentes no âmbito das Procuradorias não se confundem, necessariamente, com o modelo de integridade ora esboçado, na medida em que elas fazem mais do que reconhecer a força impositiva e vinculante dos provimentos jurisdicionais.
No modelo que propomos, temas pacificados jurisprudencialmente -- ressalvada a possibilidade de distinguishing e overruling, avaliando-se o custo-benefício à luz dos riscos envolvidos --, nem mesmo deveriam estar sobrecarregando o Poder Judiciário. Isto é, a administração deveria adotar medidas preventivas para evitar a própria necessidade de intervenção Judicial na matéria, promovendo, por exemplo, acordos de cooperação multilateral, intermediando o diálogo entre o Poder Judiciário e órgãos da administração implicados na execução da lei – uma espécie de tutela estrutural.
A diagramação de macroprocesso antecipa-se às disputas, uma vez que sua arrumação está voltada para o cliente, com uma abordagem submetida a uma gestão de risco de conformidade (Compliance Risk Management). Nesse sentido, a OCDE<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> destaca que as administrações fazendárias se transformaram em grandes corporações justamente por se alinharem ao padrão de integridade.
Pelo exposto, a Fazenda Pública 4.0 deve priorizar uma atuação “fora” do juízo. As Procuradorias precisam se organizar segundo os modelos de governança e integridade. Nessa reconfiguração, preponderam-se decisões estratégicas, fundadas em esquemas preditivos e prescritivos extraídos das análises geradas pelas ferramentas tecnológicas. Em última instância, portanto, a correta aplicação dos princípios administrativos depende da mediação com o tempo histórico deflagado pela era digital, não se limitando mais a anacrônicos conceitos vinculados à noção de mera burocracia legalista.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Aludimos à diferença prática que Ronald Dworkin defende em A raposa e porco-espinho: Justiça e Valor. Tradução por Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Justiça em Números 2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: <a href="https://portal.stf.jus.br/estatistica/">https://portal.stf.jus.br/estatistica/</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a>Relatório disponível em: <a href="https://receita.economia.gov.br/noticias/ascom/2017/outubro/receita-federal-tem-participacao-em-publicacao-da-organizacao-para-a-cooperacao-e-desenvolvimento-economico-ocde/fta-tax-administration-2017-comparative-information-on-oecd-and-other-advanced-and-emerging-economies.pdf">https://receita.economia.gov.br/noticias/ascom/2017/outubro/receita-federal-tem-participacao-em-publicacao-da-organizacao-para-a-cooperacao-e-desenvolvimento-economico-ocde/fta-tax-administration-2017-comparative-information-on-oecd-and-other-advanced-and-emerging-economies.pdf</a>.

Fotos produzidas pelo Senado

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JOTA

Caberia as Procuradorias Fazendárias tão-somente defender e exigir o crédito tributário a todo custo?

Macrolitigância fiscal no mundo digital: Fazenda Pública em juízo 4.0

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