Carlos Eduardo Ferreira de Souza

Daniel Becker

Gabriela Sotomayor

Em abril, a desembargadora Maria Laura Tavares, da 5ª Câmara de Direito Público do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjsp">TJSP</a>, manteve a <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/protecao-de-dados/reconhecimento-facial-metro-de-sp-23032022">decisão proferida em primeiro grau que impedia a execução do sistema de reconhecimento facial</a><a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e o tratamento de dados biométricos dos usuários do Metrô de São Paulo<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o que inflamou o debate sobre o uso desses sistemas baseados em inteligência artificial para fins de vigilância e segurança. Sob o aspecto da privacidade e proteção de dados pessoais, com o devido acatamento, as decisões parecem equivocadas.
Com frequência, a tecnologia é adotada como resposta do governo e das empresas privadas às exigências e reivindicações da sociedade sobre duas de suas maiores preocupações: a violência e a insegurança. Se no contrato social de Rousseau, o indivíduo deveria ceder parcela de sua liberdade e de seus direitos em prol da segurança coletiva, questiona-se: o uso dessa tecnologia representaria um excesso na equação por violar o direito à privacidade e proteção de dados pessoais? A resposta inicial é negativa, pelo menos sob o ponto de vista da legislação brasileira.
Não há motivos para não utilizar a tecnologia em benefício da população, seja na área da educação, da saúde, de transportes ou da segurança pública. No caso do Metrô de São Paulo, a própria decisão judicial esclarece que a concessionária realizou investimento de grande monta, permitindo que prossigam com a instalação dos equipamentos, obstando somente a captação dos dados biométricos até o trânsito em julgado da ação. Tais valores deveriam ser repassados em benefícios para a população, entretanto, a transmissão positiva desses resultados encontra-se impedida.
A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lgpd">LGPD</a> não pode ser vista como um obstáculo à inovação e à busca de soluções tecnológicas capazes de melhorar os serviços públicos e privados. Pelo contrário, a inovação e o desenvolvimento são fundamentos trazidos pelo art. 2º, V da própria lei. Se, de um lado, o titular tem direito à proteção de dados pessoais, de outro, figura como titular de diversos outros direitos, como a vida, a integridade, a segurança, a propriedade e tantos outros que são resguardados por tecnologias voltadas para a vigilância, sobretudo em espaços públicos e de ampla circulação de pessoas.
Portanto, a solução não deveria ser a proibição do uso da tecnologia de reconhecimento facial, mas sim a verificação de adequação do seu uso, como objetiva a LGPD, que não proíbe o tratamento de dados pessoais ou de dados pessoais sensíveis, mas traz parâmetros a serem cumpridos para garantir a regularidade das operações realizadas. Dessa forma, o importante é que haja a definição clara e específica da finalidade do tratamento dos dados pessoais, a utilização dos dados para o cumprimento estrito dessa finalidade, a definição adequada da base legal, a elaboração dos documentos regulatórios e a adoção de medidas técnicas e administrativas necessárias, além da garantia de transparência em relação aos titulares de dados.
Frise-se que a observância da legislação deve ser um verdadeiro compromisso dos agentes de tratamento, tendo em vista decisões internacionais contrárias ao uso da tecnologia. Em agosto de 2021, a Autoridade Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) multou a famosa rede de supermercados Mercadona em 2,5 milhões de euros por uso de sistema de reconhecimento facial em contrariedade ao <a href="https://dataprivacymanager.net/what-is-gdpr-general-data-protection-regulation/">Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR)</a>. Nesse caso, entretanto, o propósito do sistema era identificar indivíduos com condenações criminais anteriores, especialmente aqueles com ordens de restrição emitidas ou que haviam sido condenados por incidentes ocorridos na loja.
Já no Metrô SP, somente 15% das câmeras contarão com a funcionalidade do reconhecimento facial, sendo utilizadas apenas em casos específicos e esporádicos, como busca de desaparecidos, identificação de usuário que tenha cometido crime nas suas dependências ou, ainda, após determinação judicial. A outra grande maioria seguirá o padrão já utilizado e se restringirá à identificação comportamental de pessoas e objetos, sem identificação pessoal dos passageiros, visando maior segurança e proteção dos passageiros, o que o distancia do caso analisado pela Autoridade Espanhola.
Devem ser ainda levados em consideração os dados estatísticos de criminalidade da capital paulistana, que, segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, viu um roubo a cada quatro minutos em 2021 e 563 homicídios dolosos no mesmo ano, além do aumento de 15% dos casos de latrocínio se comparados ao ano de 2020. O próprio Metrô SP, ao se manifestar nos autos, menciona, por exemplo, que, com a maior agilidade no monitoramento, alguns crimes poderiam ter sido evitados, entre eles a morte do ambulante atacado na estação<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> e o da morte da criança que se soltou da mãe, saindo do vagão quando as portas do transporte se fechavam<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Apesar da identificação de suspeitos não ser a principal função das câmeras, um breve parênteses deve ser feito nesse ponto, já que não há regulamentação quanto ao uso do reconhecimento facial como elemento probatório. A fim de comprovar a autoria e a materialidade do crime, faz-se necessário que os indícios oriundos do uso dessa tecnologia sejam corroborados com outros elementos probatórios, sob pena de nulidade. Essa postura evita injustiças e decisões arbitrárias e seletivas, tais como as noticiadas sobre a inobservância do procedimento de reconhecimento pessoal e fotográfico descrito no art. 226 do Código de Processo Penal<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> e do entendimento dos tribunais superiores<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. O desrespeito a qualquer formalidade do procedimento probatório, é, portanto, rechaçado.
Por ser uma operação que trata “dados biométricos”, descritos no art. 5º, II da LGPD como dados sensíveis, é exigida uma maior cautela no tratamento, mas sem proibição da sua realização. Para que seja lícita e legítima, a operação deve apoiar-se em uma das oito bases legais do art. 11 da LGPD. Nesse ponto, cumpre destacar que nenhum dos dispositivos da lei faz diferenciação hierárquica entre as hipóteses de tratamento, sendo elas igualmente importantes em peso e cabimento, afirmação que desconstrói o mito do protagonismo do consentimento.
Desse modo, apesar de ser inviável exigir o consentimento de todos aqueles que cruzam diariamente as estações do Metrô SP, esse não seria um empecilho à operação, já que haveria outras bases legais aptas a justificar a operação, tal como a proteção à vida ou da incolumidade física dos titulares (art. 11, II, “e” da LGPD).
Entre os documentos regulatórios previstos na LGPD, está o Registro de Operações de Tratamento de Dados Pessoais (RoPA)<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, que representa uma espécie de “fotografia” da empresa no tocante à proteção de dados, trazendo o detalhamento das operações que envolvem dados pessoais. O Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais (RIPD/DPIA), por sua vez, contém a descrição dos processos de tratamento de dados pessoais que podem gerar riscos às liberdades civis e aos direitos fundamentais, bem como medidas, salvaguardas e mecanismos de mitigação de risco<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Quanto à alegada potencialidade para ferir direitos e liberdades, é preciso cautela para não se adotar decisões abstratas ou um paranoico princípio da precaução, como já apontou Cass Sunstein na seminal “Laws of Fear”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Nenhuma operação de tratamento de dados está livre de riscos e possíveis impactos aos titulares. Proibir uma operação apenas pela remota possibilidade de lesar o titular inviabilizaria boa parte das atividades desenvolvidas em nosso cotidiano. Apesar de os riscos existirem sempre, as normativas de privacidade fornecem mecanismos para que os titulares estejam protegidos e resguardados, mas sem criar um regime excessivamente restrito ao desenvolvimento tecnológico.
Uma forma de mitigar os riscos do tratamento de dados biométricos, seria por meio da divulgação de canais de atendimento aos titulares e de avisos visíveis e claros, trazendo informação da filmagem do ambiente e esclarecendo a finalidade desse tratamento, além do descarte por prazo determinado, evitando o tratamento de dados excessivos, desnecessários ou em desconformidade com a lei.
Diante dos esclarecimentos envolvendo privacidade e proteção de dados, espera-se o restabelecimento do uso da tecnologia de reconhecimento facial pelo Metrô de São Paulo. De todo modo, fica evidente a necessidade de que os diferentes atores da sociedade civil envolvidos sejam chamados para uma solução conjunta, buscando uma regulação que atenda aos interesses e particularidades múltiplos envolvidos. Isso porque, apesar do teor da decisão, é inegável que o Poder Judiciário e a sociedade como um todo possuem a capacidade e o potencial de figurarem como importantes aliados na busca de eficiência, economicidade, desenvolvimento e inovação, sem privar os titulares de direitos e liberdades.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> De acordo com Nabeel, a tecnologia do reconhecimento facial usa um software que reconhece e identifica os rostos humanos específicos a partir de fotos ou vídeos. Através de conexões de internet céleres e uma ampla base de dados, essa tecnologia identifica e cataloga detalhes dos indivíduos, processando as imagens captadas em um equipamento (por exemplo, uma câmera de segurança), e esses dados podem ser usados para distintas finalidades. NABEEL, Fahad. Regulating facial recognition technology in public places. Centre for Strategic and Contemporary Research, 2019. Disponível em: &lt;<a href="https://www.academia.edu/39871139/Regulating_Facial_Recognition_Technology_in_Public_Places">https://www.academia.edu/39871139/Regulating_Facial_Recognition_Technology_in_Public_Places</a>&gt;. Acesso em: 01.04.2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ação Civil Pública nº 1010667-97.2022.8.26.0053.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: <a href="https://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/mapas.aspx">https://www.ssp.sp.gov.br/estatistica/mapas.aspx</a>. Acesso em 10.05.2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Processo nº 1001909-61.2017.8.26.0100.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Processo nº 1024557-64.2019.8.26.0003.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais. Parágrafo único.  O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> HC 652.284/SC, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/04/2021, DJe 03/05/2021.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Obrigação legal prevista no art. 37 da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18).
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Art. 5º, XVII da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18).
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> SUNSTEIN, Cass. Laws of fear: Beyond the precautionary principle. Cambridge University Press.

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JOTA

Solução não deveria ser proibição do uso da tecnologia, mas sim a verificação de adequação do seu uso

Luz, câmera, próxima estação: LGPD e reconhecimento facial

LGPD e reconhecimento facial: Lei não pode ser vista como um obstáculo à busca de soluções tecnológicas capazes de melhorar serviços públicos