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Esporte

Equidade no esporte: por que ainda é só uma peça publicitária

Não é possível aceitar que esportistas sejam obrigadas a escolher entre sonho da maternidade e continuação de suas carreiras

Mariana A. Pimentel
03/10/2020|08:00
Alysia Montano correu grávida. Equidade no esporte ainda não existe.
Atleta Alysia Montano participou de uma prova grávida. Imagem: YouTube

Em 24 fevereiro de 2019, no intervalo da premiação do Oscar na televisão americana, uma grande empresa de material esportivo mundial lançou um comercial, que foi reproduzido em milhares de redes sociais por todo o mundo. Narrado por ninguém menos que a tenista Serena Williams, a campanha ganhou status de manifesto pelo empoderamento das mulheres, e trouxe um retorno publicitário impressionante para a marca.

Se mostrarmos emoção, somos chamadas de dramáticas. Se queremos jogar contra os homens, somos loucas. E se sonharmos com oportunidades iguais, estamos iludidas”, assim começava o comercial. Mas, a história que tal campanha de efeito não contou foi a de que, na verdade, o esporte profissional adota, desde sempre, uma política “antigestacional” que é corroborada pelas empresas patrocinadoras, inclusive a do material publicitário citado.

Não é novidade que as atletas têm desafios muito maiores que dos homens no esporte profissional. Vale lembrar que foi somente em 2012, cento e dezesseis anos após a primeira edição das Olimpíadas da era moderna, que as mulheres puderam participar em todas as categorias disputadas no evento esportivo1.

Porém, o desafio de ser mãe enquanto ainda atleta, talvez seja o maior deles. Engravidar para a maioria das mulheres que disputam competições de alto rendimento, não é sequer uma opção.

A corredora americana Phoebe Wright, em entrevista descreveu bem qual é o sentimento para esportistas que engravidam: "ficar grávida é o beijo da morte para uma atleta mulher”2.

A cultura do esporte, de vitórias, superação de limites, de recordes dignos de super humanos talvez seja um dos fatores que levam as atletas a adiar planos de maternidade. A necessidade de desempenho físico muita acima da média torna, muitas vezes, incompatível competir enquanto gestante.

Equipes e entidades esportivas que deveriam zelar por seus atletas, pecam por não garantir uma estrutura de suporte às mães atletas. Não raro sabemos de casos de competidoras que tiveram seus contratos encerrados assim que informaram a intenção da maternidade. Muitas relatam, ainda, que foram surpreendidas com o cancelamento do auxílio de saúde durante a gravidez.

Na Espanha existem muitos contratos com cláusulas que permitem com que clubes encerrem, sem pagamento de quaisquer indenizações, o vínculo com suas atletas em caso de gravidez.

Tais cláusulas são nulas, mas acabam vigorando graças a termos de confidencialidade dos contratos, com previsão de multas milionárias em caso de descumprimento ou, até mesmo pelo medo das atletas de serem rejeitadas por equipes caso denunciem. Isso faz com que essa prática perdure sem qualquer consequência para os clubes.

No Brasil, os contratos de trabalho de desportistas são regidos pela Lei Pelé, que não estabelece nenhuma garantia ao direito à maternidade de atletas femininas.

Ainda, apesar da legislação trabalhista nacional proibir a demissão por motivo de gravidez, a maioria dos vínculos entre atletas e equipes é por tempo determinado, o que acaba dando aos clubes uma brecha, eles acabam apenas não renovando contratos encerrados durante ou logo após a gestação.

Outra prática muito comum no setor esportivo é o pagamento de remuneração por meio do direito de imagem. Os contratos de cessão do uso de imagem geralmente representam a maior fatia dos rendimentos de jogadores e se baseiam em aparições, atuações em competições. Assim, durante a gestação, como não estão competindo em suas categorias, e, portanto, não aparecendo, as atletas são submetidas a uma redução drástica dos rendimentos pagos pelos clubes.

A situação de mulheres que competem no atletismo é ainda mais difícil. Elas, em sua maioria vivem dos contratos com patrocinadores, em sua maioria as grandes empresas de material esportivo.

Ocorre que esses patrocinadores insistem no modelo que foca exclusivamente nos resultados em competições. Parece que tudo que importa é o quão rápido o atleta corre ou quantas medalhas ele conquista e em quantos pódios irá subir.

Atletas gestantes muitas vezes não seguem competindo e quando o fazem, algumas vezes colocando inclusive em risco a gravidez, é apenas para garantir os rendimentos. Elas não conseguem feitos ou recordes impressionantes perdendo, assim, o interesse dos patrocinadores. As marcas, por fim, punem suas atletas por engravidarem, embora suas campanhas sejam voltadas para as causas do empoderamento da mulher.

Alysia Montano, seis vezes campeã mundial de corrida média distância3, é um exemplo disso. Em 2014 competiu grávida de oito meses apenas para garantir que não ficaria sem sua única fonte de arrecadação. Ela aliás, foi uma das primeiras a denunciar publicamente a cultura contra maternidade existente no setor esportivo.

Na seleção brasileira de futebol feminino, das 23 jogadoras que disputaram a Copa do Mundo de 2014, apenas uma, a lateral esquerda Tamires, era mãe. Entretanto, a maioria relata o desejo da maternidade, mas afirmam que irão realizá-lo, se ainda houver tempo, quando encerrarem suas carreiras. Isso demonstra a falta de apoio e políticas pró maternidade no esporte de alto rendimento.

Não é mais possível aceitar que as esportistas sejam obrigadas a escolher entre o sonho da maternidade e a continuação de suas carreiras, muitas vezes no auge. O esporte deve cuidar de suas atletas na mesma proporção em que elas se doam na busca por resultados e, marcas patrocinadoras precisam praticar o discurso vinculado em suas impactantes campanhas publicitárias.

 


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1 A primeira vez que mulheres puderam participar em alguma modalidade Olímpica foi na 2ª edição dos Jogos Olímpicos, em 1900. A participação feminina era repudiada pelo criador da era moderna das Olímpiadas, Pierre de Courbertin

3 Ela corre competições de 800m.É recordista na categoria, ultrapassando, inclusive o feito de Usain Bolt.

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