Thiago Falda

Luiza Ribeiro

Em 1992, o Brasil foi sede da primeira edição da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, chamada de ECO-92 ou Rio 92. Nascia, naquele momento e em terras brasileiras, a formalização dos esforços conjuntos e organizados de dezenas de países em prol da sustentabilidade da vida no planeta.
Dali surgiram os maiores acordos internacionais sobre meio ambiente do mundo: as COPs (Conference of Parties), a Convenção do Clima (UNFCCC) e a Convenção Sobre a Diversidade Biológica (CBD). A Convenção Sobre Diversidade Biológica defende em seu artigo 1 a “repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos, incluindo o acesso adequado aos recursos genéticos e por transferência apropriada de tecnologias relevantes, levando em consideração todos os direitos sobre esses recursos e tecnologias, e por meio de financiamento apropriado.” Desse tema surgiu o famoso Protocolo de Nagoia.
No início da década de 90, o tema “<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/biotecnologia">biotecnologia</a>” foi associado a assuntos polêmicos, como os Organismos Geneticamente Modificados, pesquisas com células-tronco embrionárias e clonagem de animais (a ovelha Dolly é de 1997). De um lado os cientistas comemoravam os avanços da ciência e anunciavam a revolução que estava se desenhando. De outro lado, boa parte da população, questionava se não estávamos indo longe demais.
<h3>Biotecnologia é ''do mal'' ou salva vidas?</h3>
Trinta anos depois não temos dúvidas de que a ciência estava no caminho certo. Tecnologias capazes de substituir matérias-primas de origem fósseis por renováveis, redução do uso de energia e produção de energia renovável, tecnologias que permitem a remoção de CO2 da atmosfera, contribuindo para a mitigação do aquecimento global, aproveitamento de resíduos, redução no consumo de água e a diminuição no uso de defensivos foram testadas. 
Tecnologias que são significativamente importantes para os objetivos das duas convenções (Biodiversidade e Clima). A tecnologia DSI (Digital Sequence Information) auxiliou no processo de lidar com maior desafio epidemiológico desde a Gripe Espanhola. Ao contrário da epidemia, que matou 10% da população mundial (50 milhões de mortos em uma população de 500 milhões de habitantes), a Covid-19 contou com a biotecnologia que possibilitou o desenvolvimento de vacinas em tempo recorde, permitindo que morressem "apenas" 7 milhões de pessoas, em uma população de 7 Bilhões.
A velocidade com que essas vacinas foram desenvolvidas tem íntima relação com um tema que desde 2016 vem sendo o centro das discussões na Convenção sobre a Biodiversidade. Cerca de 90% das vacinas contra covid-19 utilizam o sequenciamento genético do vírus – realizado em algum laboratório em alguma parte do mundo – deixado disponível on-line para todos os pesquisadores do planeta.
Ficou claro que a pesquisa genética salva vidas. E não é somente no campo das vacinas e dos medicamentos, mas é aplicável, como foi dito acima, em saneamento e gestão de resíduos sólidos, geração de energia limpa, redução do impacto da agricultura no meio ambiente e diminuição dos custos da produção de alimentos. São questões do dia a dia de todas as pessoas, de todas as classes sociais e em qualquer região do mundo. 
Retomando o ano de 1992, quando da realização da a ECO-92 as pesquisas com recursos genéticos eram ainda realizadas quase em sua totalidade, com amostras físicas. 
Após mais de 20 anos da tecnologia de sequenciamento de genomas ter sido criada, na década de 1970, ela foi fundamental para viabilizar os experimentos desse projeto, que promoveu o sequenciamento do DNA da nossa e de outras espécies. O primeiro organismo a ter seu genoma sequenciado foi o da bactéria Haemophilus influenzae, em 1995, causadora de problemas respiratórios. Como têm material genético mais simples e de menor comprimento, esse microrganismo foi escolhido, colocando à prova pela primeira vez o sequenciamento para elucidação de um genoma completo.
Naquele mesmo ano de 1992 completava-se 10 anos da criação dos primeiros bancos de dados genéticos, desenvolvidos para facilitar a troca de informação entre pesquisadores, evitando redundância na pesquisa científica e consequentemente acelerando seu desenvolvimento. Em junho de 1992, quando os acordos na Rio 92 eram celebrados o GenBank, principal banco de dados genéticos do mundo, contava com exatas 71.280 sequências genéticas depositadas, com a vasta maioria oriunda e utilizada pelo setor acadêmico. Somente na Academia existia o DSI, a digitalização da informação contida nesses materiais. 
Naquele momento para se cumprir o objetivo de repartir justa e equitativamente os benefícios oriundos do uso da biodiversidade o modelo internacional adotado foi a negociação bilateral entre países usuários e países fornecedores da biodiversidade, o que exigiu a criação de um acordo para definir as regras dessa negociação, reiteramos “o famoso protocolo de Nagoia”. Dessa maneira, a questão da “repartição justa e equitativa” dependia do sistema bilateral de negociação.
<h3>Virada do físico para o digital</h3>
Houve rápido avanço nas técnicas de sequenciamento genético com o surgimento de centenas de bancos de dados. Em 1995, o sequenciamento completo do primeiro genoma de um organismo procarionte (organismo com genoma e organização mais simples) foi finalmente concluído e, no ano seguinte, foi a vez do primeiro organismo eucarionte (organismo com genoma e organização celular mais complexos). Finalmente, em 2001, foi finalizado o sequenciamento completo do genoma humano.
Para se ter uma ideia da magnitude da evolução dessas técnicas, o sequenciamento do genoma humano foi concluído em 13 anos, a um custo de 3 bilhões de dólares. Em 2019, já era possível realizar o mesmo trabalho em 48 horas a um custo de mil dólares.
Esse cenário fez com que hoje, somente o Genbank possua mais de 1,5 bilhão de sequências genéticas depositadas.
Nesse contexto, durante a COP 13 no México, em 2016, um questionamento, até então inédito no âmbito da CDB, foi colocado na mesa de negociações. Iniciado pelos países africanos, mais especificamente Namíbia e Mauritânia, e com imediata adesão do Brasil e a ampla maioria dos demais países com vasta biodiversidade, sugeriu-se que as sequências genéticas depositadas após serem decodificadas deveriam ser tratadas como as amostras físicas dos recursos genéticos, para fins de repartição de benefícios. Em outras palavras, se os benefícios oriundos da exploração econômica de um produto desenvolvido a partir da biodiversidade deveria ser repartido com o país de origem da biodiversidade, o mesmo racional deveria ser aplicado aos produtos desenvolvidos a partir das informações provenientes do sequenciamento genético da biodiversidade. Esse tema passou a ser referido corriqueiramente na CDB, simplesmente, como DSI.
O tema rapidamente gerou um racha entre as partes da CDB. De um lado os países provedores de biodiversidade, e que defendiam o tratamento isonômico entre amostras físicas e DSI uma vez que a após o sequenciamento genético as informações poderiam ser distribuídas e utilizadas livremente para desenvolver novos produtos. De outro, os países usuários da biodiversidade que defendiam considerar as sequências digitais no escopo da CDB tenderia a gerar burocracia, custos e a dificultaria o acesso a estas sequências nos bancos de dados, resultando em graves atrasos ao desenvolvimento científico e tecnológico.
Sendo testemunha ocular das negociações de 2016 – COP 13/MOP8/MOP2, a ABBI já em 2017 se posicionou junto ao governo brasileiro reconhecendo a complexidade do tema no escopo da CDB e defendendo, de forma prática e objetiva, que um meio termo deveria ser buscado, incluindo a repartição de benefícios por meio de um mecanismo multilateral uma vez que, neste modelo, reconheceria o valor da biodiversidade sem gerar maiores entraves burocráticos que somente atrasariam o desenvolvimento científico e tecnológico.
<h3>O começo da solução</h3>
Seis anos após as primeiras discussões sobre DSI na CDB e intensa mobilização das Partes, academia, indústria e ONGs na COP15 que ocorreu entre 7 e 19 de dezembro no Canadá, finalmente foi possível vislumbrar um caminho para resolução desse imbróglio. Com discussões bem menos acaloradas daquelas vistas nas edições anteriores. 
Mas, graças às intensas negociações nos últimos anos, as partes oficialmente reconheceram DSI no escopo da CDB, reconheceram também o valor dos bancos de dados públicos e a necessidade de se estimular a ampliação desses bancos. Reconheceram, ainda, que a geração, o acesso e o uso das sequências digitais suportam a inovação, o que é considerado evidente para o também restrito mundo da biotecnologia na época da criação da CDB e finalmente, e mais importante, decidiram pela criação de um mecanismo multilateral para repartição de benefícios oriundos do uso de sequências digitais, com possibilidade de adesão voluntária para as amostras físicas, e a criação de um fundo global para essa finalidade, o que garantirá a valorização dos recursos genéticos sem contudo gerar entraves ao desenvolvimento da inovação. 
Foi um grande começo, apesar de estar longe do fim. A operacionalização do fundo, definição de gatilhos para a repartição de benefícios, valores das contribuições, critérios para a distribuição dos recursos, entre tantos outros aspectos que serão objeto das próximas negociações. Contudo, gostaríamos de ir um pouco além, com a visão de quem vem acompanhando de perto os bastidores das negociações nas mais variadas esferas. Mais do que viabilizar a forma efetiva de repartição de benefícios no âmbito das sequências digitais, a possibilidade de adesão voluntária ao mecanismo multilateral para amostras físicas plantou uma semente que pode mudar completamente a lógica do Protocolo de Nagoia, cujo mecanismo bilateral estabelecido exige o atendimento as legislações de diferentes países resultando em inevitável burocracia.
<h3>Mudança de paradigma?</h3>
O mecanismo multilateral passa agora de um desafio técnico para um desafio que tem muito menos o componente técnico e muito mais o componente político, seja específico para DSI ou eventualmente expandido para as amostras físicas, que é a definição dos critérios para a repartição de benefícios. É necessário relembrar os objetivos da criação da CDB definindo um mecanismo que valorize os países que mais preservaram a biodiversidade e que investiram, e continuam investindo, na preservação e recuperação da biodiversidade, priorizando-os como destino desse recurso.

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JOTA

O mecanismo multilateral passa agora de um desafio técnico para um componente muito mais político

Livre acesso ao patrimônio genético: quem paga essa conta?

Ficou claro que a pesquisa genética salva vidas e não somente no campo das vacinas e dos medicamentos; e o componente é mais político.