César Augusto Martins Carnaúba

Diogo Olm Ferreira

No último dia 3, foi publicada a <a href="http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=129873">Portaria RFB 309/2023</a>, que disciplina o contencioso administrativo tributário no âmbito da Receita Federal, incorporando na regulamentação algumas das alterações introduzidas pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Mpv/mpv1160.htm">MP 1160/2023</a>.
Essa é a Medida Provisória que restabeleceu o voto de qualidade no caso de empate em julgamentos realizados no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Outra alteração importante criada por ela é o aumento do limite de alçada para que um processo administrativo possa ser levado ao tribunal. É disso que trata a Portaria RFB 309/2023.
Antes, um processo administrativo fiscal envolvendo valor acima de 60 salários-mínimos poderia ser levado à análise do Carf caso o sujeito passivo (contribuinte ou responsável) obtivesse decisão desfavorável em primeira instância, proferida por turmas ordinárias das Delegacias de Julgamento da Receita Federal do Brasil (DRJ). Em outras palavras, em casos com valor acima de 60 salários-mínimos, o sujeito passivo que obtivesse decisão desfavorável em primeira instância tinha possibilidade de recorrer ao Carf. Caso contrário, eventual recurso seria analisado por uma turma recursal vinculada à própria DRJ.
Esse limite foi aumentado para 1.000 salários-mínimos. Ou seja, o sujeito passivo somente pode recorrer ao Carf se o seu processo envolver valores que hoje superam aproximadamente R$ 1,3 milhão.
Notícias recentes indicam que o Carf possui mais de 90 mil processos pendentes de julgamento.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> O objetivo declarado do governo federal com essa medida é diminuir o estoque de processos atualmente no Carf.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Diversos pontos de dúvida gerados pela MP 1160 já vinham sendo apontados.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Um ponto de dúvida diz respeito à aplicação desse novo limite de alçada para processos em curso: um processo iniciado em 2020, envolvendo cobrança de R$ 1 milhão, ainda poderia ser analisado pelo Carf?
O artigo 23 da Portaria RFB 309/2023 apresenta a resposta das autoridades fiscais: processos já iniciados, mas que ainda não tiveram decisão de primeira instância, serão submetidos aos novos limites. Retomando o exemplo acima: segundo a Receita Federal, o contribuinte envolvido no processo iniciado em 2020 não terá mais possibilidade de levar seu caso para o Carf se não tiver havido, até o dia 3/4/2023, julgamento em primeira instância.
Se o julgamento de primeira instância já tiver ocorrido, o processo administrativo será regido pelas regras anteriormente existentes. Ou seja, o limite de alçada de 1.000 salários-mínimos não será aplicado e haverá possibilidade de recorrer ao Carf.
Nesse contexto, algumas questões merecem ser bem compreendidas.
<h3>Cabimento do recurso e direito intertemporal</h3>
O artigo 23 da Portaria RFB 309/2023 apresentou uma solução bastante consentânea com a chama Teoria do Isolamento dos Atos Processuais, segundo a qual os atos do processo devem observar a legislação vigente à época de sua prática. É a consagração do brocardo latino tempus regit actum, que foi usado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) quando tratou de questões semelhantes no início da vigência do Código de Processo Civil de 2015.
Vale lembrar que o CPC é aplicável supletiva e subsidiariamente aos processos administrativos por força de seu artigo 15.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Em razão disso, é possível aplicar a este caso o artigo 14, segundo o qual a norma processual “será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.
Veja-se: para os casos ainda não julgados em primeira instância, nem sequer se pode falar em recurso, pois não existe decisão a ser recorrida. Quando ela for proferida, aí sim nasce a faculdade processual de recorrer, mas, nesse momento, a regra vigente será a do valor de alçada de 1.000 salários-mínimos. Do outro lado, para os casos que já contam com decisão de primeira instância, o parágrafo único do artigo 23 mantém o procedimento anterior (independentemente de já ter sido interposto recurso endereçado ao Carf).
<h3>Modificação do órgão julgador e o juiz natural</h3>
Apesar das questões acima, cabe ver que a MP 1160 não promove modificação quanto a aspectos instrumentais do processo do processo administrativo tributário. Altera-se o órgão responsável pela apreciação de recursos. Em última análise, a modificação envolve a própria competência para decidir, em última instância administrativa, sobre a validade de um lançamento tributário.
Por certo, não se questiona aqui a qualidade da DRJ, quer das turmas ordinárias, quer das turmas recursais. O que há é uma questão de hierarquia e, por consequência, de vinculação. Cabe relembrar que o Carf não é órgão vinculado, técnica ou hierarquicamente, à Receita. Ambos repousam sob a estrutura do atual Ministério da Fazenda. Logo, é possível que o Carf profira decisões contrárias ao entendimento firmado pela Receita, por exemplo, em instruções normativas ou soluções de consulta.
As DRJs, por outro lado, integram a própria estrutura da Receita, de modo que seus julgadores são vinculados aos normativos e às orientações adotados por esta. De modo geral, portanto, há uma maior tendência de alinhamento das decisões das DRJs em relação ao entendimento das autoridades fiscais.
Esse contexto traz diversas preocupações, impossíveis de serem destrinchadas nestas poucas linhas, mas que podem ser levadas em consideração – mesmo porque ainda há tempo para o Congresso Nacional analisar a Medida Provisória com a atenção merecida.
A uma, é sabido que os processos administrativos fiscais a nível federal, não raro, tramitam durante anos até uma decisão de primeira instância. As estratégias processuais, a jurisprudência (judicial ou administrativa) juntada, a construção dos argumentos, tudo é feito levando em consideração a eventual possibilidade de recurso ao Carf. Mudar o órgão julgador em casos que tais, pergunta-se, pode ofender o princípio do juiz natural, cláusula pétrea prevista nos incisos XXXVII e LIII do artigo 5º da Constituição Federal? Este caso não é de alteração de um desembargador aposentado por um recém-promovido, ou mesmo de envio dos autos a uma câmara que não estava preventa: é a atribuição de competência recursal a um órgão novo, que faz parte de uma estrutura estatal completamente diversa da do Carf.
A duas, a criação de uma segunda instância de julgamento que, tal como a primeira, é vinculada à Receita, cria um contrassenso. O contencioso administrativo surgiu para otimizar os trabalhos do Poder Público, evitando a sobrecarga do Judiciário e diminuindo as condenações da Fazenda em casos que poderiam ser evitados. Justamente aí reside a importância do Carf e de sua composição paritária, bem como de sua independência em relação aos posicionamentos da Receita Federal. Um julgador de segunda instância vinculado às mesmas posições que o de primeira, no ambiente administrativo em que opera apenas na estrita legalidade, pouco tem a contribuir com esse objetivo.
A três, não se tem notícia de (i) estimativas da quantidade de trabalho que será retirada do Carf com essa medida e (ii) como será a composição dessa nova segunda instância de julgamento. Ocorre que, quando se fala em um tribunal (o Carf) com 90 mil casos pendentes de julgamento, as medidas para atenuar esse afogamento devem ser encaradas como verdadeiras políticas públicas, destinadas a diminuir os custos dos sujeitos envolvidos, fornecer um contencioso administrativo de maior eficiência, tudo sem perder de vista as garantias processuais dos contribuintes e responsáveis. Modificar o órgão julgador de segundo grau sem essas considerações pode acabar sendo um “tiro no pé”, com uma crescente judicialização de conflitos tributários sem ganhos de qualidade no âmbito administrativo.
<h3>A solução paulista</h3>
A instituição ou majoração de limites de alçada para acesso a tribunais administrativos não é novidade trazida pela MP 1160. Foi apenas em 2020 que o limite de 60 salários-mínimos foi incorporado ao contencioso administrativo tributário em âmbito federal, pela Lei 13.988/2020. Antes disso, os contenciosos administrativos de diversos estados já contavam com seus próprios limites.
Por exemplo, a legislação de São Paulo, até julho de 2017, previa que, no caso de decisão de primeira instância desfavorável ao sujeito passivo, haveria a possibilidade de recurso ordinário para o Tribunal de Impostos e Taxas (TIT), órgão de julgamento colegiado e paritário, se a autuação envolvesse valores acima de 5.000 UFESPs. Caso contrário, eventual recurso seria analisado monocraticamente pelo Delegado Tributário de Julgamento. A partir da Lei 16.489/2017, esse limite foi majorado para 20 mil UFESPs, restringindo, portanto, o acesso de discussões administrativas ao TIT.
O legislador paulista, porém, seguiu caminho distinto daquele adotado pela Portaria RFB 309/2023. De forma expressa, a própria Lei 16.489/2017 definiu que os novos valores de alçada somente seriam aplicáveis “aos autos de infração e imposição de multa lavrados a partir de 1º de janeiro de 2018”. Processos administrativos em andamento foram resguardados, na medida em que o órgão responsável para julgamento de eventuais recursos foi definido tomando como base a data da lavratura de auto de infração, independentemente de alterações legais posteriores ao valor de alçada.
<h3>Considerações finais</h3>
Divergindo dessa solução, o entendimento adotado na Portaria RFB 309/2023 é preocupante. Primeiramente por não ter respaldo expresso de previsões legais, afinal, a MP 1160 é silente quanto ao tema. Em segundo lugar, por alterar o rito de tramitação de processos administrativos em curso, possivelmente violando garantias processuais, tal como detalhado acima.
Considerando que a MP 1160 continua em tramitação no Congresso Nacional, ainda é tempo de alterar seu texto e delimitar, de forma clara, a aplicação temporal de sua modificação ao valor de alçada para que um recurso seja analisado pelo Carf. A solução adotada pelo estado de São Paulo ao implementar modificação semelhante é um exemplo claro de como conciliar a tentativa de reduzir o contencioso nos tribunais administrativos e, ainda assim, resguardar os interesses de sujeitos passivos que já possuam processos em curso.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Conforme relatório “Dados Gerenciais do CARF”; Disponível em: &lt;<a href="http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-2023/dados-abertos-202302-final.pdf">http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-2023/dados-abertos-202302-final.pdf</a>&gt; Acesso em 05/04/2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Conforme anunciado pelo Ministério da Fazenda quando da publicação da Medida Provisória nº 1.160/2023. Disponível em: &lt; <a href="https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/mudancas-no-carf-buscam-reverter-acumulo-de-processos-e-perdas-de-arrecadacao">https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/mudancas-no-carf-buscam-reverter-acumulo-de-processos-e-perdas-de-arrecadacao</a>&gt; Acesso em 05/04/2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Nesse sentido, destacam-se as análise de Hugo de Brito Machado Segundo, na Conjur (Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2023-jan-18/consultor-tributario-consideracoes-mp-116023-restricao-acesso-carf">https://www.conjur.com.br/2023-jan-18/consultor-tributario-consideracoes-mp-116023-restricao-acesso-carf</a>) e Michell Przepiorka, Eduardo de Paiva Gomes e Daniel de Paiva Gome (Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/problemas-praticos-do-limite-de-alcada-no-carf-06032023">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/problemas-praticos-do-limite-de-alcada-no-carf-06032023</a>).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ver: CARNAÚBA, César Augusto Martins. Aplicação subsidiária do novo Código de Processo Civil ao processo administrativo. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 75, dez. 2016.

carf

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JOTA

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