Isadora Moreira Talamo

Na administração pública não existe vácuo, muito pelo contrário, o vácuo administrativo é o campo fértil para o estabelecimento de poderes paralelos. De maneira extremamente resumida, foi o vácuo administrativo criado pela controversa operação militar comandada pelos Estados Unidos no Iraque que fortaleceu o poderio de grupos rebeldes, sendo um deles o Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS).
Foi pelo ISIS que Shamima Begum, cidadã britânica, decidiu deixar o solo britânico. Em fevereiro de 2015, Shamina, então com apenas 15 anos, acompanhada de duas outras amigas, decidiu se juntar ao ISIS. Chegando na matriz do Estado Islâmico, na cidade de Raqqa, na Síria, Shamima se casou com um recrutador do grupo, de origem holandesa, com quem teve três filhos.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O recrutamento de adolescentes, principalmente mulheres, é uma tática de grupos radicais extremistas, uma vez que serão essas garotas as responsáveis por gerar os futuros membros do grupo.
O encontro de Shamina com o ISIS se deu alguns meses após a declaração oficial do ISIS, em junho de 2014. O objetivo do grupo era a criação de um Califado islâmico no Iraque e na Síria, com a intenção de governar as populações muçulmanas, mas buscando expandir tal governo para além desses dois países<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Durante três anos, Shamima viveu sob o controle do Estado Islâmico, até o início do desmoronamento do poder do ISIS, a partir de 2018. Em fevereiro de 2019, a não mais adolescente foi encontrada em um campo de refugiados na Síria controlado pelas forças democráticas sírias, grávida de seu terceiro filho, que foi a óbito por pneumonia logo após o parto.
Shamima confirmou que teve outros dois filhos, mas ambos também faleceram. Uma das outras adolescentes que a acompanhou nessa empreitada foi morta em um bombardeio, enquanto o paradeiro da terceira segue desconhecido.
Logo após ser encontrada, o então secretário britânico de assuntos internos, Sajid Javid, decidiu cancelar a cidadania britânica de Shamina, alegando segurança nacional. Tal posição confirmou a política de combate ao terrorismo do Reino Unido, e apoiou-se no fato de Shamima ter dupla cidadania, assim o cancelamento da cidadania britânica não a tornaria apátrida. Essa primeira decisão foi administrativa, passível de recurso.
Assim, Shamima, ainda morando no campo de refugiados na Síria, apelou da decisão. Sua apelação foi apoiada no Estatuto de Imigração Britânico, e classificou seu pedido de manter sua cidadania britânica um pedido humanitário, dada a condição em que vive e o potencial desrespeito ao rito processual justo.
<blockquote class="jota-article__eye">A Corte de Apelação britânica permitiu o retorno de Shamima ao solo britânico, para que pudesse responder pelo processo, em respeito ao direito que todo cidadão tem: um processo judicial justo.</blockquote>
É a partir desse momento que o limbo judicial que Shamima atualmente se encontra começou a ser construído. O Ministério do Interior (Home Office) apelou dessa decisão, argumentando que o retorno de Shamima representaria um significativo risco para a segurança nacional.
Essa apelação foi protocolada perante a Corte Suprema do Reino Unido. Foi a Corte Suprema que acabou por colocar Shamima em uma situação até então sem precedentes: a Corte Suprema entendeu que o Governo Britânico tem legitimidade para impedir o regresso de um cidadão que representa risco para a segurança nacional e, ao mesmo tempo, Shamina tem o direito à um processo judicial justo<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Assim, apesar de suspender o processo de cancelamento da cidadania britânica, até que Shamima se encontre em um lugar relativamente seguro que a permita participar legitimamente do processo e lutar pelo seu caso, Shamima não está autorizada a pisar em solo britânico para responder ao processo<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Resumidamente, Shamina é uma cidadã britânica, sua cidadania ainda não foi cancelada, mas ela não está autorizada a pisar em solo britânico. Deve buscar um lugar seguro que a permita seguir com o processo legal. A atual Secretária do Ministério do Interior, Priti Patel, comemorou a decisão da Suprema Corte e afirmou que a segurança do país deve ser inviolável<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
De acordo com princípios processuais adotados no Reino Unido, o justo e devido processo legal deve se sobrepor à segurança nacional, mas nesse caso a Corte Inglesa entendeu que o risco de trazer Shamima não pode ser desconsiderado, portanto o direito ao devido processo legal não é absoluto a ponto de colocar o país em risco. Assim, o limbo judicial se estabelece quando esses dois pontos – segurança nacional e direito a um processo legal justo – são contrapostos.
Ainda, a lei britânica estabelece que a cidadania britânica pode ser cancelada em apenas três situações: caso a cidadania seja obtida por meio de fraude, se as ações do cidadão possam ser consideradas perigosas para o interesse do país, ou em defesa do bem público.
Ao aplicar a lei, o Reino Unido se compromete a não deixar o indivíduo em questão em situação apátrida. Nesse caso, o Ministério do Interior alega que Shamima é cidadã bengalesa, pois seus pais nasceram em Bangladesh.
No entanto, autoridades de Bangladesh já confirmaram que Shamima nunca visitou o país e nunca obteve passaporte bengalês, e declararam que não há qualquer interesse em garantir a cidadania bengalesa de Shamima<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Assim, o limbo judicial em que Shamima se encontra torna-se ainda mais complexo, pois o Reino Unido aparentemente endossou a decisão de cancelar a cidadania britânica num possível direito que Shamima tem de obter a cidadania bengalesa.
Apesar da repercussão, o caso de Shamima é isolado, portanto a preocupação em firmar um precedente um tanto quanto contrário aos direitos humanos vigentes no Reino Unido, é extremamente legítima.
De acordo com um estudo do King's College, em julho de 2019 eram quase 53 mil pessoas, entre homens, mulheres e crianças, que viajaram para ou nasceram em áreas controladas pelo ISIS. O retorno aos países ocidentais é difícil e complexo, e esses países tendem a permitir apenas o retorno de crianças.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://urldefense.com/v3/__https:/www.britannica.com/topic/Islamic-State-in-Iraq-and-the-Levant/Expansion-and-declaration-of-a-caliphate__;!!JBzMsYroSKf8!hjsR7AH0j9xhMPt6QIdzlSAFxydrVrWbC1VdkOlOkLjRhuSSJhiJY9TWaq_eyTlFQkbl$">https://www.britannica.com/topic/Islamic-State-in-Iraq-and-the-Levant/Expansion-and-declaration-of-a-caliphate</a>&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://urldefense.com/v3/__https:/www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2020-0156-judgment.pdf__;!!JBzMsYroSKf8!hjsR7AH0j9xhMPt6QIdzlSAFxydrVrWbC1VdkOlOkLjRhuSSJhiJY9TWaq_eyT4SpMnZ$">https://www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2020-0156-judgment.pdf</a>&gt;.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://urldefense.com/v3/__https:/www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2020-0156-press-summary.pdf__;!!JBzMsYroSKf8!hjsR7AH0j9xhMPt6QIdzlSAFxydrVrWbC1VdkOlOkLjRhuSSJhiJY9TWaq_eyf9in09s$">https://www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2020-0156-press-summary.pdf</a>&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://news.sky.com/story/shamima-begum-is-bride-can-never-return-to-uk-says-home-secretary-priti-patel-11822516">https://news.sky.com/story/shamima-begum-is-bride-can-never-return-to-uk-says-home-secretary-priti-patel-11822516</a>&gt;.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.aljazeera.com/news/2021/2/26/uk-top-court-says-shemima-begum-cannot-return-to-britain">https://www.aljazeera.com/news/2021/2/26/uk-top-court-says-shemima-begum-cannot-return-to-britain</a>&gt;.

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JOTA

Reino Unido endossou a decisão de cancelar a cidadania britânica de mulher que se juntou ao ISIS

Limbo judicial e segurança nacional no Reino Unido

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