
O que a pandemia nos ensina sobre as relações entre Brasil e China? Há duas lições importantes do período: 1) Os brasileiros dependemos muito mais dos chineses do que em geral imaginávamos, no comércio e na cooperação internacional de saúde. 2) Visões críticas à China se tornaram parte significativa da vida pública do país, com impactos para as ações dos partidos políticos, do presidente e dos governadores. A soma das duas tendências resulta em uma diplomacia bilateral mais tensa, com a eclosão de diversos conflitos que perturbam a parceria estratégica que ambos os países estabeleceram na década de 1990.
O Brasil reconheceu diplomaticamente a República Popular da China em 1974. A ditadura militar era anticomunista, mas o governo do general Ernesto Geisel reconheceu que a política internacional se transformava, com a aproximação entre Washington e Pequim, e que a China desempenharia um papel importante nas questões mundiais. Na década de 1980, o diálogo se aprofundou em meio ao ambiente mais ameno da redemocratização brasileira e das reformas econômicas chinesas de Deng Xiaoping. Os dois países criaram um programa conjunto de construção de satélites (CBERS) e desenvolveram um intercâmbio comercial de cerca de US$ 1 bilhão por ano, em que o Brasil exportava produtos siderúrgicos e importava petróleo dos chineses.
Em 1993, os dois governos anunciaram que seu relacionamento era uma “parceria estratégica”. O conceito, então inédito e inovador para ambos, era baseado na perspectiva de aprofundar seus laços econômicos e políticos, para além das dificuldades ocasionais oriundas dos altos e baixos do comércio internacional. Em grande medida, essas expectativas se consolidaram na década de 2000, quando o boom global de commodities tornou a China a principal parceria comercial do Brasil, posto que ocupa desde 2009. Politicamente, os dois países criaram grupos como o G20 da Organização Mundial do Comércio, o BASIC para negociações do clima e os BRICS para reformas econômicas.
A Pandemia e a Parceria Estratégica Sino-Brasileira
A pandemia aprofundou os laços econômicos entre o Brasil e a China, uma vez que o país asiático foi um dos poucos a crescer em 2020, devido à rápida contenção que realizou do coronavírus. As exportações brasileiras para os chineses aumentaram em 7%, ao passo que caíram no total geral 5,4%. O fluxo comercial entre os dois países foi de US$102, 5 bilhões.
O contraste entre o crescimento chinês e o declínio dos outros grandes parceiros comerciais do Brasil (Estados Unidos, Argentina, União Europeia) fez com que percentual recorde de 34% das exportações brasileiras fossem para a China. Elas estão concentradas em mais de 80% em três produtos: soja, minério de ferro e petróleo. Em contrapartida, o país importa dos chineses sobretudo manufaturas industriais, como equipamentos elétricos e eletrônicos.
Em meio a essa maior dependência do mercado chinês, os brasileiros descobriram que também precisam da China na cooperação internacional de saúde, para a compra ou fabricação de vacinas, equipamentos de proteção individual, máscaras, respiradores artificiais e outros insumos médicos essenciais para o combate ao coronavírus. Empresas chinesas são as principais fabricantes globais desse tipo de equipamento e nem mesmo grandes potências como os Estados Unidos conseguiram reverter essa situação no curto prazo.
No caso brasileiro, a dependência médica dos chineses configurou em vários momentos situações de escassez de vacinas e outros insumos, levando à interrupção da vacinação em grandes cidades e discussões sobre se esses problemas se deviam aos problemas políticos entre o governo federal e Pequim.
O Sentimento Anti-China no Brasil pandêmico
Jair Bolsonaro é o primeiro presidente brasileiro desde a redemocratização eleito com um discurso anti-China, mas o sentimento crítico a Pequim ultrapassa a figura do atual mandatário e ressoa entre diversos grupos sociais e econômicos incomodados com a ascensão chinesa. Há industriais preocupados com a concorrência dos produtos do país, militares que se assustam com o controle da China sobre infraestrutura estratégica (energia, telecomunicações) ou simplesmente pessoas que se sentem desconfiadas diante de um país sobre o qual conhecem pouco, que é muito distante culturalmente do Brasil e cujo sistema político lhes causa apreensão.
A eclosão da pandemia reforçou sentimentos negativos à China em diversos países, em particular nos Estados Unidos e na União Europeia. Isso também ocorreu no Brasil. O grupo político do presidente – sobretudo seus filhos e alguns de seus ex-ministros – usaram as redes sociais para difundir mensagens contrárias a Pequim, chegando até a acusar o governo chinês de inventar o coronavírus em laboratório. É uma retórica cara ao então presidente americano Donald Trump, principal referência internacional de Bolsonaro, e encontrou apoiadores apaixonados em meio a uma população assustada com as mortes e com os impactos econômicos da Covid-19. E explica também a relutância de muitos brasileiros em tomar vacinas chinesas.
Se o presidente e outros políticos têm encarnado as visões críticas à China, alguns governadores e prefeitos trilham o caminho oposto, buscando construir canais de diálogo com Pequim que não passem por Brasília. Desse modo, os governadores de São Paulo e Maranhão fizeram acordos para garantir vacinas, máscaras e outros insumos médicos da China. O prefeito do Rio de Janeiro anunciou que gostaria de incluir a cidade na Iniciativa do Cinturão e da Rota, o projeto chinês de investimentos globais em infraestrutura.
No Congresso, senadores foram uma força de pressão importante para a exoneração do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, um dos expoentes do discurso anti-China no governo. Os parlamentares ressaltaram o quanto as atitudes do chanceler prejudicavam as relações do Brasil com seu principal parceiro comercial.
A pandemia deixa então um legado ambíguo para as relações sino-brasileiras. Embora reforce a importância da China para o Brasil, também mostrou que se consolidou no país um expressivo grupo de opinião pública muito crítico dos chineses, que virou um elemento que tensiona a parceria estratégica. Conciliar essas duas tendências será um desafio para a política externa dos próximos anos.