Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“Tendo vislumbrado uma pequena parte da vida, os homens se erguem e desaparecem como fumaça, sabendo apenas o que cada um aprendeu.”
<footer class="jota-article__quote-cite">Empédocles</footer>
</blockquote>
Desde tempos imemoriais a humanidade se bate buscando compreender a natureza do curso da história. Se a evolução dos cursos humanos ao longo do tempo se daria de maneira linear e irrepetível ou se, ao contrário, ela acompanharia os movimentos cósmicos e naturais, projetando, ela também, uma trajetória circular. Entre os pré-socráticos, Empédocles (ca. 495 a.C. — ca. 430 a.C.) foi um dos primeiros a estruturar uma filosofia dos ciclos cósmicos, baseada na alternância entre atração e repulsa — amor e ódio — entre as distintas configurações dos quatro elementos clássicos: terra, água, ar e fogo. “O mar”, dizia ele, “é o suor da terra”.
Note, cara leitora, que, na maioria das vezes, mais importante do que se encontrar a chave da história é simplesmente proceder à analogia correta. Muitas análises do atual conflito na Ucrânia o comparam com o precedente da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), prenunciando um conflito de grandes proporções a ser deflagrado pelas alianças militares de ambos os lados, como a queda da trilha de um dominó. Esquecem, essas análises, da presença de um elemento estratégico crucial: a presença de armas de destruição em massa, em particular as nucleares. Se alguma analogia histórica for útil, no campo estratégico, a crise da Ucrânia tem mais similaridades com a Guerra da Coreia (1950-1953) do que com a Primeira Guerra Mundial.
Se voltarmos o relógio para os anos 1950, durante a administração Dwight D. Eisenhower nos EUA (1953-1961), vamos encontrar um efervescente debate estratégico sobre como o advento das armas nucleares alterou a lógica dos conflitos militares, que ainda é profundamente atual. Ao final da Guerra da Coreia, os círculos de especialistas em diplomacia e defesa haviam chegado a um consenso de que a probabilidade de o próximo conflito envolver um embate nuclear entre as duas superpotências da Guerra Fria, os EUA e a URSS, era muito alta, o que envolvia mesmo o risco de extinção da vida humana sobre a Terra. Cunhou-se, nessa época, o conceito de “mutual assured destruction” — “destruição mútua assegurada”, conhecido pela sigla em inglês MAD — “louco”. Era a nova lógica da guerra na era termonuclear.
O conceito de MAD foi a base da nova política de defesa da administração Eisenhower, batizada de New Look. Segundo essa política, o objetivo dos EUA e dos seus aliados da Otan, dentro do contexto da Guerra Fria, seria o de criar uma assimetria nuclear estratégica em relação à URSS e ao Pacto de Varsóvia, que teria os seus intentos expansionistas detidos pela ameaça de uma retaliação nuclear em massa desproporcional a uma eventual provocação geoestratégica. A New Look, assim, implicava um redirecionamento dos investimentos em defesa norte-americanos, com restrições orçamentárias para Marinha e Exército a fim de abrir espaço orçamentário para um aumento exponencial dos gastos com a Força Aérea e com o arsenal nuclear. Essa política foi muito criticada na época, notadamente por diminuir a capacidade de defesa convencional dos EUA, o que, estima-se, tenha sido uma das causas pelas quais ela foi incapaz de deter a URSS de esmagar a Revolução Húngara de 1956.
O pressuposto fundamental da New Look e do conceito de MAD, também chamado de “sistema da balança do terror”, é o de que as capacidades nucleares são apenas estratégicas e jamais táticas, isto é, elas não poderiam ser utilizadas para realização de objetivos restritos, porque haveria uma tendência inexorável de uma escalada nuclear a cada retaliação desproporcional, o que fatalmente levaria ao Armageddon e à destruição da humanidade. Note, cara leitora, que até hoje esse pressuposto não foi posto à prova, em que pese a barrada de críticas apresentadas a ele nos últimos 70 anos.
Um dos mais ferozes críticos da New Look foi o então jovem acadêmico de Harvard Henry Alfred Kissinger. Em 1957, Kissinger publicou seu magnum opus, “Nuclear Weapons and Foreign Policy”, cuja crítica central à estratégia da administração Eisenhower era de que a política de uma retaliação massiva nuclear total era uma política de inação. A URSS, nessa lógica, estaria tentada a avançar sobre a periferia geoestratégica, as chamas “zonas cinzentas” da Eurásia, na segurança de que essas áreas não seriam tão valiosas para os EUA a ponto de justificarem a destruição do seu território, mesmo que parcialmente. Para Kissinger, ao contrário, a melhor estratégia seria a de utilização tática de armas nucleares: a condução de guerras nucleares locais e limitadas, em suma.
Para Kissinger,
<blockquote class="jota-article__citation">“a maior utilidade do S.A.C [Strategic Air Command] (…) é a de nos permitir lutar guerras locais nos nossos próprios termos; ou, posto de outra forma — o potencial destrutivo das armas nucleares é tamanho que a única coisa que ele detém é o seu uso pelo outro lado. Dessa maneira, o lado que tenha um sistema bélico alternativo pode manter as armas definitivas como elementos de dissuasão do outro, para impedi-lo de iniciar uma guerra geral. Assim, se tivermos um sistema bélico que permita o emprego tático de armas nucleares e que nos habilite a lutar guerras locais, e se integrarmos isso em uma diplomacia que deixe claro que estamos interessados apenas em uma transformação local e não em uma rendição incondicional, o S.A.C. pode deter os russos de ingressarem em um grande conflito”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a></blockquote>
Com relação especificamente à Guerra da Coreia, Kissinger acreditava que o erro norte-americano teria sido uma demora prolongada em responder com força decisiva. “Se nós tivéssemos derrotado o Exército chinês na Coreia em 1951”, afirmava ele, “nós teríamos confrontado a URSS com o dilema de ter de arriscar tudo por um incremento de sua influência na China”. Além disso, prosseguia Kissinger, “o problema indo-chinês dificilmente teria assumido as presentes proporções [na década de 1950] se a China tivesse sofrido uma invertida decisiva no seu primeiro encontro militar com os Estados Unidos”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Em suma, Kissinger acreditava que a resposta correta a uma provocação seria uma resposta militar decisiva com a possibilidade do uso tático de armas nucleares contra alvos militares.
Desnecessário dizer, cara leitora, que uma tal política de defesa jamais foi seguida. Simplesmente porque ela é muito arriscada. Eisenhower, e mesmo outras figuras proeminentes, como Paul H. Nitze, o mentor da estratégia NSC 68, que advogava uma postura agressiva, de “rollback”, contra a URSS, inclusive com o desenvolvimento da bomba de hidrogênio, não acreditavam que o uso tático e contido de armas nucleares fosse uma possibilidade real. Para eles, uma vez utilizadas, essas armas gerariam uma escalada inexorável, que culminaria em um holocausto nuclear. Para Nitze, “uma vez que uma guerra tenha se tornado nuclear, será muito difícil estabelecer qualquer limite”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Niall Ferguson avalia que o argumento central de Kissinger em “Nuclear Weapons and Foreign Policy” — o da possibilidade do emprego tático de armas nucleares sem uma escalada geral —, a despeito do enorme sucesso do livro, é difícil de convencer.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> O ponto nevrálgico, a meu ver, é o de que Kissinger falha em definir os detalhes práticos de quais seriam os limites desse emprego tático e de como seria possível, em primeiro lugar, comunicá-los ao outro lado e, em segundo lugar, assegurar que eles sejam respeitados. De todas as formas, a presença de armas nucleares, táticas ou estratégicas, altera a lógica da guerra. Em um mundo dominado por armas de destruição em massa de alta sofisticação tecnológica, os objetivos militares tornam-se necessariamente mais circunscritos. Não se pode buscar mais a vitória total, mas apenas uma coexistência mútua, um armistício prolongado e frágil até que o conflito ressurja em uma nova crise.
Trata-se, em suma, de uma grande tragédia. O advento das armas nucleares provou-se uma verdadeira revolução na condução da diplomacia e da estratégia. Note, cara leitora, que o argumento de Kissinger tem como pressuposto o desenvolvimento da arquitetura de uma ordem mundial que preveja o uso tático das armas nucleares, justamente o ponto mais frágil da sua obra. Sem uma concepção geral da ordem termonuclear, compartilhada por todos os participantes do sistema, o emprego tático das armas nucleares estará fadado a causar um holocausto nuclear.
Henry Kissinger, no seu prefácio a “Nuclear Weapons and Foreign Policy”, vaticinava justamente que
<blockquote class="jota-article__citation">“uma revolução não pode ser dominada até que se desenvolva o modo de pensar apropriado para ela. E assim é com o impacto das armas nucleares na política externa. A nostalgia por um passado mais seguro e menos cataclísmico é compreensível. Mas os fatos não podem ser mudados; eles podem apenas ser usados. Muitas suposições familiares sobre a guerra, a diplomacia e a natureza da paz terão de ser modificadas antes que se desenvolva uma teoria adequada para os perigos e as oportunidades da era nuclear”.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a></blockquote>
Note, cara leitora, que Kissinger escrevera isso em 1957, há mais de seis décadas. Em que pesem as inúmeras tentativas e contribuições da área de estudos estratégicos, da qual “Nuclear Weapons” foi uma das primeiras, a humanidade ainda não foi capaz de desenvolver uma concepção geral, compartilhada por todos os atores do sistema internacional, sobre como lidar “com os perigos e as oportunidades da era nuclear”. E essa é precisamente a razão pela qual toda e qualquer escaramuça entre potências nucleares é extremamente perigosa. Trata-se de um jogo mortal, sem regras definidas. Uma verdadeira roleta-russa, com o perdão do trocadilho.
Em uma presciente entrevista em abril do ano passado para a jornalista Anne McElvoy, da revista The Economist,<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>  Kissinger já alertava para a iminência de um confronto do Ocidente com a Rússia pela questão ucraniana, justamente devido ao fato de não se haver buscado, especialmente após a crise da Crimeia (2014), construir uma concepção geral da estrutura do relacionamento com o país euroasiático, que levasse em consideração o seu sentimento histórico de vulnerabilidade. A ideia de que não é possível negociar com a Rússia e de que se deve esperar por uma desintegração de Vladimir Putin, segundo Kissinger, não seria a maneira de estadistas liderem com um processo histórico.
O “grand old man of diplomacy”, do auge dos seus 98 anos, fez uma análise da nova natureza da guerra na era da tecnologia, que, em linhas gerais, não difere em nada daquela por ele conduzida em “Nuclear Weapons” há mais de meio século:
<blockquote class="jota-article__citation">“Pela natureza da tecnologia moderna nós estamos em uma posição diferente daquela das avaliações históricas da diplomacia. Historicamente as nações terminavam as guerras porque elas entendiam que isso representaria um incremento nas suas posições ou que com isso elas poderiam, de alguma forma, obviar um risco. Mas com a tecnologia moderna, que é poderosa e ao mesmo tempo abstrata, pela qual intervenções massivas são possíveis e que permite discussões acerca de quem na verdade fez o quê, um mundo de insegurança permanente levará, mais cedo ou mais tarde, a uma situação insustentável”.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a></blockquote>
Com relação à questão específica do relacionamento com a Rússia, de maneira muito coerente com a sua visão da necessidade de se arquitetar e preservar uma ordem mundial, que ele esposa desde “A World Restored”, sua tese de doutoramento em Harvard em 1954, Kissinger afirma que:
<blockquote class="jota-article__citation">“A única solução para o problema da Rússia é que ela encontre um lugar para si que não crie uma sensação geral de isolamento. Agora, isso é possível? Isso tem que ser tentado, porque os russos têm de mudar a maneira como eles lidam com as suas questões domésticas. O diálogo sem uma concepção geral mais ampla, sem os elementos concretos que estruturam uma ordem mundial definida, contudo, pode se tornar uma estratégia autoderrotante, por gerar saídas ilusórias”.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a></blockquote>
Note, cara leitora, que Kissinger concedeu essa entrevista em 22 de abril de 2021, ou seja, quase um ano antes da eclosão da atual Guerra da Ucrânia. Com enorme presciência, ele vaticinou que:
<blockquote class="jota-article__citation">“Um movimento militar da Rússia, nas condições atuais, levantaria as questões mais fundamentais sobre a possibilidade de coexistência. E significaria uma maior e mais necessária ênfase em segurança militar. Tudo o que tenho dito sobre a ordem mundial tem como pressuposto que a outra parte desenvolverá um interesse paralelo, por suas próprias razões, porque algumas das necessidades são mútuas. Dessa forma, uma iniciativa militar por parte da Rússia, com base em meu conhecimento da situação presente, eu consideraria como um ressurgimento da ameaça da Guerra Fria e isso demandaria uma visão diferente que eu considero necessária e desejável e nós teríamos que responder com uma firmeza e uma determinação consideráveis”.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a></blockquote>
Desnecessário dizer que, como uma Cassandra, seus alertas não foram ouvidos. Seria a atual Guerra na Ucrânia uma reencenação da Guerra da Coreia? Difícil afirmar com certeza. Uma coisa é certa, contudo: o Ocidente, desta vez, respondeu com uma firmeza inimaginável, exatamente como Kissinger advogava, já na década de 1950, que tivesse sido feito na Guerra da Coreia. Veremos o emprego tático de armas nucleares, testando, na prática pela primeira vez na história da humanidade, as proposições que Kissinger apresentou em “Nuclear Weapons”?
Em uma era de barateamento das armas de destruição em massa, de drones nucleares, com capacidade decisória autônoma provida por inteligência artificial, a probabilidade da sua utilização no campo é alta. Caso em que também seria alta a probabilidade de escalada para um conflito nuclear generalizado. Essa hipótese só seria contida se o pressuposto fundamental do argumento de Kissinger em “Nuclear Weapons and Foreign Policy” houvesse sido posto em prática antes: o desenvolvimento da arquitetura geral de uma ordem mundial tecnológico-nuclear, algo que as nações têm terminantemente se recusado a tentar construir há mais de meio século. O momento do acerto de contas pode estar próximo.
Reza a lenda que Empédocles, antes de mergulhar na boca do Monte Etna, olhou para o vulcão e constatou: “Muitos fogos queimam embaixo da superfície”. A humanidade parece estar entrando em uma nova era, na qual o fogo consome a terra, antes da sua extinção pelo ar e pela água, prenunciando o fim de um dos longos ciclos cósmicos de Empédocles. “Filho do homem, você não pode dizer, ou adivinhar, pois você sabe apenas um monte de imagens quebradas, onde o sol bate, e a árvore morta não dá abrigo, o grilo não alivia, e a pedra seca nenhum som de água". Bem-vinda, cara leitora, à terra devastada.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Apud FERGUSSON, N. Kissinger: 1923-1968: The Idealist. Nova Iorque: Penguin Books, 2016. pp. 335-6.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ibid, p. 344.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ibid, p. 353.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ibid, p. 371.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> KISSINGER, H. A. Nuclear Weapons and Foreign Policy. Nova Iorque: Valmy Publishing, 2018. p. 17.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://www.economist.com/podcasts/2021/04/22/how-should-leaders-deal-with-todays-great-global-standoff">https://www.economist.com/podcasts/2021/04/22/how-should-leaders-deal-with-todays-great-global-standoff</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Ibid.

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JOTA

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