Henrique Smidt Simon

É corriqueira a discussão no imaginário jurídico a respeito de “Antígona”, a peça teatral clássica de Sófocles, como síntese do embate entre direito natural e direito positivo. Sem discutir as reduções imensas que essa visão gera sobre a obra, vale a pena considerar que ela nos apresenta muitos outros pontos a serem considerados. É importante esclarecer que o conflito se dá entre diké e nomos, ou seja, a noção compartilhada entre os gregos de ordem e dever contra as normas particulares que a realizam para cada polis. Interessa destacar, contudo, a tensão política que o enredo ainda apresenta aos leitores de hoje.
Creonte era rei legítimo de Tebas, herdando o trono após a morte dos dois herdeiros de Édipo: seus filhos Etéocles e Polinices. Estes, sem acordo sobre o governo após a fuga do pai (que abandonou a cidade após descobrir que matara seu pai e casara com sua mãe), resolveram revezarem-se no poder. Etéocles governaria um ano, com Polinices fora da comunidade, depois as posições se inverteriam. Com o descumprimento do acordo pelo primeiro, ambos entram em conflito pelo poder e um morre pelas mãos do outro (como havia profetizado Édipo antes de sua morte).
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Faz parte do senso comum jurídico o que acontece a partir daí: ao subir ao poder, Creonte trata Etéocles como herói da cidade, concedendo-lhe as devidas honras, enquanto proíbe, por edito, que Polinices receba os ritos fúnebres, estabelecendo a pena de morte para quem descumprisse a ordem. Por sua vez, Antígona, irmão dos que morreram na batalha pelo poder de Tebas, reivindica um dever maior e descumpre a ordem do rei para enterrar seu irmão. Creonte, ao tomar conhecimento da desobediência, condena sua própria sobrinha à morte.
Daí surge a infinita discussão sobre a reivindicação de Antígona a um direito natural em oposição ao decreto de Creonte, expressão do direito positivo como redução da ordem jurídica à vontade de quem exerce o poder, com desprezo pela justiça. Mas há que entender Creonte, que, ainda que se possa acusá-lo de equívoco, o seu erro se dá em perceber seus limites e suas funções, e não exatamente em querer frear Polinices e retirá-lo da história de sua cidade.
É preciso lembrar que Etéocles, dominado pela vontade de poder, se recusa a cumprir o acordo de estabilidade feito com o irmão. E Polinices, dominado pelo mesmo sentimento, decide pedir ajuda da cidade que o hospedou (Argos) para invadir a dos seus concidadãos, matando os membros de sua própria comunidade e destruindo seus tempos e o palácio. Independentemente de ser usurpador ou não, Etéocles defende Tebas contra a invasão de tropas estrangeiras, tendo Creonte, seu tio, combatendo ao seu lado, enquanto Polinices está disposto a matar seus concidadãos, bem como a destruir os templos da cidade e seu palácio para recuperar o trono.
Vale lembrar que a cidadania no mundo grego é definida, entre outras coisas, pelo dever de defender a cidade. Assim, os soldados são os próprios cidadãos no exercício da função militar. E deve-se ter em mente que os templos e o palácio definem o que é sagrado na cidade: sua unidade, modo de vida, valores, costumes e religião. Assim, a atitude de Polinices, ainda que em reação ao descumprimento do acordo por Etéocles, não pode ser reduzida a uma briga entre irmãos. Ela mostra o caráter do governante que ele seria. O irmão que foi condenado a não ter sua alma recebida no hades era alguém disposto a matar os cidadãos da cidade e a destruir, fática e simbolicamente, a comunidade que ele depois governaria, colocando o poder acima da própria vida social e seu bem-estar.
<blockquote class="jota-article__eye">Não é demais acrescentar que, no mundo grego, governar é, em geral, um dever e uma honra a serem exercidos em nome e em benefício da polis, para manter sua prosperidade e harmonia.</blockquote>
Os homens livres não são súditos dos governantes, mas seus iguais em status (jurídico e social), de modo que a atividade de governar é, entre os gregos, limitada pelas normas da ordem social já estabelecida. Em outras palavras, o conceito de soberania não se aplica àquele universo e o governante não tem um direito subjetivo a sujeitar seus iguais.
Com esse cenário, é compreensível a reação de Creonte quando sobe ao trono. Ele quer recuperar a ordem e a paz de Tebas, expurgando seu maior inimigo da sua memória e dar a dimensão do tamanho da violência cometida contra os tebanos. Ressalte-se que, ao escolher o caminho da guerra contra o seu próprio povo, Polinices conhecia os riscos: sabia da profecia do pai e fez Antígona prometer que não deixaria de enterrá-lo, caso ele morresse (o diálogo aparece na peça “Édipo em Colono”).
Agora, imagine-se que Polinices tivesse vencido a disputa com seu irmão, ganhando o poder de Tebas. Seria natural presumir que, diante da divisão causada na polis, buscaria beneficiar seus partidários e perseguir seus oponentes. Que cederia a oportunistas que ofereceriam suporte de ocasião, em troca de chances que não teriam com um governante não sujeito às mesmas vicissitudes e sem o mesmo histórico. Também faria sentido esperar que ele estivesse disposto a deixar a cidade sofrer de fome e peste se isso garantisse que seu poder não fosse contestado. Teria que recorrer a grupos de apoio, ou mesmo criá-los com uso de recursos da cidade, e se dirigir a eles como bom demagogo, para que ocupassem o espaço público e fizessem parecer que seriam a maioria.
Não seria estranho que o rei se omitisse quando seus apoiadores agredissem seus adversários ou mesmo qualquer cidadão que demonstrasse descontentamento. Pode-se presumir que o comportamento de Polinices fosse no sentido de acreditar que a posição de governar lhe desse o direito subjetivo de mandar, de manter relação de comando e obediência com os cidadãos, a serem convertidos em seus súditos.
Por outro lado, não veria como um dever, uma obrigação, a função característica do governante, cuidar da polis como algo coletivo, em vista ao bem comum e à prosperidade coletiva, tratando o público como ferramenta privada de privilégios, benefícios e perseguição. Além disso, alguém que matou seus próprios concidadãos em nome do poder dificilmente aceitaria ser aconselhado em caminho distinto que que traçou. Tampouco seria de se esperar que respeitasse a opinião dos cidadãos ou outras instituições da polis que tentassem conter sua ânsia de poder e vingança.
Polinices tinha a alma de tirano cruel. Advertido por seu pai do seu destino, preferiu a guerra e o massacre a abdicar do poder. Sabendo dos riscos que corria, fez a irmã prometer que o ajudaria a não pagar pela sua soberba. Sabendo que governaria a polis em ruinas, destruiu os símbolos e a vida de Tebas, subjugando os tebanos. E não queria pagar pelos seus crimes. Polinices precisava ser parado, e sua memória, extirpada da cidade. Se Creonte, que lutou contra seu sobrinho (bem como em outras guerras) pela defesa da cidade errou no modo de reagir, isso não quer dizer que errou na avaliação da situação e na sua intenção.
Tal qual poderia ter acontecido com Tebas, o Brasil de hoje acabou sendo dominado por um Polinices que, conquanto, como a personagem, surgisse com o direito de governar, não quer assumir derrotas e está disposto a tudo para fazer valer sua vontade, inclusive a matar e deixar morrer seus concidadãos, a destruir e tirar o sentido dos seus símbolos, ressignificando-os como opressão e deles se apropriando. Como os templos de Tebas que foram destruídos, a bandeira perdeu o seu sentido de integração. Nosso Polinices precisa ser freado pelas instituições que controlam e equilibram o poder, antes que elas se transformem em meios de manutenção da vontade do tirano. Independente da origem do poder, a tirania é sempre odiosa.
<div id="teste3-99b6e4ed7825b47581be" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('teste3-99b6e4ed7825b47581be', 'UA-53687336-1').createForm();</script> 
<script type="text/javascript">
setTimeout(function(){
 const btn = document.getElementById("rd-button-knf3ol7n")
 const check = document.getElementById("rd-checkbox_field-knhwxg2c")
 btn.disabled = true;
 btn.style.opacity = 0.7;
 check.addEventListener("click", function() {
 if (check.checked){
 btn.disabled = false;
 btn.style.opacity = 1;
 } else {
 btn.disabled = true;
 btn.style.opacity = 0.7;
 }
 });
}, 3000);
</script>

Sébastien_Norblin_Antigone_et_Polynice

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Contra a normalização da atitude de Polinices e os perigos da passividade ante os tiranos

Lições de 'Antígona' para pensar a política de agora

Contra a normalização da atitude de Polinices e os perigos da passividade ante os tiranos