Álvaro Luiz M. Costa Júnior

No intuito de facilitar a identificação de potenciais situações de fraude à sanção, o governo federal implantou nova funcionalidade no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf) <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Identificadas situações que configurem a tentativa de burla, a exemplo de sócios em comum, o sistema efetiva um registro de “ocorrência impeditiva indireta” que justificaria a análise da possibilidade de contratação da pessoa jurídica relacionada. Ou seja, caso uma pessoa jurídica possua sócios em comum com outra que esteja cumprindo sanção de restrição à participação em licitação, esta terá um registro em seu Sicaf que indicará a possibilidade de extensão dos efeitos da sanção.
A partir do registro, os agentes de contratação têm o dever de realizar diligências e avaliar se o registro do Sicaf deve, no caso concreto.
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A proposta é de inegável valor. De fato, todas as medidas possíveis para afastar do sistema de compras públicas empresas inidôneas devem ser adotadas. No entanto, identifica-se no procedimento atual pontos de melhoria que devem ser observados para sua aplicação, em especial porque os agentes de contratação e o próprio sistema não parecem estar adequadamente preparados para atingir a eficácia pretendida. Da forma que se encontra procedimentalizado o instituto, o resultado pode ser inverso ao pretendido, com maior insegurança jurídica nas licitações públicas.
Propõe-se aqui o exame de dois aspectos fundamentais que, na prática, têm afetado diversas empresas de forma equivocada, em processos licitatórios.
O primeiro é quanto à complexidade do exame exigido e a criação de mais uma atribuição aos agentes de contratação <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> que, notoriamente, extrapola a expertise desses profissionais. O segundo é quanto à pulverização das decisões no âmbito nacional, sem nenhum procedimento de uniformização, o que potencializa a ocorrência de decisões totalmente contraditórias para o mesmo licitante.
Em arremate, oferece-se singelos pontos de melhoria, a serem avaliados pelas autoridades competentes.
<h3>Complexidade do exame de impedimento indireto</h3>
O registro de impeditivas indiretas no Sicaf não constitui extensão automática da sanção. O sistema tem por objetivo apenas registrar cruzamentos de dados (cadastrais e constitutivos) de pessoas jurídicas para constatar situações que possam configurar fraude. Não é a mera participação de sócios em comum ou a formação de grupo econômico entre pessoas jurídicas distintas que justifica a extensão automática da penalidade. A constatação de um desses fatores no Sicaf deve ser aprofundada em procedimento específico de apuração, sujeito, inclusive, ao contraditório e à ampla defesa.
Sobre o tema, a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm">Lei Federal 14.133/2021</a> – nova Lei de Licitações — estabelece em seu artigo 14, §1º, a extensão dos efeitos das sanções restritivas ao direito de participar de licitações públicas apenas para o licitante “que atue em substituição a outra pessoa, física ou jurídica, com o intuito de burlar a efetividade da sanção a ela aplicada, inclusive a sua controladora, controlada ou coligada, desde que devidamente comprovado o ilícito ou a utilização fraudulenta da personalidade jurídica do licitante” <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) também é no sentido de que se deve apurar: "1) as condições de constituição da pessoa jurídica ou do início da sua relação com os sócios da empresa sancionada; 2) a atividade econômica desenvolvida pelas empresas; 3) a composição do quadro societário e identidade dos dirigentes/administradores; e 4) compartilhamento de estrutura física ou de pessoal etc.” <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Essas são situações que exigem um exame acurado e conhecimentos jurídicos específicos que, muitas vezes, extrapolam as atribuições e a área de domínio dos agentes de contratação pública. Um agente de contratação que detenha menor familiaridade com o tema ou que possua maior receio de penalização futura pelos órgãos de controle poderá (ou tenderá) estender os efeitos do registro de impeditivas indiretas do Sicaf a partir de situações corriqueiras ou realizar interferências incabíveis na gestão empresarial das empresas do mercado – o que é um risco considerável.
Assim, ainda que haja a necessidade da apuração, há que se questionar se deve ser atribuição do agente de contratação, sem nenhum procedimento de uniformização ou estabilização da decisão, o que é foco dos apontamentos seguintes.
<h3>O risco de decisões contraditórias para uma mesma situação</h3>
Situação mais complexa é a inexistência de um procedimento de uniformização das decisões adotadas para o mesmo licitante, o que ocasiona, não raro, a existência de decisões contraditórias e amplia a insegurança jurídica nos processos licitatórios.
Na medida em que o procedimento instalado atualmente apenas registra a possibilidade de extensão dos efeitos da penalidade, fica a cargo de cada agente de contratação avaliar, pontualmente, se a situação registrada configura ou não tentativa de fraude.
Considerando-se que uma mesma pessoa jurídica participa de um número significativo de licitações, em diferentes órgãos e entidades, isso significa que a licitante que possua o registro de impeditivas indiretas no Sicaf está predestinada a enfrentar o mesmo processo administrativo em todas ou quase todas as licitações de que participar. Mais do que isso, está sujeita a decisões contraditórias, na medida em que, pela complexidade do exame já acenada, há um enorme risco de que ao menos um agente de contratação delibere pela extensão da penalidade.
<h3>Propostas de aprimoramento</h3>
Deve-se exaltar o mérito do registro de “ocorrências impeditivas indiretas” no Sicaf, concebido pelo governo federal, no intuito de afastar do sistema de contratações públicas os licitantes que não compartilham dos valores de probidade e moralidade a que todos estão sujeitos.
Compartilhando deste ideal, a proposta deste artigo é, tão somente, apontar para a necessidade de aprimoramentos que parecem necessários ao procedimento, no intuito de contribuir para o alcance dos objetivos de sua criação.
Nesse sentido, propõe-se para reflexão a realização de esforços para a uniformização do processo decisório, para o que se verificam dois caminhos possíveis: 1) retirar a atribuição do exame e da decisão dos agentes de contratação, centralizando as apurações em um órgão central do governo; ou 2) oferecer um mecanismo de estabilização do entendimento a partir do primeiro caso concreto analisado, o que deverá vincular os demais órgãos e entidades da Administração Pública, salvo decisão judicial em contrário.
Dentre as sugestões apresentadas, a centralização do processo decisório parece a solução mais saudável, na medida em que resolveria também o problema da complexidade do tema e da falta de especialidade dos agentes de contratação. Não se ignora, contudo, o risco de maiores custos para o poder público ou acúmulo de atribuições em determinado órgão – o que merece avaliação pelas autoridades públicas.
Já o mecanismo de estabilização do entendimento parece resolver o aumento da complexidade dos processos licitatórios. Uma vez analisada a situação de determinada pessoa jurídica por um órgão ou entidade pública, a matéria não mais precisará ser enfrentada nos demais procedimentos licitatórios.
Concluindo, não se tem a pretensão de que as sugestões de melhoria ora apontadas exaurem o tema ou sejam insuscetíveis a críticas. Espera-se, de fato, que o presente trabalho tenha o valor de colocar luzes a um problema de ordem prática decorrente do novo procedimento, e que merece maior atenção por parte das autoridades competentes.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A criação do procedimento de registro se deve a orientação do TCU, conforme Acórdão 495/2013-TCU-Plenário.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Utiliza-se aqui a definição da Lei Federal nº 14.133, de 1 de abril de 2021, em seu artigo 6º, inciso LX: “agente de contratação: pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação”.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>Lei Federal 14.133. Artigo 14. Não poderão disputar licitação ou participar da execução de contrato, direta ou indiretamente: [...] III - pessoa física ou jurídica que se encontre, ao tempo da licitação, impossibilitada de participar da licitação em decorrência de sanção que lhe foi imposta; [...] §1º O impedimento de que trata o inciso III do caput deste artigo será também aplicado ao licitante que atue em substituição a outra pessoa, física ou jurídica, com o intuito de burlar a efetividade da sanção a ela aplicada, inclusive a sua controladora, controlada ou coligada, desde que devidamente comprovado o ilícito ou a utilização fraudulenta da personalidade jurídica do licitante.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> TCU. Acórdão 2914/2019-Plenário. Processo nº 013.390/2017-1. Relator Ministro Benjamin Zymler. Sessão de 04/12/2019. Ata nº 47/2019 – Plenário.

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JOTA

Mais controle ou insegurança jurídica? Pulverização das decisões potencializa sentenças contraditórias

Ocorrência impeditiva indireta em licitações

Mais controle ou insegurança jurídica nas licitações? Pulverização das decisões potencializa sentenças contraditórias para o mesmo licitante