Guilherme Jardim Jurksaitis

Israel Albuquerque Gouveia

Uma entidade da administração direta estadual lançou edital para contratar serviços de limpeza, asseio e conservação de próprios públicos. O sindicato da categoria se insurgiu contra o item do edital que expressamente autorizava a participação de cooperativas de trabalho na disputa. Alegou que a requisição dos serviços configuraria relação trabalhista e, por isso, violaria dispositivo de lei federal atinente às cooperativas. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) decidiu pela reforma do edital, a fim de que constasse vedação expressa à participação de cooperativas de trabalho.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Em outro caso, uma entidade da administração indireta estadual divulgou edital para contratar empresa especializada na prestação de serviços médicos. Uma empresa do ramo representou contra o edital, em razão da ausência de vedação expressa à participação de cooperativas de trabalho. O TCE-SP negou razão à empresa, e decidiu que a ausência de proibição expressa no edital não significa haver permissão implícita para a participação dessas entidades no certame.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
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Os exemplos são reais. Aliás, poucos dias separam uma decisão da outra. Uma leitura superficial poderia sugerir que o TCE-SP teria adotado posicionamentos distintos para um mesmo problema. Contudo, um olhar mais atento para a sua jurisprudência mostra que não: as decisões são coerentes e indicam com clareza o entendimento do Tribunal sobre a participação de cooperativas de trabalho em licitações públicas. A seguir, este ensaio procura mostrar o porquê.
<h3>Cooperativas de trabalho para prestação de serviços</h3>
A Constituição Federal dispõe que “a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo” (art. 174, § 2º). Nessa linha, a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5764.htm">Lei 5.764/1971</a> instituiu o regime jurídico das sociedades cooperativas e dispôs sobre a política nacional de cooperativismo, enquanto a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12690.htm">Lei 12.690/2012</a> tratou especificamente da organização e do funcionamento das cooperativas de trabalho, estabelecendo suas diretrizes, suas obrigações e seus direitos.
Essas leis não impedem que as cooperativas prestem os mesmos serviços oferecidos por pessoas jurídicas constituídas pela forma empresarial, mas condicionam a sua execução à ausência dos pressupostos que configurariam uma relação trabalhista típica, como pessoalidade, hierarquia e subordinação. É que é típica das cooperativas a presença dos requisitos de autonomia, autogestão e comunhão de interesses entre seus membros. Dessa forma, todos os cooperados se encontram em pé de igualdade, não havendo entre eles qualquer forma de hierarquia ou de subordinação.
A Lei 12.690/2012, já citada, define cooperativa de trabalho como “a sociedade constituída por trabalhadores para o exercício de suas atividades laborativas ou profissionais com proveito comum, autonomia e autogestão para obterem melhor qualificação, renda, situação socioeconômica e condições gerais de trabalho” (art. 2º). A mesma lei também determina a submissão das atividades das cooperativas de trabalho a uma coordenação e supervisão temporárias, a serem realizadas por cooperados eleitos periodicamente em sistema de rodízio para essas finalidades (art. 7º, § 6º). No regime das cooperativas, não se admite relação de subordinação entre os cooperados, ou entre estes e a entidade contratante, seja ela pública ou privada.
Do ponto de vista contratual, talvez seja esta a principal preocupação do TCE-SP para vedar a contratação de cooperativas para a prestação de serviços que, por sua própria natureza, pressupõem algum grau de subordinação ou de hierarquia entre seus associados. É o caso já mencionado dos serviços médicos. Pelo lado da cooperativa, inexistindo relação de subordinação entre os cooperados, quem determinará a escala de horário de cada profissional? Ausente o requisito da hierarquia entre eles, quem supervisionará a prestação de serviços por cada clínico? E quem irá controlar o comparecimento e o cumprimento da jornada de trabalho por cada médico?
Já pelo lado do poder público, quem será a pessoa acionada em caso de falha na execução do contrato? E quem se responsabilizará pelo cumprimento do ajuste? Como o poder público pode controlar ou mesmo determinar as condições para a prestação dos serviços, se não pode haver qualquer relação de hierarquia e de subordinação nessa relação?
<h3>A visão do TCE-SP sobre contratação de cooperativas</h3>
O principal questionamento que recai sobre os editais apreciados pelo TCE-SP quanto à participação ou não de cooperativas de trabalho em licitações consiste na inclusão ou exclusão de vedação expressa para a sua participação nos respectivos atos convocatórios.
Os representantes que procuram a Corte para defender a necessidade de que haja proibição específica costumam apresentar dois argumentos. O primeiro, menos frequente, é o de que a participação de cooperativas de trabalho em licitações prejudicaria o princípio da isonomia, pois tais entidades seguem normas específicas quanto a suas obrigações fiscais e trabalhistas, as quais não são extensíveis às sociedades empresariais.
Por isso, dizem os representantes, as cooperativas desfrutariam de uma posição mais vantajosa do que as sociedades empresariais para oferecer preços menores e, assim, vencerem os torneios.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
O segundo argumento, mais frequente, é o de que as cooperativas de trabalho estariam legalmente impedidas de prestar serviços que, por sua natureza intrínseca, caracterizariam relações trabalhistas, incompatíveis com a legislação aplicável às cooperativas.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Para o TCE-SP, os dois argumentos estão corretos. Portanto, a Corte não admite a participação de cooperativas de trabalho em licitações que visam à prestação de serviços que envolvem predominância de mão de obra diretamente na consecução finalística do objeto contratado.
Estabelecida essa constatação, resta saber qual é a orientação do Tribunal quanto à necessidade de incluir ou excluir vedação expressa e específica a respeito da participação de cooperativas de trabalho em licitações para a contratação de serviços, como os que foram acima mencionados.
<h3>Editais devem proibir expressamente cooperativas?</h3>
Ao responder a essa pergunta, o TCE-SP avalia três pontos principais. Um deles é saber se o edital admite a participação de cooperativas de trabalho explicitamente. Nessa hipótese, não há dúvida: o edital deve ser retificado a fim de suprimir a correspondente autorização à participação de cooperativas<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Outro aspecto considerado pela Corte é se o edital contém previsão ambígua que, de algum modo, possa induzir a crer que a participação de cooperativas estaria autorizada. Em casos assim, o Tribunal determina a retificação desses itens<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> ou a inclusão de tópico específico no edital para proibir expressamente a participação de cooperativas no certame<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
A terceira característica avaliada pelo Tribunal é se, contrariamente ao quanto acima exposto, o edital contém vedação implícita à participação de cooperativas na disputa. Isso acontece, por exemplo, quando o edital prevê em seu preâmbulo ou na descrição do objeto que a licitação almeja a contratação de empresa especializada para a consecução de determinada atividade. Nessas situações, bastante presentes na jurisprudência do TCE-SP, tem-se afirmado que:
“O (...) edital em exame é expresso e taxativo ao determinar a ’contratação de empresa’‘, o que exclui a participação de sociedades cooperativas, que desfrutam de personalidade jurídica distinta e que são regidas por normas próprias, não aplicáveis às sociedades empresariais. Não há indícios, no edital ou na representação, de que o instrumento convocatório contivesse dispositivo que contrariasse a previsão constante do item 1.1 acima referido, de sorte a inexistir motivo de fato para a concessão do pleito de sustação cautelar para o fim de evitar a participação de cooperativas no certame – pois, afinal, o edital destina-se à contratação de empresa” (TC-20948/989/21-5, Cons. Subs. Samy Wurman, j. 18/10/2021).
Assim, verifica-se que, para o TCE-SP, não há que se confundir o figurino jurídico aplicável às sociedades empresariais e aquele que regula as sociedades cooperativas. No direito, as palavras importam – e muito –, sobretudo quando a própria lei confere a elas um sentido particular e bem definido, como é o caso das sociedades empresariais e das cooperativas.
O posicionamento do TCE-SP sobre a participação de cooperativa de trabalho em licitações encontra respaldo no Termo de Conciliação Judicial firmado entre União e o Ministério Público do Trabalho, em 5 de junho de 2003, o qual estabelece vedação para a contratação de cooperativas de mão de obra para a prestação de serviços em que a realização das atividades acarreta, essencialmente, regime de subordinação perante a entidade contratante.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Embora atuando em esferas distintas e absolutamente autônomas, o entendimento do TCE-SP também está em sintonia com o enunciado da Súmula 281/2012 do Tribunal de Contas da União, segundo a qual “[é] vedada a participação de cooperativas em licitação quando, pela natureza do serviço ou pelo modo como é usualmente executado no mercado em geral, houver necessidade de subordinação jurídica entre o obreiro e o contratado, bem como de pessoalidade e habitualidade”.
As cooperativas de trabalho possuem legitimidade para contratar com a administração pública e possibilitam ganhos repartidos de forma mais abrangente em razão de sua estrutura, sendo dever do poder público atuar em prol do desenvolvimento e integração dessas sociedades, mas sem que daí resulte violação à legislação aplicável, com riscos para a administração pública contratante e para os próprios cooperados.
Por isso, a administração pública deve estar atenta às orientações dos Tribunais de Contas, a fim de garantir a lisura de suas contratações e o bom andamento de suas licitações.
As opiniões expressas neste artigo são de exclusiva responsabilidade de seus autores e não se confundem com as das instituições que integram.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> TC-6874/989/19, Tribunal Pleno, Rel. Cons. Subs. Silvia Monteiro, j. 10/4/2019.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> TC-7707/989/21, Tribunal Pleno, Rel. Cons. Sidney Estanislau Beraldo, j. 28/4/2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Por exemplo, TC-13413/989/16, Tribunal Pleno, Rel. Cons. Cristiana de Castro Moraes, j. 28/9/2016.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Por exemplo, TC-8214/989/18, Tribunal Pleno, Rel. Cons. Sidney Estanislau Beraldo, j. 25/4/2018.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Por exemplo, TC-18084/989/20, Tribunal Pleno, Rel. Cons. Cristiana de Castro Moraes, j. 26/08/2020; e
TC-7781/989/20, Tribunal Pleno, Rel. Cons. Samy Wurman, j. 11/03/2020.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Por exemplo, TC-26508/989/20, Tribunal Pleno, Rel. Cons. Silvia Monteiro, j. 10/02/2021.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Por exemplo, TC-11994/989/19, Tribunal Pleno, Rel. Cons. Cristiana de Castro Moraes, j. 05/06/2019.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Termo de Conciliação Judicial. Disponível em: <a href="https://www2.fab.mil.br/hca/images/funsa/08.pdf">https://www2.fab.mil.br/hca/images/funsa/08.pdf</a>.

licitação cooperativas

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JOTA

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Contratações públicas e cooperativas de trabalho

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