Magali Favaretto Prieto Fernandes

Milena da Fonseca Azevedo

Maria Eugênia do Amaral Kroetz

O Congresso Nacional ainda precisa decidir sobre os vetos presidenciais à<a href="https://in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.200-de-2-de-setembro-de-2021-342651440"> Lei 14.200,</a> sancionada em 2 de setembro de 2021, que dispõe sobre a licença compulsória de patentes e altera o art. 71 da Lei de Propriedade Industrial (LPI). A lei aplica-se a patentes em geral, mas o projeto que motivou a reforma foi direcionado às vacinas e medicamentos para o combate à Covid-19.
Três meses após a sanção, a lei permanece sem efeito, e os vetos não foram apreciados. Defensores do projeto original <a href="https://congressoemfoco.uol.com.br/blogs-e-opiniao/forum/lei-que-pode-baratear-medicamentos-para-covid-fica-esquecida-no-congresso/">afirmam</a> que o Executivo descumpre a lei, pois nenhuma lista de produtos essenciais e suas respectivas patentes foi preparada, e que o Congresso Nacional é conivente com a negligência do Executivo, já que sequer apreciou os vetos.
O esquecimento da lei, para além dos conflitos entre o Legislativo e Executivo, pode ser melhor observado e entendido à luz do contexto internacional, especialmente diante das propostas de flexibilizações do Acordo sobre Propriedade Intelectual (TRIPS)<a href="https://www.wto.org/english/tratop_e/covid19_e/proposals_e.htm"> </a><a href="https://www.wto.org/english/tratop_e/covid19_e/proposals_e.htm">colocadas à mesa</a> na Organização Mundial do Comércio (OMC). O debate sobre o tema no nível multilateral foca em transferência de tecnologia, segredos de comércio, restrições das exportações às cadeias de valor e outros fatores que impactam na produção e distribuição global de vacinas, além dos efeitos sobre direitos de patentes.
Dentre os<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-432.htm"> </a><a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-432.htm">vetos</a> do Presidente Jair Bolsonaro à Lei 14.200/21, os principais atingiram, de fato, as mudanças propostas ao art. 71 da LPI que previam a transferência de tecnologia. A primeira previa que, uma vez decretada a licença compulsória, o titular da patente deveria fornecer todas as informações necessárias e suficientes à efetiva reprodução do objeto protegido, bem como todos os aspectos técnicos aplicáveis (know-how), resultados de testes e dados necessários à concessão do registro. Uma segunda determinava o fornecimento do material biológico ao licenciado, caso esse fosse essencial à realização prática do objeto protegido pela patente. Em síntese: tudo que fosse necessário à efetiva produção das vacinas, desde a matéria-prima, passando pelo  processo de produção, até o registro, estaria incluído na chamada "quebra da patente", conforme comumente se diz sobre a licença compulsória.
Nas justificativas ao veto, o Presidente da República afirmou que as obrigações adicionais de transferência de tecnologia poderiam "trazer caos ao sistema patentário nacional e suscitar conflitos com a indústria farmacêutica e farmoquímica". Profissionais do direito especialistas em patentes já<a href="https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,lei-que-permite-quebra-de-patente-de-vacinas-nao-deve-gerar-tanto-impacto-dizem-especialistas,70003830978"> </a><a href="https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,lei-que-permite-quebra-de-patente-de-vacinas-nao-deve-gerar-tanto-impacto-dizem-especialistas,70003830978">haviam antecipado</a> que, mantidos os vetos, a lei não geraria impacto relevante à dinâmica de aquisição de vacinas. Ao contrário, poderia engessar mais o processo de licença compulsória já existente na LPI, que, lembre-se, foi amplamente utilizado pelo governo brasileiro em 2007, nas licenças para os medicamentos da AIDS.
Para os defensores do projeto original, a lei sancionada resultou inócua, pois no caso das vacinas para a Covid-19, de nada adianta a licença compulsória se não for também transferida a tecnologia. Argumentam que o cenário atual é muito diferente daquele em que o Brasil decretou a compulsoriedade para os medicamentos contra a AIDS. Naquele contexto, a oferta de insumos era regular e o Brasil, assim como outros países em desenvolvimento, realizavam a engenharia reversa para produzir os medicamentos. A licença compulsória foi suficiente para incentivar a produção local e reduzir os custos. No contexto atual, os insumos são escassos e as cadeias de produção e distribuição são complexas. Além do que, existem inúmeras patentes e segredos comerciais também sobre os ingredientes básicos, as sequências genéticas, as células hospedeiras e os vetores virais.
As vacinas para a Covid-19 baseiam-se em diferentes tecnologias, como vetores virais, proteínas, mRNA e nanopartículas de lipídios. Tecnologias subjacentes às vacinas podem ser protegidas por patentes, enquanto métodos e técnicas de fabricação (know-how) são protegidos por segredos comerciais. A tecnologia básica pode ser inventada em um ambiente acadêmico ou uma start-up, protegida por patentes e, posteriormente, licenciada para diversas entidades para o desenvolvimento e comercialização. Barreiras como as cadeias de distribuição e as múltiplas formas de proteção da propriedade intelectual podem impedir (ou atrasar) o acesso equitativo e a alocação justa das vacinas. Uma análise preliminar da rede de patentes, licenças e sub-licenças, realizada a partir dos arquivos da  U.S. Securities and Exchange Commission (SEC), revelou uma <a href="https://www.nature.com/articles/s41587-021-00912-9">densa teia</a> de acordos cruzados de licenciamento e um complexo cenário de propriedade intelectual por trás das vacinas para a  COVID-19 baseadas na tecnologia de mRNA.
Na OMC, a proposta de renúncia temporária aos direitos de propriedade intelectual (waiver) sobre medicamentos e tecnologias médicas da COVID-19, formulada pela África do Sul e Índia em outubro de 2020, <a href="https://www.reuters.com/business/healthcare-pharmaceuticals/year-after-covid-vaccine-waiver-proposal-wto-talks-are-deadlocked-2021-10-04/">também permanece sem decisão</a> após 14 meses. O pedido visa permitir que os países-membros não implementem as proteções de propriedade intelectual durante prazo a ser definido pelo Conselho ou até que a vacinação atinja proporções globais. A proposta defende que patentes, segredos comerciais, copyrights, e desenhos industriais são barreiras ao compartilhamento de tecnologia e à expansão da vacinação aos países menos desenvolvidos, e portanto devem ser flexibilizadas.
Os Estados Unidos e mais de cem países de renda média e baixa suportam a iniciativa. A União Europeia,<a href="https://genevahealthfiles.substack.com/p/understanding-germanys-trenchant"> </a><a href="https://genevahealthfiles.substack.com/p/understanding-germanys-trenchant">liderada pela Alemanha</a>, sede da BioNTech, seguida pelo Reino Unido, sede da AstraZeneca, e pela Suíça, opõem-se à proposta. O principal argumento é o de que relaxar patentes impede a inovação e que as flexibilizações já previstas no Acordo TRIPS são suficientes.
A OMC tornou-se um fórum relevante no processo multilateral de respostas à pandemia da Covid-19.  No início, assumiu protagonismo diante da<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/no-comercio-internacional-salve-se-o-pais-que-puder-16052020"> </a><a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/no-comercio-internacional-salve-se-o-pais-que-puder-16052020">fragilidade das cadeias globais de valor</a> envolvendo produtos médicos, empreendendo esforços para garantir o fluxo do comércio internacional de medicamentos, insumos e equipamentos médicos. Com o desenvolvimento das vacinas, a distribuição destas e a potencial desigualdade de acesso entre os países passaram a ocupar o centro do debate. Contudo, a discussão travou e o consenso parece cada vez mais distante.
Além do pedido de suspensão temporária, há duas outras propostas alternativas. A segunda, apresentada pela União Europeia em junho de 2021, reconhece que a pandemia é uma emergência internacional, mas busca otimizar as possibilidades de <a href="https://www.wto.org/english/tratop_e/trips_e/public_health_faq_e.htm">flexibilização</a> já existentes nos artigos 31 e 31bis do TRIPS. Uma terceira via, proposta pelo chamado "Grupo Ottawa"1, no qual o Brasil se inclui, objetiva expandir a produção local através da utilização da capacidade instalada; a promoção de parcerias por meio de contratos de licenciamento entre desenvolvedores e produtores; o esforço colaborativo na transferência de tecnologia, expertise e know-how; e o enfrentamento das barreiras comerciais na  distribuição, incluindo a possibilidade de utilizar as flexibilidades já existentes no TRIPS. A proposta foi liderada pela Diretora-Geral Ngozi Okonjo-Iweala, como tentativa de destravar as negociações, bloqueadas após a oposição da União Europeia.
Fato é que o Brasil avançou de forma expressiva na vacinação, estando <a href="https://ourworldindata.org/covid-vaccinations">atualmente</a> à frente de países desenvolvidos e produtores das principais vacinas, como Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos2. Contratos de licença e produção em centros de pesquisa nacionais, como Butantan e Fiocruz, foram determinantes para que a vacinação avançasse. No entanto, o Brasil ainda depende maciçamente das importações das vacinas da Pfizer/BioNtech. Recentemente, a Pfizer firmou <a href="https://eurofarma.com.br/releases/pfizer-e-biontech-anunciam-colaboracao-com-a-eurofarma-para-producao-da-vacina-contra-a-covid-19-para-a-america-latina">carta de intenção</a> com a Eurofarma para produção no Brasil a partir de 2022. Porém, a empresa brasileira receberá o insumo dos Estados Unidos e fará somente a finalização da produção e distribuição. A ONG internacional <a href="https://www.citizen.org/article/trips-waiver-facts-vs-myths-v2/">Public Citizen</a> defende que os acordos anunciados pelas farmacêuticas para produzir vacinas em países em desenvolvimento são acordos do tipo “fill and finish”, apenas para a última etapa da cadeia produtiva e não permitem a produção da substância da vacina. Portanto, não envolvem significante transferência de tecnologia e know-how. Países de renda média como Brasil e África do Sul dispõe de meios relativos para pagar o preço das vacinas importadas, mas os de <a href="https://data.undp.org/vaccine-equity/affordability/">baixa renda</a> dependem inteiramente de doações ou das vacinas subsidiadas por iniciativas como a COVAX.
O veto presidencial está sobrestado na pauta do Congresso Nacional, enquanto a OMC cancelou a 12ª Conferência Ministerial, que deveria ocorrer de 30 de novembro a 3 de dezembro, em razão da emergência da variante Ômicron. Seja no âmbito nacional, pela apreciação dos vetos à Lei 14.200/21, seja no nível multilateral, com alguma decisão sobre as propostas apresentadas à OMC, a transferência de tecnologia das vacinas precisa ser enfrentada.

Planos de saúde

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JOTA

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