Coronavírus

Libertarismo e liberalismo em tempos de pandemia

Em contexto de pandemia, o Estado deve agir com foco, determinação e urgência. Não por meio de uma reação tardia

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O ministro da Economia, Paulo Guedes | Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Ao obrigar os governos a gastar trilhões de dólares, convertendo instalações públicas em hospitais e exigindo que o gasto público seja direcionado a famílias pobres, a pandemia do Covid-19 corroeu as condições para a continuidade das experiências da agenda econômica liberal posta em prática por governos populistas de direita.

É o caso do Brasil, onde o ministro da Economia, Paulo Guedes, alegou que a privatização de estatais era o modo prioritário de obter recursos para tempos de guerra sanitária. Também voltou a editar MPs com enviesamento patronal, como a que autorizava a suspensão de contratos de trabalho, sem prever providências compensatórias para os trabalhadores. Agiu como no caso da reforma previdenciária, que dificultou o acesso aos tribunais de acidentados do trabalho, e quando taxou o seguro-desemprego sob a justificativa de promover o emprego.

Antes da pandemia, ele afirmava que preciso afastar os gargalos que impediam a retomada do crescimento. Poucas vezes um ministro da Economia se apresentou como sendo declaradamente liberal. Guedes, porém, jamais explicou o sentido que dá a esse termo. No máximo, afirmou que o formalismo jurídico despreza a eficácia alocativa dos fatores de produção. Encarando a ordem legal do ponto de vista de sua adequação à consecução de metas estabelecidas a partir de uma lógica econométrica, disse que certos princípios jurídicos da Constituição ameaçam a estabilidade macroeconômica.

Em suas falas, o ministro não considerou o liberalismo como uma doutrina que, nos séculos 18 e 19, consagrou a liberdade de iniciativa e de mercado, ao mesmo tempo que enfatizou a importância da regulação estatal em matéria de direito de propriedade, publicidade dos atos negociais, combate a monopólios e criação de mecanismos judiciais para assegurar o cumprimento de contratos. Pelas MPs que produziu, parece não ter compreendido a importância que o liberalismo dá aos primados do Estado de Direito, como o acesso aos tribunais, o devido processo legal e a defesa da concorrência.

Em sua primeira fase – que abrange o contratualismo de Locke e Hobbes e a teoria dos sentimentos morais de Adam Smith – o liberalismo aponta as condições necessárias ao funcionamento do mercado, à acumulação e ao estímulo às vocações empreendedoras. É avesso ao dirigismo estatal, mas destaca as liberdades públicas como marcos normativos desse jogo e da atuação do Estado sobre os cidadãos, segundo regras democraticamente por eles definidas. Também enfatiza o princípio da responsabilidade social de quem empreende e obtém lucros, enfrentando os riscos de mercado.

E, por mais que seja pró-mercado, entende que, onde o Estado é reduzido ao mínimo, o contrato social se corrói. Com o passar do tempo, o liberalismo passou a afirmar que, embora não caiba ao Estado indicar o que é felicidade aos cidadãos, ele tem de atuar para que o jogo político seja equilibrado, pois, onde há desigualdade, nem todos podem decidir em iguais condições. Para ser livre, o indivíduo necessita de condições materiais básica, sem as quais o alcance de seu campo de escolha é limitado. E isso exige repensar os direitos vinculando-os a mecanismos compensatórios, capazes de atenuar os desequilíbrios advindos do jogo dos mercados.

Poucos são os vestígios da influência do liberalismo histórico no que ministro da Economia chama de agenda liberal. Menores, ainda, são os vestígios do que tem sido o liberalismo após 1970, quando John Rawls, professor de filosofia de Harvard, publicou Uma Teoria da Justiça, aprofundando o pensamento liberal ao justificar a conciliação da ideia de responsabilidade governamental com o respeito à liberdade dos cidadãos.

À época, o mundo ocidental estava preso a uma tensão entre as crises de governabilidade e de legitimidade e a teoria política se revelava incapaz de conciliar as ideias de liberdade e de igualdade. Até então, a história mostrara que as experiências que priorizaram à liberdade relegaram desprezaram a justiça social e que as experiências que enfatizaram o igualitarismo culminaram na corrosão da democracia. Para Rawls, essa incapacidade de conciliação era um falso dilema.

Suas ideias não constituíram unanimidade, mas houve consenso de que seu livro era um dos maiores trabalhos da filosofia já apresentados nos Estados Unidos. A obra discute as condições de existência e sobrevivência de uma sociedade justa e estável integrada por cidadãos livres e iguais; a necessidade de certos padrões de igualdade; e a valorização da tolerância, da autonomia dos indivíduos e da igualdade com relação a direitos básicos na democracia moderna. Ao propor um liberalismo igualitário, Rawls afirma que a liberdade de cidadãos livres e iguais implica um senso de justiça, por ele definido como a capacidade de entender e agir com base numa cooperação social encarada em termos equitativos.

A determinação dos termos equitativos dessa cooperação envolve o contrato social como ideia reguladora da vida política – mais precisamente, da ordem legal necessária para a efetivação dos direitos não só civis e sociais. E, para que essa cooperação seja legítima e se dê conforme regras democráticas, é necessário projetar a posição original dos cidadãos livres e iguais no momento do contrato social.

Daí a necessidade de um nível mínimo de educação, renda e condição de saúde para que todos possam exercer sua liberdade na prática da cooperação. E isso depende não sós das liberdades formais previstas pela Constituição, mas, igualmente, de funções governamentais alocativas, de estabilização, de transferência e distributivas.

Funções essas capazes de promover o emprego por meio do estímulo à demanda, coibir a concentração de poder econômico e assegurar um mínimo social que complemente a renda dos mais pobres.  “As expectativas mais altas daqueles mais bem situados são justas se, e apenas se, funcionarem como parte de um esquema que melhore as expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade”, diz Rawls. Em suma, não confunde liberalismo com um contexto em que as forças de mercado agem de modo indiscriminado.

Partindo da premissa de que por princípio os mercados são eficientes e o Estado regulador viola a liberdade, os defensores de um liberalismo mais radical – como F. Hayek e R. Nozick – refutaram a defesa feitas por Rawls das funções corretivas e distributivas do poder público e criticaram a ideia de justiça definida por critérios de equidade. Em nome do que chamam de libertarismo, alegaram que uma distribuição é justa quando atende a determinados princípios de aquisição e de transferência da propriedade. O que importa é como ela foi constituída e não suas implicações com um princípio de equilíbrio na distribuição de bens e oportunidades.

Os argumentos apresentados por liberais e libertários não estão presentes nos programas de Guedes. O que ele entende como mercado é uma economia liberta de constrangimentos pelo poder público. Considera natural a transformação de obrigações públicas em negócios privados.  Sem compreender que o contrato social e o pacto moral nele implícito são corroídos quando serviços essenciais são reduzidos ao conceito geral de mercadoria, ao defender sua transferência da esfera pública para a do mercado ele tem em mente um mercado autorregulado. É a ideia de que a interação entre agentes econômicos que não precisa responder perante a comunidade, conjugada com a defesa de um Estado minimalista e de formas privadas de Justiça, como a arbitragem.

De que modo classificar como liberal um ministro que, em suas MPs, hiper-responsabiliza os indivíduos por seu futuro, ao mesmo tempo em que promove a desresponsabilização de agentes econômicos? O que chama de liberalismo é assim uma vulgata de um libertarismo que prevê uma economia desregulamentada onde a regra é a exploração ilimitada da conjuntura, com os agentes procurando maximizar a qualquer preço todas as vantagens possíveis. Uma economia onde esses agentes buscam, egoisticamente, vantagens de curto prazo ao mesmo tempo em que desprezam suas responsabilidades para com os outros e para com a comunidade. É como se o mercado fosse dotado de um poder constituinte absoluto, rejeitando qualquer possibilidade de regulação estranha à economia e aos seus cálculos de oportunidade.

A obsessão por reduzir a ação regulatória estatal e privatizar indiscriminadamente serviços públicos revela uma visão distorcida das instituições. Uma visão incapaz de perceber que políticas públicas são implementadas por meios públicos – e estes envolvem não só recursos governamentais, mas as leis e os instrumentos de sua aplicação. Essa visão distorcida enfatiza a ideia de função, em termos de produção de resultados e rentabilidade financeira. Mas se esquece de dois pontos importantes: (a) em termos institucionais função implica noção de responsabilidade; e (b) se determinadas funções podem ser privatizadas, determinadas responsabilidades não podem. Nessa visão não há lugar, assim, para ideias como planejamento, metas de longo prazo e tratamento isonômico que deve reger as relações entre capital e trabalho.

Instituições e normas que tornam os resultados das transações seguros e previsíveis, como o cumprimento dos contratos, são vitais para a economia de mercado. Portanto, a ideia de uma agenda econômica liberal é algo que só pode ser entendido dentro dos marcos normativos postos pelo Estado e da distinção entre o que é público e privado.

Ao insistir na tese de que o mercado não pode ser regulado por qualquer estrutura normativa transcendente às próprias transações e ao defender uma liberdade radical no universo dos negócios, o ministro não é liberal. E é por isso que tem dificuldade de entender que, num contexto de pandemia, o Estado deve agir com foco, determinação e urgência. E não por meio de uma reação tardia e desarticulada, que depende e medidas de exceção – como estado de emergência – para dar algum resultado.