José Reinaldo de Lima Lopes

Felipe Augusto Gato Dutra

Luiz Felipe Roque

Em que se assemelham um terremoto, uma guerra ou uma pandemia? São males comuns. Isso quer dizer que atingem aleatoriamente a muitos ou a todos os membros de um grupo humano. Quando atingidos por essas catástrofes, percebem que antes delas viviam melhor, gozavam de um bem comum: a terra em que se encontravam, um estado de paz, um certo bem-estar e boa saúde.
Um terremoto é um mal comum natural; uma guerra, um mal comum social. O bem comum da firmeza da terra não está em nosso poder criar – ao menos por enquanto –, mas o bem comum da paz, sim. E no caso da pandemia? Impedir que um novo vírus apareça também não está em nosso poder: mas impedir ou diminuir sua propagação, sim.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Não há dúvida de que a pandemia da Covid-19 tem dimensões sociais (o risco de colapso do Sistema Único de Saúde – SUS, a propagação do vírus por comportamentos evitáveis), e conhecer sua natureza é o primeiro passo para agir efetivamente contra seus efeitos.
Diferentemente de males individualizáveis, os ônus de um mal comum não se limitam a um ou outro membro, mas são suportados por toda a sociedade – o que não implica que todos serão igualmente afetados por ele.
Aqueles que não podem trabalhar em home office, tendo que se deslocar via transportes públicos lotados, ou os que não têm acesso a lazer e entretenimento em sua residência sofrem mais do que outra parcela da população. O mal é comum não porque afeta a todos individualmente, mas porque pode atingir qualquer um. É aleatório.
O mal comum requer sua distribuição na sociedade (que não concentre os prejuízos sociais em determinado grupo, em favor de outro) e, para superá-lo, pressupõe cooperação. A distribuição dos ônus e esse esforço de cooperação, contudo, vêm sendo um desafio para o Brasil desde que as primeiras medidas de saúde pública se mostraram necessárias. A mentalidade aventureira, individualista e predadora manifestou-se como nunca<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>.
Entre os juristas notam-se dois problemas: a ignorância do que seja um mal comum – de que falamos acima – e a confusão entre liberdade natural e liberdade civil. A primeira, propagada no senso comum, equivale à liberdade em estado de natureza, fora da vida civil, no qual todos podem agir conforme a própria vontade ou instintivamente, como fazem outras espécies animais.
A segunda é a liberdade de quem vive sob leis – e se limita ao que é compatível com a liberdade dos outros e com a vida comum. A pandemia evidencia essa confusão conceitual tanto na esfera particular, quanto na pública-institucional, quando não em ambas.
No âmbito privado, incorrem nessa confusão os defensores do uso facultativo de máscaras ou da vacinação. A recusa individual do uso de máscaras pode ser compatível com a ideia de liberdade natural, mas não com a de liberdade civil.
A máscara não é obrigatória no interesse da pessoa, mas no interesse do outro, dos outros, ou do SUS, que não será capaz de responder à demanda de internações. Igualmente, se a vacinação é tratada como escolha individual, mantém-se o risco à saúde pública – à saúde dos outros cidadãos, pois o vírus segue circulando e sofre mutações sem ser contido.
Representantes políticos e autoridades públicas ignoram frequentemente essas questões. Exemplo disso é a decisão liminar da 3ª Vara de Fazenda Pública de Belo Horizonte (MS nº 5002651-73.2021.8.13.0024) que concedeu, na semana passada, mandado de segurança a um sindicato de comerciantes de Minas Gerais desautorizando o fechamento temporário de atividades comerciais não-essenciais previsto em decreto municipal (Decreto Municipal de Belo Horizonte nº 17.523/2021)<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>.
A decisão identifica, no decreto, a supressão da livre iniciativa (art. 1º, inciso IV c/c art. 170, caput da Constituição Federal). O raciocínio só faria sentido se considerássemos a liberdade de iniciativa como liberdade natural. Empresas, contudo, são pessoas jurídicas às quais são atribuídas certas liberdades civis, cujo exercício deve se dar sob as limitações da vida comum.
É a letra da Constituição Federal em seu art. 170, parágrafo único, que diz: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (grifo nosso)<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>.
Por essa razão, muitos estabelecimentos comerciais não podem funcionar sem um alvará dos bombeiros; restaurantes não podem dispensar protocolos de higiene ou a fiscalização da vigilância sanitária, etc. – e podem ser fechados e responsabilizados se o fazem, pois põem em risco a segurança e a saúde pública. Assim como essas medidas não suprimem a livre-iniciativa, também não o fazem aquelas tomadas no combate à Covid-19.
A mesma confusão conceitual levou a decisão a identificar suposta violação do princípio da legalidade pela edição do decreto municipal, pois não seria competência da Prefeitura (via decreto), mas da Câmara Municipal de Belo Horizonte (via Lei Municipal), determinar o fechamento temporário de estabelecimentos de atividades não-essenciais, na medida em que este estabelece limites ao livre exercício de atividades econômicas<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>.
Há pelo menos dois erros neste entendimento. Primeiro, a Lei Federal nº 13.979/2020 prevê a “quarentena” como medida de enfrentamento à pandemia (art. 3°, inciso II), sendo essa medida definida como a “restrição de atividades (...) de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus” (art. 2º, inciso II).  A restrição de atividades, portanto, faz parte do próprio conceito de quarentena, cabendo ao decreto especificar como esta se dará (sua regulamentação).
O segundo erro está na má compreensão da dinâmica necessária ao combate à pandemia. As medidas de seu enfrentamento devem alterar-se conforme o ritmo de proliferação da doença; as ações devem ser rápidas e compatíveis com a situação atual da localidade.
Exigir que uma lei autorize cada medida restritiva individualmente tomada é desconhecer o caráter coletivo da pandemia, o qual pressupõe que, em certa proporção, algumas liberdades, enquanto liberdades civis, podem ser limitadas. Para usarmos uma comparação com outros atos administrativos corriqueiros: seria exigível que a mudança de mão de direção numa rua – que afeta a “liberdade natural” de seus usuários - só se fizesse por lei no sentido formal?
Ora, à lei não cabe senão prever medidas gerais que podem ser adotadas no enfrentamento da Covid-19, devendo a administração dosá-las no dia a dia.
<blockquote class="jota-article__eye">Nem toda restrição de liberdade civil é abusiva por definição. Caso implique abuso ou desvio de poder, não deve ser examinada de forma sumária – num mandado de segurança –, mas de maneira minuciosa e considerando a dimensão coletiva do objeto do litígio.</blockquote>
Finalmente, a confusão conceitual entre liberdade natural e civil se dá na esfera pública e privada simultaneamente.
Exemplo disso é a discussão sobre a possibilidade de vacinação paralela à do SUS, encampada pelo setor privado.
É o caso do aval do Governo Federal encaminhado à AstraZeneca autorizando a compra de imunizantes por empresas privadas brasileiras para que estas vacinassem seus funcionários, condicionada a doação de metade do lote ao SUS. É uma tentativa de privilegiar um grupo em detrimento de outros, fragmentando a própria república, ignorando exatamente a “comunalidade” do mal.
A justificativa que se invoca para a vacinação paralela é a de que isso agilizaria a retomada econômica, fundamental para o país nesse momento. O problema é a priorização de alguns que afetaria não apenas as empresas ou seus empregados, mas toda a sociedade.
Havendo vacinas disponíveis, estas deveriam ser distribuídas mediante critérios universais. Se o setor privado pretende auxiliar na campanha de vacinação, que contribua com a aquisição e distribuição segundo um plano geral e público.
Não se deve admitir uma vacinação cujo critério coloque à frente dos demais os menos afetados pela pandemia ou que têm maior poder ou influência. Permitindo esse cenário, o país continuaria incorrendo nos mesmos erros de toda: a má distribuição dos ônus e benefícios sociais e a fragmentação da ação coletiva, mantendo a lógica individualista e patrimonialista do “quem pode mais, chora menos”.
“Farinha pouca, meu pirão primeiro” é a forma coloquial de expressar o individualismo imoral difuso na cultura brasileira. No comportamento das instituições republicanas – de um juiz de primeira instância a um presidente – isso é uma severa degradação da vida civil.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> Vivemos tempos que expõem com clareza a incapacidade nacional para esforços coletivos. O caso é exemplar, mas não é novo nem único. A incapacidade nacional de superar desigualdades, pobreza e racismo fornece outros exemplos de falta de cooperação.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> A decisão foi proferida mesmo após suspensão, em segunda instância, de liminar da mesma 3ª Vara da Fazenda Pública de Belo Horizonte que concedia a reabertura de atividades comerciais não-essenciais no Município. Decisão de reabrir o comércio em BH é suspensa. 21 de janeiro de 2021. Disponível em: &lt;<a href="https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/tjmg-suspende-reabertura-de-comercio-em-bh.htm#!">https://www.tjmg.jus.br/portal-tjmg/noticias/tjmg-suspende-reabertura-de-comercio-em-bh.htm#!</a>&gt;. Acesso em 3 de fevereiro de 2021.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> A diferenciação entre serviços essenciais e não essenciais tampouco viola a isonomia: o combate à pandemia requer estratégias que reduzam a circulação de pessoas. Que serviços considerados essenciais permaneçam abertos não é privilégio, mas medida para conter a circulação do vírus sem exponenciar os ônus sociais da pandemia: o desabastecimento de alimentos, por exemplo, implicaria mal de consequências todos os consumidores, inclusive os que trabalham no setor de serviços não-essenciais.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> Segundo a liminar, não é suficiente que o decreto se fundamente na Lei Federal nº 13.979/20, sendo necessária lei municipal prevendo expressamente a restrição de atividades comerciais. Para tanto, interpreta em sentido literal o termo “legalmente” no acórdão da ADPF nº 672 do STF, que reconhece a competência concorrente de Municípios para adotarem em seu território medidas sanitárias restritivas legalmente previstas.

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JOTA

Não se deve admitir uma vacinação que coloque à frente dos demais os que têm maior poder ou influência

Liberdades individuais e males comuns

Não se deve admitir uma vacinação que coloque à frente dos demais os que têm maior poder ou influência