Pandemia

Liberdade para demitir, meios para resistir

Sistema constitucional brasileiro tem ao menos 3 formas de reagir a estratégias irresponsáveis do presidente

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil/ Fotos Públicas

É enorme a chance de que você, tanto quanto eu, não queira que o ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, seja demitido. Mandetta nunca foi o ministro da saúde dos sonhos, tampouco um amigo do SUS, que muito tem sofrido durante sua gestão. Mas, nas últimas semanas, tem sido um dos poucos exemplos de sensatez no obscurantismo que assola a presidência da República. Apoiar a permanência de Mandetta deve ser entendido, portanto, em um contexto muito específico, marcado pelo risco de que alguém pior seja nomeado em seu lugar.

Mas o compreensível medo das irresponsabilidades cometidas por Bolsonaro desde o início da pandemia da Covid-19 não pode servir de justificativa para ignorar a Constituição. O presidente da República tem liberdade para nomear e demitir ministros e ministras (art. 84, I). Nos termos da constituição, essas são tarefas que competem “privativamente” ao presidente. Qualquer interferência do Congresso ou do STF será indevida.

Há quem diga que, se o Judiciário já impediu a nomeação de ministros no passado (Lula, no governo Dilma, e Cristiane Brasil, no governo Temer), também teria o poder de impedir a demissão de Mandetta. Mas esse argumento é insustentável por diversas razões. Em primeiro lugar, porque, ao impedir a nomeação de Lula e Cristiane Brasil, o Judiciário simplesmente desrespeitou a Constituição. Erros do passado não podem justificar erros do presente.

Além disso, mesmo se se entende que o Judiciário pode impedir nomeações (como parece supor o STF, por exemplo), daí não decorre que possa também impedir demissões. Embora ambas as ações sejam interferências indevidas do Judiciário na política, impedir demissões é ainda mais grave do que impedir nomeações.

Para impedir a nomeação de um ministro ou ministra, um tribunal nunca poderia dizer: o indicado não será um bom ministro! Pois é justamente esse o tipo de argumento que tem sido agora aventado por alguns: Mandetta faz um bom trabalho e, por isso, o STF deve impedir sua demissão.

Atribuir a um tribunal o poder de decidir qual ministro pode ser nomeado ou demitido não é apenas uma clara violação à Constituição. É dar a juízes não eleitos (bem intencionados ou não) o poder de interferir no cerne do governo, mesmo que nenhuma ilegalidade tenha sido cometida. Não há medo que justifique tamanho disparate.

Uma segunda saída proposta recentemente seria emendar a Constituição para dar, não ao Judiciário, mas ao Legislativo, o poder de controlar a demissão de ministros. Em sua versão mais enxuta, defendida aqui no JOTA por Diego Werneck Arguelhes, Eduardo Jordão e Thomaz Pereira, a proposta deveria delimitar com precisão a situação em que uma interferência do Legislativo seria devida: no caso de uma pandemia, o presidente da República não poderia demitir o ministro da Saúde sem o aval do Senado. Em qualquer outra hipótese, o presidente continuaria a ter liberdade para nomear e demitir seus ministros e ministras.

Esse parece ser um bom exemplo de quão equivocado é definir regras gerais com base em situações excepcionais.

Quando temos um presidente irresponsável e um ministro da Saúde aparentemente sensato, a proposta parece fazer algum sentido. Em qualquer outra situação, ela apenas criaria obstáculos desnecessários para que um presidente sensato demitisse com rapidez um ministro da Saúde irresponsável.

Todas essas propostas parecem supor que a Constituição é insensível a contextos excepcionais como o atual. Em outras palavras, elas partem do pressuposto de que, se o presidente da República tem absoluta liberdade para nomear e demitir ministros, não haveria nada a fazer e teríamos que nos conformar com as irresponsabilidades do atual presidente.

Essa é uma suposição equivocada.

O sistema constitucional brasileiro tem ao menos três formas de reagir a estratégias irresponsáveis do presidente no combate à pandemia, independente de quem seja o ministro da Saúde.

O presidente e o ministro da Saúde agem nos espaços livres que a legislação deixa a eles. Assim, quanto mais específicas forem as leis para lidar com a pandemia, menor será a liberdade do presidente. Se, por exemplo, o Congresso faz uma lei que exija um determinado tipo de distanciamento social, o presidente e seu ministro (não importa quem seja) não podem decidir em sentido diverso. Caso o façam, pode o Congresso Nacional sustar a decisão do Executivo (art. 49, V).

A segunda forma de reação já está em curso. O conceito chave aqui é o federalismo. Governadores têm demonstrado como resistir às irresponsabilidades do Executivo federal. Parte considerável das boas medidas que vêm sendo adotadas vêm de governos estaduais, não do governo federal.

Por fim, independente do nome do ministro da Saúde, caso o Congresso Nacional entenda que o presidente está colocando a saúde e a vida da população em risco, há sempre a saída do impeachment.

A Constituição, portanto, embora não impeça a troca de ministros, cria condições para que o sistema político possa reagir a ações irresponsáveis no combate à pandemia. Menos judicialização e alterações na constituição, e mais política, apoiada pelas normas constitucionais que já temos, pela ciência e pela opinião pública, talvez seja a melhor forma de combater o vírus e o obscurantismo.

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