Marcelo Costa Soares

Este artigo tem como foco refletir sobre a normativa eleitoral – em especial no dia das eleições – no que se refere à livre manifestação individual sobre a preferência de eleitores. É importante verificar que essa normativa se faz também presente na esfera penal, enfatizando a criminalização de condutas que muitas vezes se tornam desproporcionais diante da realidade dos fatos.
Mesmo após a recente reforma eleitoral, verifica-se a intenção de se ter mais penalizações por parte do legislador. Vale dizer que a nova reforma inseriu um novo tipo de tipificação. Essa nova tipificação diz respeito à veiculação no dia da eleição de novos conteúdos ou o impulsionamento de conteúdos na internet que caracterizam propaganda eleitoral de acordo com o Art. 39, §5º, IV, da Lei 13.488/2017 [1]. O conhecido crime de "boca de urna", portanto, ganhou uma nova interpretação no âmbito digital.
Porém, antes de analisarmos o crime de “boca de urna” em sua nova versão, é necessário entendermos que o denominado crime tem pena de seis meses a um ano, com alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período e multa. Conforme enfatizam Luiz Márcio Pereira e Rodrigo Molinaro, o objetivo do legislador foi o de assegurar que não haja influência do eleitorado no dia da eleição. Ou seja, “que o eleitor possa exercer a soberania popular norteado, exclusivamente, pela sua consciência e que, à espera do veredito das urnas, os candidatos guardem respeito recíproco” [2].
Dito isso, fica evidente que a reforma eleitoral quis deixar claro que pouco importa se a conduta ou crime de “boca de urna” seja praticado em local próximo ou distante de um local de votação ou mesmo pela internet. Basta que haja manifestação no sentido de querer influenciar o eleitor no dia da eleição. Nesse sentido, é curioso analisarmos o que seria influenciar outros eleitores.
Interessante notarmos que existe permissão da legislação – especificamente no Art. 39-A, caput da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13488.htm#:~:text=%C3%89%20vedada%20a%20veicula%C3%A7%C3%A3o%20de,e%20candidatos%20e%20seus%20representantes.">Lei 13.488/2017</a> – sendo às vezes desconhecido por muitos para que se possa fazer manifestação individual e silenciosa no dia da eleição em relação à determinada preferência de agremiação, coligação ou até candidato [3].
A questão a ser observada é: até que ponto essa manifestação individual do eleitor mesmo usando bandeiras, broches, adesivos permitidos pelo artigo acima terminam ou não influenciando outros, ao passo que qualquer outro meio de expressão do eleitor estaria tipificado em crime de “boca de urna”?
Certo, no entanto, que mais que uma simples tendência de criminalização de atos tidos como ilícitos no dia da eleição, o princípio da intervenção mínima consagrado no art. 5.º, LIV, da Constituição de 1988, e que traz consigo o princípio da proporcionalidade, seria o meio que nos daria um caminho, um norte para se interpretar e eventualmente punir ou não o cidadão pelo crime de “boca de urna” principalmente com o advento da internet.  A intervenção mais radical à liberdade do indivíduo só se legitimaria na medida em que fosse a sanção penal a medida restritiva indispensável e que não pudesse ser substituída por outra igualmente eficaz e menos gravosa [4].
Surge, portanto, a questão da interpretação e a polêmica em relação à reforma da Lei das Eleições: haveria uma certa desordem normativa acarretando certas violações às liberdades constitucionais de expressão e de manifestação do livre pensamento? Nesse sentido, e na ausência de um dispositivo legal claro, fica a dúvida em saber como a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/justica-eleitoral">Justiça Eleitoral</a> interpreta ilícitos no mundo real e como irá interpretar essa questão na esfera da internet sem restringir de forma desproporcional o direito dos usuários à livre manifestação de seus pensamentos.
Como se comportar no mundo cada vez mais digital em que os usuários de internet utilizam redes sociais, aplicativos com objetivo de exercer direitos constitucionais de livre manifestação de pensamento, opiniões, críticas, sem incorrer eventualmente e possivelmente no crime de “boca de urna” no dia da eleição? Tal situação frente à uma realidade digital acarreta a seguinte dúvida: a Lei das Eleições, que admite uma manifestação de pensamento de forma silenciosa teoricamente no dia das eleições poderia – por não ser muito clara – ensejar um grande possível número de ações penais futuramente?
Fica, portanto, uma mera reflexão sobre uma futura e essencial análise no que tange o mundo dos fatos [5] e o questionamento se a criminalização do ilícito aqui analisado mostra-se apto a promover a proteção que a lei almeja ou se criminalizar a “boca de urna” na era digital tendo como base todo um preceito constitucional do livre pensamento, ainda que no dia do pleito, seria algo evidentemente inconstitucional e quase impossível de ser interpretado. Mostrando, quem sabe, ser mais um exemplo da vulgarização dos instrumentos sancionatórios penais muitas vezes incompreensíveis à luz da realidade em que vivemos e frente à Constituição de 1988.
<hr />
[1] BRASIL. Lei nº 13.488, de 6 de outubro de 2017. Lei das Eleições. Disponível em: <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13488.htm</a>. Acesso em 02/08/2022.
[2] PEREIRA, Luiz Márcio. MOLINARO, Rodrigo. Propaganda política: questões práticas relevantes e temas controvertidos da propaganda eleitoral. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 281.
[3] RAIS, Diogo. FALCÃO, Daniel. Direito Eleitoral Digital. 2. Edição. Thomson Reuters. Revista dos Tribunais. São Paulo. p. 182.
[4] LUZ, Marcos, SOUZA, Lilian. Dia da Eleição. A manifestação política do eleitor. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11756/dia-de-eleicao-a-manifestacao-politica-do-eleitor-que-nao-configura-o-crime-de-boca-de-urna. Acesso em 02/08/2022.
[5] NESSER, Fernando Gaspar. Crime e mentira na política. Belo Horizonte: Forum, 2016. p.115

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