Daniel Capecchi Nunes

Em um prédio de uma repartição, no coração do Brasil, uma autoridade comissionada, oriunda da política eleitoral, despacha e toma decisões sobre o funcionamento de uma fração importante da burocracia. Sabendo ou não, aquela autoridade tem um papel fundamental no processo de concretização do texto constitucional. Os desdobramentos do caso da insatisfação do Ministro da Educação com uma disciplina a ser ministrada na UNB ilustram isso. 
Recentemente, Luis Felipe Miguel, professor da UNB, propôs uma disciplina para graduação intitulada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”. <a href="https://www.poder360.com.br/governo/unb-dara-aulas-sobre-golpe-de-2016/" target="_blank" rel="noopener">Após uma reportagem de um sítio virtual</a>, alegando o absurdo de uma tal disciplina em uma Universidade Federal, o Ministro da Educação, Mendonça Filho, manifestou-se sobre o tema, dizendo que: <a href="https://www.poder360.com.br/brasil/ministerio-da-educacao-prepara-acao-contra-curso-do-golpe-de-2016-da-unb/" target="_blank" rel="noopener">“[e]stá claro que não houve base científica na criação desse curso. Contraria as boas práticas da educação. Alguém não pode ter uma ideia ou uma opinião e simplesmente oferecer dentro de uma universidade [...]” (grifos nossos).</a> E afirmou que estaria acionando, enquanto Ministro, órgãos de controle (MPF, AGU, CGU e TCU) para verificar a legalidade da conduta dos envolvidos e as possíveis responsabilizações. 
A despeito da disputa política e acadêmica que envolve a natureza do impedimento que ocorreu em 2016, uma questão torna-se patente: quais são os limites do mérito científico ou político das pesquisas de professores de instituições federais de ensino? A questão, que aparentemente concerne à uma disputa entre Mendonça e Miguel, transcende o debate pessoal e diz respeito ao modelo de democracia e de sistema educacional estabelecido pela Constituição de 1988.
No âmbito da pergunta levantada, dois aspectos são fundamentais para compreender o debate. Em primeiro plano, é preciso delimitar quais são os contornos da liberdade de cátedra. Em seu texto, a Constituição de 1988 estabelece que a educação tem como um de seus princípios a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (art. 206, II). Trata-se, portanto, de uma liberdade assegurada pela Constituição, que só pode ser limitada quando em choque com outro direito fundamental. 
Por exemplo, um professor que resolva promover o discurso de ódio na Universidade, poderia ter sua liberdade de cátedra limitada frente a outros direitos fundamentais que possam ser atingidos e tenham maior peso, no caso concreto. Portanto, a simples insatisfação com a qualidade científica ou política de um determinado argumento acadêmico não pode ser motivo para suscitar o controle de legalidade e a “responsabilização dos envolvidos”, é preciso que haja algum direito fundamental em jogo.
Em segundo plano, de forma preliminar, alguém poderia argumentar que todas as instituições públicas podem estar sob controle e que, por consequência, não haveria nenhum problema na conduta do Ministro. Não havendo motivos para controle de legalidade ou responsabilização de agentes, os ofícios despachados pelo Ministério não teriam quaisquer efeitos práticos. 
A realidade, entretanto, é mais complexa. O simples fato de um Ministro da Educação se sentir à vontade para propor averiguações sobre uma ementa de disciplina com a qual ele não está de acordo por motivos políticos ou científicos tem um efeito em toda comunidade científica. Outros pesquisadores e professores podem se sentir desencorajados a estudar o mesmo tema e ter medo de, eventualmente, sofrerem alguma formação de sanção ou aborrecimento. Algo que, no âmbito da liberdade de expressão, os americanos chamam de chilling effect ou efeito de esfriamento. 
À título de conclusão, surge a questão com a qual iniciamos esse texto, qual seja o papel de agentes públicos na concretização da Constituição. É que, 
tradicionalmente, quando se pensa na aplicação da Constituição, imagina-se a figura de um juiz ou de uma corte interpretando e dando vida a um texto legal. A realidade, entretanto, é mais complexa: muitas vezes, o trabalho de dar vida a Constituição depende de uma série de agentes públicos que não se veem como aplicadores ou guardiões do texto. 
O caso analisado é exemplo emblemático disso, uma declaração e um ofício do Ministro da Educação podem ter efeitos negativos sistêmicos na comunidade científica brasileira, atingindo em cheio a liberdade constitucional de cátedra. As consequências de uma decisão administrativa, desse tipo, podem se desdobrar em tantas direções, que é difícil até mesmo pensar em instrumentos judiciais para contê-las. 
De tal modo que é essencial que se deixe claro o papel dos agentes públicos na efetivação de direitos e as limitações do controle judicial das consequências de condutas indesejáveis. Nem sempre o Judiciário terá a capacidade de desfazer os efeitos negativos de uma determinada conduta e essa precisa ser a premissa inicial de um debate desse tipo. Ao contrário do que a imaginação jurídica tem sustentado nos últimos anos, nem sempre a força normativa da Constituição vai depender de uma sentença. Muitas vezes, tudo que ela tem são os limites de uma portaria ministerial.

16720733420_3958eed9b9_h

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

O caso da disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”

A liberdade de cátedra na Constituição de 1988

O caso da disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”