Kemil Jarude

O grande avanço das Revoluções Liberais foi justamente o de colocar limites ao poder ilimitado das monarquias absolutistas. A imposição da Carta Magna sobre João Sem Terra na Inglaterra estabeleceu uma nova relação entre administração e administrados. Essa redistribuição do poder sobre o controle do Estado é o que permitiu o surgimento da democracia moderna. Nesse contexto, o liberalismo, tirando as interpretações turvas sobre o conceito, é justamente o movimento político de dar aos súditos o poder de influenciar as decisões do Estado, tornando-os cidadãos.
Com a emergência das ditas Constituições Econômicas pós-Segunda Guerra, o que se observa é um movimento de reequilíbrio da relação entre Estado e setor privado na economia. Com isso, o Estado passou a ter maior papel na regulação entre os privados, de modo que a liberdade adquirida em relação ao Estado não fosse corrompida pela obtenção excessiva de poder de um privado, usando tal poder em prejuízo dos demais privados.
A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/privatizacao">privatização</a> de grandes estatais no Brasil durante a década de 1990 ampliou a democracia para o mercado após o controle excessivo do Estado na economia durante a ditadura militar que assolou o país por 21 anos. Dado que alguns dos setores econômicos então dominados por grandes estatais seriam atividades econômicas de monopólio estatal, segundo o artigo 21 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">CF/88</a>, seria necessário que o Estado brasileiro fiscalizasse a atuação dos privados que passassem pelo processo concessão. O modelo proposto foi o das agências reguladoras. Esse instituto é oriundo do direito americano e fora criado no século 19. Por lá, o direito administrativo é inclusive conhecido como direito das agências<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Nos Estados Unidos, porém, antes de cursar direito, os estudantes passam por outras áreas, inclusive economia, permitindo que haja juízes com uma formação muito mais ampla. Além disso, já no ano de 1946, foi aprovado o Administrative Procedure Act, que uniformizou a atuação das agências e permitiu que sua atuação fosse submetida à revisão judicial<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Embora haja uma leitura de que tribunais americanos possuem limitações quanto ao controle judicial das decisões das agências reguladoras e de que haja mecanismos prévios para avaliar a efetividade de medidas regulatórias (hard look doctrine)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, há outras leituras que apontam para um efeito benéfico da judicialização no sentido de tal judicialização responder a falhas da aplicação de uma política que seja de sua responsável ou a omissões quanto a tomadas de decisões lhe seriam esperadas<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Além disso, o que se apresenta é um papel muito mais ativo do Poder Legislativo estadunidense na fiscalização das condutas das agências<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Por outro lado, no Brasil, cerca de 80% das decisões judiciais acabam por confirmar o posicionamento das agências<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Além disso, o tempo médio para uma decisão final varia entre três e seis anos<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Ainda, sabe-se que no Brasil, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tcu">Tribunal de Contas da União</a> (TCU) acabou por arrogar a si o controle operacional das agências reguladoras<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, resultando em diversas consequências problemáticas para o funcionamento das agências<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Os resultados demonstrados por Maranhão (2016) acabam por revelar que a falta de incentivos corretos para uma análise adequada por parte da primeira instância leva à concessão de medidas cautelares que tendem a prolongar o não cumprimento correto de medidas administrativas, bem como a uma confusão de análise técnica com necessidade de perícia, o que decorreria da falta de conhecimento técnico por juízes de primeira instância sobre temas de natureza regulatória.
Este também seria um motivo para disputas de competência negativa, prolongando ainda mais o pronunciamento final do Estado quanto a conflito entre regulador e regulado. Por fim, tal falta de conhecimento sobre temas regulatórios levaria a decisões conflitantes entre primeira instância, geralmente pró-regulado, e instâncias superiores, geralmente pró-regulador<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Isso quando não há um cenário de disputa judicial, por um lado, e intervenção por parte do TCU, pelo outro. O resultado é a criação de um ambiente regulatório dominado pela insegurança jurídica.
Quanto a isso, é importante que se tenha em mente o que diz a nossa Constituição Federal no seu artigo 5º, inciso XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Portanto, ter conflitos entre regulado e regulador é algo inevitável e a provocação do Judiciário para isso é caminho do qual não há possibilidade de desvio ou mesmo quando se busca o instrumento da arbitragem para resolver tal conflito. Uma proposta que poderia reduzir os problemas levantados seria a constituição de uma justiça especializada na resolução de conflitos entre regulador e regulado, além de englobar a competência exercida hoje pelo TCU, de modo a concentrar os conflitos relativos à regulação, além de permitir uma maior especialização dos juízes.
Nessa linha, por exemplo, o modelo criado com o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a> pela Lei 12.529/11 se mostra bem-sucedido. Muito embora não se tenha criado uma justiça especializada propriamente dita, a organização estabelecida pela nova Lei de Defesa da Concorrência permitiu que se houvesse duas instâncias dentro do mesmo órgão. Tal organização criou um mecanismo de análise especializada, as denominadas Coordenações-Gerais, submetidas a um Superintendente-Geral. Tais coordenações fazem análise de mercado e realizam investigações, que podem ser levadas a um contraditório inicial na própria Superintendência-Geral ou, de forma mais intensa, no âmbito do Tribunal do Cade. Não à toa que o Cade é um dos órgãos mais premiados da administração pública federal<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Portanto, o atual cenário do controle judicial das questões regulatórias no Brasil acaba por aprisionar o liberalismo no país na medida em que impede que regulados tenham suas demandas devidamente respondidas pelo Estado. O longo prazo para a obtenção de tal resposta afeta não apenas a oferta dos serviços regulados como também prejudica a própria reputação de quem executa o serviço, além de reduzir a confiança de outros privados em concorrer pela oferta de tais serviços com efeitos deletérios para toda a sociedade. Logo, para liberar o liberalismo não é preciso desregular, como se menos estado fosse a melhor resposta, porém permitindo desequilíbrios de poder de mercado, mas sim incrementando os mecanismos democráticos que possam dar vazão para os conflitos entre regulados e reguladores.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CARBONELL, Eloísa; MUGA, José Luis. Agências y procedimiento administrativo em Estados Unidos de América, Madri: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, 1996. Apud DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas, 5ª edição, São Paulo: Atlas, 2005, p. 196.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2] </a> CARVALHO REZENDE OLIVEIRA, Rafael. O Modelo Norte-Americano de Agências Reguladoras e sua Recepção pelo Direito Brasileiro. Revista da EMERJ, v. 12, nº 47, 2009. P.161. Disponível em: <a href="https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista47/Revista47_157.pdf">https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista47/Revista47_157.pdf.</a>                   Acesso em:02/09/2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3] </a> WANG, Daniel. Juliana., BONACORSI DE PALMA, e GAMA COLOMBO, Daniel. Revisão judicial dos atos das agências reguladoras: uma análise da jurisprudência brasileira. In: Schapiro, Mário Gomes, (ed.) Direito Econômico Regulatório. Saraiva, São Paulo. 2010. pp. 269-328.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4] </a> Gelbach, Jonah B. and Marcus, David, Rethinking Judicial Review of High Volume Agency Adjudication (September 21, 2017). Texas Law Review (2018, Forthcoming), Arizona Legal Studies Discussion Paper No. 17-23, U of Penn Law School, Public Law Research Paper No. 17-53, Available at SSRN: <a href="https://ssrn.com/abstract%3D3040940">https://ssrn.com/abstract=3040940</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5] </a> Idem.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6] </a> SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO, Juliano. A revisão judicial de decisões de decisões das agências regulatórias: jurisdição exclusiva? In: O judiciário e o estado regulador brasileiro. MOTA PRADO, Mariana (Org.).São Paulo : FGV Direito SP, 2016. pp. 25-46.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7] </a> Idem.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8] </a> MARQUES NETO, Floriano. BONACORSI DE PALMA, Juliana. Diálogos fora de esquadro: o controle das Agências Reguladoras pelo Tribunal de Contas da União. Em Revista Brasileira de Estudos Políticos Ed. 120. 2020. pp. 203-206.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9] </a> JORDÃO, Eduardo; RIBEIRO, Maurício Portugal. Como desestruturar uma agência reguladora em passos simples. Revista Estudos Institucionais, v. 3, n. 1, p. 180-209, ago. 2017.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10] </a> SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHÃO, Juliano. A revisão judicial de decisões de decisões das agências regulatórias: jurisdição exclusiva? In: O judiciário e o estado regulador brasileiro. MOTA PRADO, Mariana (Org.).São Paulo : FGV Direito SP, 2016. pp. 25-46.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11] </a> Cf. <a href="https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/premiacoes">https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/premiacoes</a>

steven-lelham-atSaEOeE8Nk-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Atual cenário do controle judicial das questões regulatórias no Brasil acaba por aprisionar o liberalismo no país

A falta de segurança jurídica no nosso direito regulatório

Atual cenário do controle judicial das questões regulatórias no Brasil acaba por aprisionar o liberalismo no país