Carmen Silvia Lima de Arruda

Adentramos a era digital e, seguindo a tendência protetiva de dados da União Europeia, editamos a Lei 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), dispondo sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, com desafio de compatibilizar direitos fundamentais da personalidade, privacidade e intimidade, incluídos os direitos relacionados à honra e à imagem, com direitos igualmente protegidos, de acesso à informação e à garantia de liberdade de expressão. Todos informados pelos princípios constitucionais da publicidade e transparência.
Em junho de 2020, quando já se aproximava o início da vigência deste importante marco legal para o desenvolvimento econômico, tecnológico, sustentável e digital do país, buscou-se seu adiamento, por meio da Medida Provisória 959/2020, rejeitada no Senado. Na sequência, editou-se a Lei 14.010/2020 que, a despeito de manter inalterada a vacacio legis prevista no artigo 65 para 1° de agosto de 2020, trouxe um pequeno acréscimo: o inciso I-A, postergando a vigência dos artigos 52, 53 e 54, que tratam da fiscalização e sanções administrativas pelo descumprimento da LGPD, dispositivos que passam a vigorar a partir do dia 1º de agosto de 2021.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Claramente uma solução conciliatória: a LGPD está em vigor, mas não as sanções previstas para hipóteses de descumprimento<a name="_Toc17297742"></a><a name="_Toc20317457"></a>. O inescusável atraso na implementação dos dispositivos da LGPD pelo próprio poder público se evidencia face do tardio surgimento da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, em novembro de 2020. Diante de inúmeras denúncias de vazamento de dados e exposições indevidas na Internet, é aprovado o Regimento Interno da ANPD<a href="applewebdata://8EA38B9C-9798-4BB3-8113-2D9C9D0DB536#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
No âmbito do Poder Judiciário, não se pode dizer que o assunto não era conhecido: desde 2016, o Conselho Nacional de Justiça recomendava aos Tribunais “adoção de medidas preventivas e maior rigor no controle quanto à forma como são geradas, armazenadas e disponibilizadas informações judiciais de caráter sigiloso e/ou sensíveis”.
Ainda no plano de medidas preparatórias e ações iniciais, o CNJ expediu a Recomendação nº73 de 20 de agosto de 2020, objetivando a adoção de medidas para instituir um padrão nacional de proteção de dados pessoais existentes em todo Judiciário brasileiro; determinou-se a criação de Comitê Gestor de Proteção dos sítio eletrônico com informações e adequação à LGPD em cada um dos 91 tribunais brasileiros. Na sequência, a Recomendação nº 89 de 24.02.21, conferiu mais 180 dias para que os Grupos de Trabalho dos Tribunais elaborarem e apresentarem relatório final sobre as medidas necessárias à implementação da LGPD nos respectivos tribunais, prazo que irá coincidir com a vigência das sanções previstas nos artigos 52,52 e 54.
Se por um lado comemoramos o fato de o Poder Judiciário brasileiro estar praticamente todo digitalizado, o que permitiu a continuidade dos serviços judiciais neste momento de pandemia da Covid-19, com o trabalho remoto em casa, por outro lado devemos reconhecer que os processos digitais carecem da devida adequação aos comandos imperativos de proteção de dados da LGPD<a href="applewebdata://8EA38B9C-9798-4BB3-8113-2D9C9D0DB536#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Fato é que as partes no processo judicial se encontram expostas, desprotegidas e desinformadas acerca da dimensão da exposição que podem vir a sofrer. Quando do ajuizamento de uma ação, o autor indica seu nome, prenome, estado civil, existência de união estável, profissão, inscrição no CPF, endereço, domicílio e residência, assim como os dados pessoais do réu, além dos fatos e fundamentos do pedido, tudo acompanhado dos documentos comprobatórios, ou seja, uma infinidade de dados pessoais, cujo tratamento passa a ser responsabilidade do Poder Judiciário, desde a autuação até sua baixa final. Tais dados poderão ser objeto de compartilhamento entre os partícipes do processo, testemunhas, auxiliares da justiça, servidores do cartório, advogados constituídos ou não, até mesmo consultados por motivo de pesquisa acadêmica, ou análise de advogados mesmo sem procuração, e até compartilhados com outro juízo, se assim solicitado.
<blockquote class="jota-article__eye">Especialmente preocupante a exposição nos processos envolvendo questões de saúde, como nos pedidos para obtenção de leitos e de medicamentos, onde uma enorme quantidade de dados sensíveis, sem qualquer proteção, filtro, controle ou consentimento dos titulares são disponibilizados na Internet, e certamente passíveis de reutilização ou comercialização.</blockquote>
De igual forma, pedidos de aposentadoria por deficiência física ou por invalidez, por doenças incapacitantes, ou pedidos de pensões podem expor indevidamente os litigantes, titulares de dados sensíveis.
Atualmente, numa rápida pesquisa de jurisprudência nos banco de dados de qualquer dos nossos tribunais é possível extrair uma infinidade de dados pessoais sensíveis das decisões publicadas nos sítios oficiais, abertos e desprotegidos; quiçá até já integralmente copiados. Mais delicada quando as decisões envolvem dados pessoais sensíveis, revelando origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou à organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural, cujo consentimento expresso de utilização e tratamento se faz imprescindível.
<a name="_Toc467848466"></a>Urge a adoção de medidas concretas de proteção dos dados no âmbito judicial, com a instituição de procedimentos compatíveis com o nível de segurança e atualidade exigidos para o tratamento de dados pessoais e sensíveis dos jurisdicionados, propiciando confiança e transparência no tratamento dispensado.
Consentimento, informação e medidas simples como imposição de sigilo ou mesmo mecanismos deanonimização dos dados, com a substituição dos nomes dos autores por iniciais aleatórias, de forma que não seja possível sua identificação, já deveriam estar implantados, desde a vigência LGPD. Já estamos atrasados na implementação destes mecanismos para proteção da intimidade e dignidade, nesta nova realidade de processos digitais. Em pouquíssimo tempo, restará apenas a imposição de sanções pelas omissões dos agentes de tratamento de dados.
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O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
https://youtu.be/1T8EYyNCQeM
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<a href="applewebdata://8EA38B9C-9798-4BB3-8113-2D9C9D0DB536#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em &lt;<a href="https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/regimento-interno-da-anpd-e-publicado-no-diario-oficial-da-uniao" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/regimento-interno-da-anpd-e-publicado-no-diario-oficial-da-uniao</a>&gt; Acesso em 15 março 2021.
<a href="applewebdata://8EA38B9C-9798-4BB3-8113-2D9C9D0DB536#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ARRUDA, Carmen Silvia Lima de. A transparência na proteção de dados no Poder Judiciário. In MONACO, Gustavo Ferraz de Campos; MARTINS, Amanda Cunha e Mello Smith; CAMARGO, Solano de. Lei Geral de Proteção de Dados. Ed. Quartier Latin, São Paulo, 2020, p. 159-169.

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JOTA

Processos digitais carecem da devida adequação aos comandos imperativos de proteção de dados da LGPD

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