Naiara Moura

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018), dispõe expressamente, em seu artigo 4º, caput, inciso III, alíneas “a” e “d” c/c § 1º,  sobre a necessidade de aprovação de uma lei específica para regulamentar o tratamento de dados no tocante ao sistema de justiça criminal, a partir da constatação de que o referido tema requer uma análise mais apurada e ponderações peculiares.
Tratando-se de persecução penal e segurança pública, a legislação pátria possui apenas a ordenação sobre o sigilo e sua quebra em diversas situações<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, em que são estipuladas as condições para que os dados considerados sigilosos possam ser acessados por autoridades, enquanto as questões relacionadas à proteção e tratamento dos dados gerais de cunho pessoal ficaram sem a devida regulamentação.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Ressalta-se que a Constituição Federal dispõe sobre a proteção dos dados pessoais nos incisos X e XII do artigo 5º, porém o faz de forma genérica.
Nesse sentido, vale lembrar que, em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a proteção de dados pessoais como um direito fundamental em decorrência da identificação da inconstitucionalidade material da Medida Provisória 954<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>/2020, cujo entendimento dos ministros vencedores foi no sentido de que  o direito à proteção de dados pessoais é um direito fundamental, espelhado no princípio da dignidade da pessoa humana  (art. 1º, III da CF) e nas garantias de proteção à inviolabilidade da intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, assim como à autodeterminação informativa e o sigilo dos dados, dispostos no art. 5º, X e XII, da Constituição Federal Brasileira.
Em razão dessa lacuna intencional na estrutura da LGPD sobre o tratamento de dados pessoais para fins de segurança pública e persecução penal, em novembro de 2019, por ato do presidente da Câmara dos Deputados, foi instituída uma comissão de juristas para a elaboração de uma lei específica a fim de regulamentar o tema, cujo anteprojeto foi recebido em novembro de 2020.
Resumidamente, o mencionado Anteprojeto de Lei “apelidado” de LGPD Penal, inspirado na própria LGPD (Lei nº 13.709/18) e dispositivos da diretiva da União Europeia nº 680/16, traz consigo três principais objetivos, quais sejam:
I. a proteção adequada dos cidadãos considerando o seu direito fundamental de proteção dos seus dados pessoais;
II. garantir maior segurança jurídica aos agentes de tratamento, pois é preciso clareza no sentido de identificar as condutas lícitas ou não durante a apuração de um crime ou execução de uma operação, por exemplo;
III. a inserção do Brasil na agenda internacional visando uma maior cooperação de outros países em investigações de crimes que ultrapassam a territorialidade brasileira.
O APL está estruturado em 12 capítulos referentes ao âmbito de aplicação da lei, dispositivos principiológicos equivalentes à LGPD, exposição das bases legais dos diferentes tipos de dados, direitos, garantia e segurança da informação, transferência internacional e Autoridade de Supervisão.
<blockquote class="jota-article__eye">Portanto, difere-se da LGPD, principalmente, em duas particularidades, porquanto dispõe de um capítulo específico sobre publicidade, transparência e acesso aos dados e sobre as tecnologias de monitoramento e tratamento de dados de alto risco.</blockquote>
Além disso, há a previsão de dois documentos para assegurar a proteção dos dados no âmbito do sistema de justiça criminal, sendo o primeiro, denominado de “Análise de Impacto Regulatório” cujo escopo é instruir processos legislativos, visando garantir um melhor processo de análise e diagnóstico sobre a utilização de determinada tecnologia ou operação que execute um tratamento de dados de alto risco, observar a necessidade da medida, garantir uma melhor qualidade regulatória e dispor sobre a mitigação de riscos, se houver.
Já o segundo documento, conhecido como “Relatório de Impacto de Proteção de Dados Pessoais” é bastante semelhante ao relatório previsto na LGPD, porém é exigido para alguns tipos de dados sensíveis, sigilosos, dados tratados de forma automatizada e em caso de utilização de tecnologia de monitoramento e tratamento de dados de alto risco.
Pretende-se assim, assegurar a proteção do cidadão em três níveis, ou seja, antes do tratamento, com a elaboração da “Análise de Impacto Regulatório”; durante o processo legislativo, ao ditar uma série de direitos e obrigações e uma política de uso dos dados a serem observados; e após a aprovação da lei, com a feitura do “Relatório de Impacto”.
Teoricamente, o APL, ainda que um tanto imaturo, sem dúvida é uma necessidade para a proteção dos dados pessoais dos cidadãos, porém, na prática, com certeza iremos nos deparar com conflitos entre direitos fundamentais, uma vez que, usualmente, as atividades concernentes à investigação criminal demandam a manipulação de uma gama de dados pessoais com a finalidade de apurar fatos supostamente criminosos.
Assim, a missão dos operadores do direito e agentes de tratamento será a de conciliar e ponderar de um lado, os deveres do Estado na prevenção e na repressão de ilícitos penais, preservando a tutela da segurança e ordem pública e de outro, assegurar a observância dos direitos fundamentais e garantias processuais dos cidadãos brasileiros no que tange ao tratamento de dados pessoais.
Os direitos fundamentais não são absolutos e, como mencionado acima, muitas vezes há conflito de interesses. A solução, nesses casos, deverá vir da Constituição Federal ou do intérprete, no caso concreto, a quem caberá decidir qual direito deverá prevalecer, levando em consideração as disposições do Anteprojeto, futuramente convertido em lei, além da regra da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos – autodeterminação informativa, reserva legal, presunção de inocência, liberdade, vida privada, intimidade, segurança, ordem pública, direito à vida – juntamente com a mínima restrição ou seja, a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos sem sacrificar as condições de segurança e investigação das autoridades competentes.
Em que pese a defasagem do efetivo e sucateamento das condições dos nossos órgãos de segurança pública, observa-se uma grande tendência de investimento nas tecnologias de vigilância, compreendidos no avanço da inteligência artificial e o interesse das empresas de tecnologia na venda de seus produtos e serviços para o Estado.
Ademais, em virtude das nossas movimentações na internet, deixamos cada vez mais vestígios da nossa personalidade, gostos, referências e informações no espaço cibernético, sendo que, atualmente, é possível que as autoridades utilizem livremente esses dados “perdidos” na rede para fins investigativos ou processuais penais.
Buscando uma solução para tais ocorrências, o APL regulamenta a maneira como as investigações criminais poderão ter acesso aos dados a partir de tecnologias novas e já existentes, entre elas geolocalização, uso de malware em celulares de suspeitos e o reconhecimento facial.
Como lidar, por exemplo, com uma acusação indevida em razão de um falso positivo reconhecimento facial, podendo distorcer a autoria de um crime e tornar uma pessoa suspeita colocando em risco o seu direito de liberdade, além de ferir vários princípios, como o da dignidade da pessoa humana.
Diante de tais conflitos, entendemos que os institutos jurídicos penais devem guiar-se por uma inafastável necessidade de um ponto de equilíbrio, em que a regulação de situações confrontantes não seja determinada através da antítese “Estado versus cidadão”.
O Estado está obrigado a cumprir ambos os fins, ou seja, assegurar a ordem social e a segurança pública e proteger a esfera de liberdade e garantia de todos os direitos fundamentais do cidadão.
Com essas considerações, questiona-se se o Anteprojeto regulamenta de forma satisfatória as questões axiológicas e de preservação de direitos. Ousamos dizer que tal tarefa será árdua. O APL dispõe de diretrizes e prevê condutas e sanções penais capazes de nortear o comportamento, tanto dos cidadãos, quanto das autoridades no tocante ao tratamento de dados pessoais.
Porém, a experiência empírica é que irá indicar as melhores e mais acertadas decisões acerca de eventuais confrontos principiológicos.
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Referências bibliográficas:
Constituição da República Federativa do Brasil. 1988;
Lei 9296/96. 24 de julho de 1996. Regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5° da Constituição Federal;
Lei 12965/14. 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil;
Lei 12.850/13. 02 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências;
Lei Complementar 105/2001. 10 de janeiro de 2001. Dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências;
Decreto-Lei 3689/1941 (Código de Processo Penal);
Medida Provisória 954/2020;
“Compartilhamento de dados telefônicos com IBGE e medidas emergenciais estão na pauta desta quarta-feira (6)”. Disponível em: <a style="font-family: inherit; font-size: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442727&amp;ori=1">&lt;https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442727&amp;ori=1</a>&gt;. Acesso em 31 de março de 2021.
Notas:
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Lei 9296/96 (comunicações telefônicas), Lei 12965/14 (Marco Civil da Internet – comunicações eletrônicas), Lei 12.850/13 (organização criminosa), LC 105/2001 e Código de Processo Penal.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A Medida Provisória nº 954/2020 previa o compartilhamento de dados dos usuários de telecomunicações, sejam eles nomes, números de telefone e endereços dos consumidores, pessoas físicas ou jurídicas, com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a produção de estatística oficial durante a pandemia do novo coronavírus, fundamentada na impossibilidade do instituto realizar as visitas presenciais para a coleta das informações.

antitruste

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JOTA

Anteprojeto de lei regulamenta de forma satisfatória as questões axiológicas e de preservação de direitos?

LGPD no âmbito da persecução penal e segurança pública

Anteprojeto de lei regulamenta de forma satisfatória as questões axiológicas e de preservação de direitos?