Lucas Borges de Carvalho

A transparência das ações dos governos é um elemento central para o bom funcionamento de um regime democrático. Nas palavras de Norberto Bobbio, a democracia é o “regime do poder visível”, no qual o princípio da ampla publicidade se opõe ao segredo como prática administrativa, constituindo-se como um pressuposto essencial para o controle de autoridades pelos cidadãos e para evitar a ocorrência de desvios e abusos de poder.<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>
No Brasil, a Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011, LAI) estabeleceu princípios e regras fundamentais para a promoção da cultura da transparência. Entre esses, vale mencionar o incentivo à utilização de novas tecnologias e de procedimentos simplificados, a existência de obrigações de transparência ativa e a vedação de exigências burocráticas que, na prática, possam inviabilizar o acesso a informações públicas. Tudo isso permeado pela “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção” (art. 3º, I).
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Se a LAI enfatizou o desenvolvimento da cultura da transparência na administração pública, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018, LGPD), por sua vez, se propõe a fortalecer a privacidade, a autodeterminação informativa e os direitos dos titulares de dados pessoais.
Daí surge um aparente conflito normativo: de um lado, o princípio da publicidade da administração pública, imposto como regra pela LAI; e, de outro, a necessária proteção da privacidade e dos dados pessoais dos cidadãos, nos termos da LGPD, por meio de medidas de prevenção e de segurança, entre as quais se destaca a atribuição de sigilo a informações e documentos detidos por instituições públicas.
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Nesse contexto, a pergunta a ser feita é: o advento da LGPD implica um retrocesso quanto às normas de transparência no setor público? Ou, de forma mais específica, em cumprimento às disposições da LGPD, as instituições públicas devem rever práticas administrativas, de modo a ampliar as hipóteses de sigilo e de restrição de acesso a informações e documentos que contenham dados pessoais?
Como dito, em um plano mais abstrato, o conflito em questão é apenas aparente, pois, se bem compreendidas, a LGPD e a LAI expressam princípios, normas e propósitos similares, que se complementam e se reforçam mutuamente, seja no que concerne à promoção do princípio da transparência, seja quanto à proteção de informações pessoais.
Quanto ao primeiro aspecto, é importante considerar que a LGPD: (i) não efetuou qualquer alteração na LAI (a única lei alterada foi o Marco Civil da Internet); (ii) não instituiu novas hipóteses legais de sigilo; e (iii) não contém nenhum dispositivo que possa ser interpretado, ainda que indiretamente, como antinômico ao princípio de que, na administração pública, o sigilo constitui uma exceção.
Com efeito, ao dispor sobre o tratamento de dados pessoais pelo Poder Público (arts. 23 a 30), a LGPD não utiliza, em momento algum, as palavras “segredo” ou “sigilo”. Em sentido diverso, a lei expressamente reforça e amplia as obrigações de transparência de entidades e órgãos públicos, ao determinar, por exemplo, a publicação de informações relativas ao tratamento de dados pessoais em veículos de fácil acesso (art. 23, I). Na mesma linha, o art. 25 estabelece que “os dados deverão ser mantidos em formato interoperável e estruturado para o uso compartilhado, com vistas [...] à disseminação e ao acesso das informações pelo público em geral”, norma de teor semelhante ao art. 8º, § 3º, III, da LAI.
Por sua vez, a LAI confere especial proteção ao tratamento de informações pessoais no setor público, conceito este (art. 4º, IV) similar ao de dado pessoal na LGPD (art. 5º, I). Daí a restrição de seu acesso a agentes autorizados e a possibilidade de sua divulgação apenas nas hipóteses previstas em lei ou mediante consentimento do titular (art. 31, § 1º). Além disso, a LAI já previa a responsabilização de agentes públicos ou particulares pelo “uso indevido” de informações pessoais (art. 31, § 2º), norma que pode ser interpretada em consonância com o princípio da finalidade e seus desdobramentos, conforme estabelecidos pela LGPD.
Outro ponto digno de nota é a regulamentação das hipóteses em que entidades e órgãos públicos podem divulgar ou conferir o acesso de informações pessoais a terceiros, independentemente do consentimento do titular. É o caso, entre outros previstos no art. 31, §§ 3º e 4º, da LAI, da realização de pesquisas científicas, do cumprimento de ordem judicial, da defesa de direitos humanos, da proteção de interesse público geral e preponderante ou de ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância.
Esses critérios permanecem válidos, demonstrando a importância de precedentes judiciais e administrativos nos quais se delimitou a sua aplicação, como no caso de divulgação da remuneração de servidores públicos. Os parâmetros jurídicos em questão podem, inclusive, ganhar maior clareza e densidade com o auxílio de princípios estabelecidos na LGPD, tais como os da necessidade, adequação e finalidade, além das hipóteses legais de tratamento e compartilhamento de dados no âmbito do setor público.
Portanto, para além da lógica do conflito, LGPD e LAI devem ser vistas como normas que integram um ecossistema jurídico coerente, que assegura tanto a publicidade dos atos da administração pública quanto a proteção de dados pessoais.
<blockquote class="jota-article__eye">De forma geral, o ponto de equilíbrio entre a transparência como regra e o sigilo como exceção foi mantido e fortalecido pela LGPD. Isso não significa que nada deva mudar em razão das novas normas de proteção a dados pessoais.</blockquote>
Será necessário, por exemplo, reavaliar processos internos e contratos com entidades privadas, questionar a necessidade de coleta ou de publicação de determinados dados pessoais e adotar medidas adicionais de prevenção e segurança que minimizem os riscos de acidentes e acessos não autorizados.
Ademais, deve-se reconhecer a limitação da tradicional e rígida distinção entre dados públicos e sigilosos. Isso porque a LGPD demanda a adoção de medidas de proteção ao longo de todo o processo de tratamento, isto é, desde a coleta inicial até o término de sua utilização, independentemente do conteúdo ou do grau de publicidade conferido aos dados pessoais. Por conseguinte, mesmo dados pessoais a que se atribua publicidade são protegidos pela lei, devendo ser observados os direitos do titular, bem como a “finalidade, boa-fé e o interesse público que justificaram a sua disponibilização” (art. 7º, §§ 3º e 4º, LGPD).
Por isso, perdem relevância os conceitos estáticos de sigilo e publicidade e entram em cena análises contextuais, funcionais e dinâmicas, que levem em consideração os riscos e os danos vinculados a uma situação concreta e as medidas de prevenção e segurança mais apropriadas para mitigá-los. Entre estas, o sigilo deve ser visto como apenas um – e não, necessariamente, o mais adequado e eficaz – dos meios técnicos e administrativos disponíveis e que podem ser adotados com o mesmo objetivo.<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a>
Em última análise, o desafio posto às organizações públicas é o de integrar a cultura da proteção de dados à cultura da transparência sem que isso signifique retroceder ao modelo do sigilo como prática administrativa. Para tanto, criatividade, inovação e flexibilidade administrativas, além do aprendizado com precedentes nacionais e internacionais, serão elementos de acentuada relevância.
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O episódio 46 do podcast Sem Precedentes discute se o contrato de trabalho intermitente é ou não constitucional. Ouça:
https://youtu.be/o8E3sXtx7j0
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 108-115.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> Em voto proferido em junho de 2020, na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 695, na qual se discute a legalidade do compartilhamento de dados de brasileiros que possuem a Carteira Nacional de Habilitação entre o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, destacou a importância de uma abordagem abrangente da proteção de dados, que leve em conta a finalidade do uso e os riscos associados: “assim, no caso em tela, o que está em jogo não é apenas o nível de segurança da informação objeto do compartilhamento entre DENATRAN e ABIN, mas sim a existência de mecanismos adequados de controle das finalidades desse compartilhamento. Essa nova abordagem jurídica do direito fundamental à proteção de dados, nesse aspecto, engloba uma proteção abrangente, que desloca o eixo da proteção do conteúdo dos dados para as possibilidades e finalidades do seu processamento. [...] Essa abrangência da proteção atribuída ao direito de autodeterminação constitui importante chave interpretativa do âmbito de proteção do direito fundamental à proteção de dados pessoais, o qual não recai propriamente sobre a dimensão privada ou não do dado, mas sim sobre os riscos atribuídos ao seu processamento por terceiros.” Disponível em: <a href="http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343579920&amp;ext=.pdf">http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343579920&amp;ext=.pdf</a>. Acesso: 7 dez. 2020.

lgpd, dado pessoal

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JOTA

O advento da LGPD implica um retrocesso quanto às normas de transparência no setor público?

A LGPD e o acesso a informação pública: dado pessoal é dado sigiloso?

O advento da LGPD implica um retrocesso quanto às normas de transparência no setor público? Dado pessoal é dado sigiloso?