Nicolau Olivieri

A LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018 alterada pela Lei 18.853/2019) não foi feita para as relações de emprego. A LGPD não foi pensada para as peculiaridades do trâmite de informações entre patrão e empregado. A LGPD foi projetada para a vida virtual em geral, para o trânsito de informações dos cidadãos nas redes sociais, aplicativos, cadastros de clientes – e esse o espaço por excelência da LGPD, é aí que a LGPD atua para defender a privacidade, a autodeterminação informativa, a liberdade de expressão, de informação, de opinião – como expresso logo no seu art 2º.
Daí porque o Regulamento Europeu de Proteção de Dados (Regulamento 2016/679), reconhecendo esse caráter específico do trâmite de dados nas relações de emprego, prevê, no seu art 88:
Art 88 - 1. Os Estados-Membros podem estabelecer, no seu ordenamento jurídico ou em convenções coletivas, normas mais específicas para garantir a defesa dos direitos e liberdades no que respeita ao tratamento de dados pessoais dos trabalhadores no contexto laboral, nomeadamente para efeitos de recrutamento, execução do contrato de trabalho, incluindo o cumprimento das obrigações previstas no ordenamento jurídico ou em convenções coletivas, de gestão, planeamento e organização do trabalho, de igualdade e diversidade no local de trabalho, de saúde e segurança no trabalho, de proteção dos bens do empregador ou do cliente e para efeitos do exercício e gozo, individual ou coletivo, dos direitos e benefícios relacionados com o emprego, bem como para efeitos de cessação da relação de trabalho.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>
Não há ressalva similar na LGPD brasileira. Ademais, o art 3º da LGPD, no Brasil, clama pela sua aplicação a “qualquer operação de tratamento” sem ressalva ao contrato de trabalho, sendo certo que o art 4º, ao tratar das hipóteses em que ela própria não se aplica, não faz menção às relações de trabalho como uma excludente.
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Assim, a melhor conclusão seria a de que a nova legislação de proteção de dados deve, sim e positivamente, ser aplicada no âmbito do contrato de trabalho, mas não sem uma boa dose de ponderações e ajustes, inclusive para preservar o objetivo da Lei. 
<blockquote class="western jota-article__eye">O Direito do Trabalho não deve refutar a LGPD. Mas a LGPD deve ser amaciada para que seja possível chegar aonde ela deseja e se tornar aplicável na realidade do contrato de trabalho.</blockquote>
Nesse sentido, a nosso ver, é fundamental considerar como premissa básica que o tratamento de dados no âmbito do contrato de trabalho é, na grande maioria das vezes, a expressão de um direito do empregado e portanto o tratamento de dados no contexto laboral é, via de regra feito, em favor do empregado, e na defesa dos seus interesses.
Dessa realidade decorre, em contrapartida, que o empregador, enquanto Controlador de dados, efetua o tratamento dos dados do empregado por obrigação, e não por interesse econômico direto seu. Ao contrário das empresas que têm no tratamento de dados o seu objetivo econômico, ou que se valem do tratamento de dados para alcançar o seu objetivo econômico, o empregador enquanto controlador efetua o tratamento dos dados dos empregados quase que exclusivamente em razão de obrigações a ele impostas pela lei, pelos regulamentos, ou pelas normas coletivas <a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>. 
Assim, partindo dessa constatação, sugerimos de início as seguintes possibilidades de adequação da LGPD ao contexto específico das relações de trabalho:
<h3 class="western" align="justify">Regulamentação do tratamento de dados por meio de normas coletivas<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a></h3>
Nada obstante a ausência de disposição específica na própria LGPD a respeito da possibilidade de regulamentação por meio de normas coletivas, a nosso ver tanto o art 611 A da CLT quanto o art 7º XXVI da Constituição autorizam concluir ser absolutamente possível – quando não recomendável – que sindicatos e empresas ajustes questões específicas sobre o tratamento de dados em acordos ou convenções coletivas.
Se a LGPD é uma norma de caráter genérico e amplo, não direcionada às relações de emprego, e se o art 611 A da CLT prevê a possibilidade de as normas coletivas prevalecerem sobre a lei naquelas hipóteses indicadas no referido diploma “entre outros” (portanto um rol exemplificativo), seria razoável que os instrumentos normativos tivessem autoridade também para tratar do tema, observados e garantidos os princípios garantidos pela própria LGPD (art 2º).
Essa regulamentação seria ainda mais legítima e necessária em relação aos tratamentos de dados que porventura decorrem das próprias normas coletivas.
<h3 class="western" align="justify">Presunção de legitimidade do consentimento do empregado</h3>
O consentimento para o tratamento de dados é conceituado no art 5º, XII, da LGPD como a “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada”.
O art 8º §2º da LGPD, por sua vez, estipula que:
“§ 2º Cabe ao controlador o ônus da prova de que o consentimento foi obtido em conformidade com o disposto nesta Lei.”
Os arts 8º §1º e 19 §3º da LGPD autorizam que o consentimento seja uma cláusula do contrato – e não necessariamente um instrumento contratual autônomo, ao menos para o caso do consentimento para o tratamento de dados pessoais não-sensíveis <a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>. 
Portanto, a rigor, o consentimento pode ser uma cláusula do contrato de trabalho, ou de um termo aditivo ao contrato de trabalho.
Ocorre que, em regra, as cláusulas do contrato de trabalho presumem-se válidas, cabendo, via de regra ao empregado provar sua invalidade ou nulidade dentro da regra do art 818 da CLT. 
Assim, não faz sentido que o contrato de trabalho seja, no seu conjunto, presumivelmente válido, à exceção da eventual cláusula de consentimento, cuja validade, então, e pela aplicação do art 8º §2º da LGPD, dependeria de prova a ser feita pelo empregador-controlador.
<a name="_GoBack"></a> A presunção de validade do consentimento se impõe ainda mais no caso dos empegados enquadrados na hipótese do art 444 parágrafo único da CLT. Com efeito, em relação a estes especificamente, ou seja os empregados portadores de diploma de nível superior e que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o teto do INSS, o ordenamento jurídico garantiu uma legitimidade ainda maior das manifestações de vontade, autorizando ajustes específicos que sobreponham à lei.
<h3 class="western" align="justify">A ausência de responsabilidade do operador, quando este for empregado do controlador</h3>
Ao definir os papéis dos agentes de tratamento, ou seja o controlador e o operador, a LGPD assim o faz, no art 5º, VI e VII, conceituando o primeiro como a pessoa a quem “competem as decisões referentes ao tratamento de dados”, e o segundo como a pessoa natural ou jurídica que “realiza o tratamento de dados pessoais”.
O art 39 da LGPD determina ainda que o operador “deverá realizar o tratamento segundo as instruções fornecidas pelo controlador, que verificará a observância das próprias instruções e das normas sobre a matéria”. As responsabilidades de cada um estão indicadas nos arts 42 e 44 da LGPD.
No cenário do tratamento de dados na relação de emprego, em tese o operador poderá ser um setor do empregador, um setor, departamento, área responsável por processar o tratamento, ou até mesmo a pessoa específica que realiza esse tratamento sob o comando do controlador. 
Ocorre que se esse setor, ou esse empregado, na condição de operador, realizar o tratamento de dados em razão da subordinação decorrente do contrato de trabalho, não será aplicável – a nosso sentir – qualquer responsabilização pessoal, tal como determinado na LGPD. De fato, a realização de um tratamento pelo operador como consequência do poder de comando do contrato de trabalho retira do empregado qualquer responsabilização pessoal, no caso de ocorrência de dano a terceiros, ou qualquer desconformidade com a lei, sendo do empregador os riscos da atividade econômica.
<h3 class="western" align="justify">Descabimento da indicação de encarregado</h3>
Ainda explorando as arestas que a LGPD deve aparar para encaixar na relação de emprego, parece-nos duvidosa a obrigação, no âmbito do contrato de trabalho, de indicação de encarregado nos termos do art 41 da LGPD quando a rotina do tratamento de dados envolver empregados. Reitere-se: o empregador, enquanto operador, não tem interesse econômico nos tratamentos e não parece fazer sentido que seja indispensável a existência de um encarregado com uma função de intermediação que institucionalmente pode ser feita pelo próprio sindicato (art 8º III da Constituição e art 513 “a” da CLT), ou pela comissão prevista no art 510 A da CLT.
A propósito, o acordo ou convenção coletivas poderiam indicar o próprio sindicato como esse encarregado.
<h3 class="western" align="justify">Obrigações de prestar informações e multas</h3>
Sem prejuízo de várias outras questões ainda em aberto envolvendo a aplicação da LGPD no contrato de trabalho, convém também atenuar as obrigações de registro de tratamento e especialmente em relação à imediatidade da obrigação de prestar as informações solicitadas (art 18 §§3º e 4º da LGPD). São obrigações relevantes no contexto de proteção da LGPD, mas que devem ser aplicadas com a ponderação necessária ao contrato de trabalho de modo que, sem perder de vista a proteção dos dados dos empregados, os empregadores não sejam excessivamente onerados.
Por fim, espera-se que quando a Autoridade Nacional de Proteção de Dados vir a estipular a metodologia para orientar o cálculo do valor-base das multas, na forma do art 53 da LGPD, ela considere a especificidade da relação jurídica de trabalho, evitando que se imponha ao controlador-empregador sanções com mesmo peso e critérios que serão impostas aos controladores que o são por força do oferecimento de produto ou serviços, ou que tem, no tratamento de dados, seu objetivo econômico principal.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Redação extraída da versão em português: <a href="https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32016R0679&amp;from=FR">https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32016R0679&amp;from=FR</a>
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Ressalvam-se hipóteses, ainda pouco comuns, em que os dados dos empregados podem ser usados em análises de resultado que impliquem, de alguma forma, o alcance do resultado da empresa.
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> A LGPD sequer menciona os acordos e convenções coletivas como hipótese para o tratamento de dados não sensíveis sem consentimento. Porém, parece razoável, para autorizar esse tratamento, uma aplicação analógica do art 7º, V, da LGPD que autoriza o tratamento de dados não sensíveis sem consentimento “quando necessário para a execução de contrato”
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<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> Ao mencionar o tratamento de dados pessoais sensíveis (arts 11, 12 e 13) não há referência expressa a conceder o consentimento como cláusula de um contrato, o que na verdade parece mais uma má formatação geográfica do art 8º da LGPD do que propriamente uma vedação a essa possibilidade.
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JOTA

Lei de dados não foi pensada para as peculiaridades do trâmite de informações entre patrão e empregado

LGPD e sua necessária adequação às relações de trabalho

Lei de dados não foi pensada para as peculiaridades do trâmite de informações entre patrão e empregado