Luiz Fernando Picorelli

Com a Lei Geral de Proteção de Dados (<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lgpd-e-anpd-saiba-o-que-sao-e-entenda-as-diferencas-entre-a-lei-e-o-orgao-13042022">LGPD</a>), diversos estabelecimentos passaram a exigir dos pais ou responsáveis o consentimento para uma série de dados que eram tratados obrigatoriamente. Mas é realmente necessário o consentimento sempre que estivermos tratando dados pessoais de menores?
O §1º do art. 14 da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lgpd">LGPD</a> diz que o tratamento de dados pessoais de crianças deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal. Já o §3º afirma que o consentimento poderá ser dispensado “[…] quando a coleta for necessária para contatar os pais ou o responsável legal, utilizados uma única vez e sem armazenamento, ou para sua proteção, e em nenhum caso poderão ser repassados a terceiro […]”.
A primeira dúvida que tem surgido é se o dispositivo se aplicaria apenas à criança ou se também ao adolescente. Estamos alinhados com a posição no sentido de que as regras só valeriam até a adolescência. Esse entendimento, aliás, é baseado no parecer da Comissão Especial do <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/548066">PL 4060/2012</a> da Câmara dos Deputados, que deu origem à LGPD.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> O referido parecer deixa claro, inclusive, que a inspiração dos parágrafos do art. 14 foi o Children's Privacy Oline Act (COPPA) dos EUA<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Mas mesmo se tratarmos apenas de crianças, será necessária a exigência de consentimento?
O COPPA é uma norma dos EUA que estabelece que um website deve obter consentimento dos pais antes de coletar, usar ou revelar informações de crianças até os 12 anos de idade. Assim, os sites devem tentar ter contato direto com os pais ou responsáveis para que eles possam, se for o caso, desfazer a adesão dos seus filhos na coleta de dados.
A norma então é destinada a serviços online e não a todo e qualquer tipo de serviço ou tratamento.
É possível verificar ainda que o art. 14 da LGPD possui clara inspiração também no art. 8º do GDPR, que prevê a exigência de consentimento por pais ou responsáveis para menores de 16 anos no caso de serviços da sociedade da informação<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Os serviços da sociedade da informação são serviços de atividades econômicas realizados de forma online, isto é, mediante uma remuneração a distância a pedido do solicitante<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Esses dois elementos, somados ao fato de que o parágrafo 4º e 5º do art. 14 tratam sobre o fornecimento de informações em aplicações de jogos e internet e sobre a utilização de tecnologias disponíveis levam a clara conclusão de que o consentimento previsto no parágrafo 1º a 3º se limita, na verdade, apenas a situações em que as crianças estiverem utilizando de serviços online.
Reforça essa conclusão a completa incompatibilidade do consentimento previsto no art. 7º e 11 da LGPD com situações cotidianas envolvendo crianças. Um exemplo é o tratamento de dados de saúde envolvendo crianças quando os pais, ao chegarem em um hospital, têm sido obrigados a fornecer o consentimento para que os seus filhos sejam tratados.
Mas se o tratamento de saúde não for feito sem o consentimento solicitado, qual a efetiva escolha do titular (ou do seu representante) nesse caso? O consentimento é uma base legal que fundamenta o tratamento dos dados, utilizada em um contexto específico, e que exige necessariamente uma liberdade de escolha (art. 8, § 3º e 4º da LGPD). Em outras palavras, se não há escolha, não há consentimento.
Daí a dificuldade prática em conciliar uma interpretação ampliativa do art. 14 da LGPD com os demais dispositivos desta norma. Exigir uma liberdade de escolha em toda e qualquer situação criará problemas práticos em situações cruciais como, por exemplo, na área da saúde.
Aliás, se o consentimento permite a sua revogação (art. 8º, § 5º), como esse direito poderia ser exercido diante da obrigatoriedade de anotação dos registros médicos — inclusive de menores — no prontuário? Como ficaria a situação de dados de crianças enviados em uma declaração de <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/irpf">IRPF</a> na qualidade de dependentes? Estas informações poderiam ser revogadas futuramente? Evidente que não.
Atualmente tramita perante a Câmara dos Deputados o <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2317281">PL 454/2022</a> que altera a LGPD e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para autorizar o compartilhamento público de dados e microdados coletados por meio do Censo Escolar e do Enem. O motivo do projeto teria sido o de que com a LGPD o Inep,<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> responsável pela coordenação do Censo e do Enem, teria passado a divulgar dados de forma reduzida e deixado de oferecer as séries históricas<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Está mais do que claro que uma interpretação ampla dos parágrafos do art. 14 não se coaduna com a LGPD e nem mesmo com o ordenamento jurídico, criando uma série de problemas práticos e prejuízos.
No caso de crianças, o consentimento não pode ser confundido com o instituto da representação (arts. 105, 1.630 e 1.631 do CC), isto é, a necessidade de presença dos pais ou responsáveis como representantes dos menores para o exercício dos atos da vida civil. Situações envolvendo crianças fora dos serviços da sociedade da informação devem observar as bases legais dos arts. 7º e 11 da LGPD, a devida representação e, é claro, os princípios do art. 6º, inclusive a transparência. Transparência, sim, consentimento em todos os casos, não.
Limitada a aplicação dos parágrafos 1º a 3º do art. 14 da LGPD a serviços da sociedade da informação, os demais dispositivos se encaixarão perfeitamente. As exceções do §3º, que possibilitam a coleta para contato com os pais ou para a sua proteção poderão ser aplicadas, por exemplo, quando a criança estiver acessando conteúdo impróprio online.
Desta feita, é urgente que a doutrina, os tribunais e/ou o Poder Legislativo limitem a aplicação dos parágrafos do art. 14 da LGPD aos serviços da sociedade da informação, harmonizando tal dispositivo aos demais artigos da LGPD e ao ordenamento jurídico brasileiro, evitando-se um risco de maior imbróglio e confusão quanto a este assunto.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> VAINZOF, Rony. Disposições preliminares. In: MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM, Renato Ópice (Coord). LGPD: Lei Geral de Proteção de Dados Comentada. 2. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. Ebook não paginado.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Parecer ao Projeto de Lei n. 4.060/2012. Disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1663305&amp;filename=Tramitacao-PL+4060/2012">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1663305&amp;filename=Tramitacao-PL+4060/2012</a>. Acesso em 18 ago. 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> DONELLY, Mary; MCDONADH, Maeve. Health Research, Consent and the GDPR Exemption. European Journal of Health. Leiden, Países Baixos, n. 26, 2 abr. 2019.  Disponível em: <a href="https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3381524">https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3381524</a>. Acesso em 26 set. 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> MACMAHON, Paul. Information Society Services. Disponível em: <a href="http://mcmahonsolicitors.ie/information-society-services/">http://mcmahonsolicitors.ie/information-society-services/</a>. Acesso em: 26 set. 2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BERNARDO JR., Lúcio. Projeto altera lei de dados pessoais para permitir compartilhamento de informações do Censo Escolar e do Enem. Brasília, Agência Brasília, 31 mar. 2022. Disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/noticias/863023-projeto-altera-lei-de-dados-pessoais-para-permitir-compartilhamento-de-informacoes-do-censo-escolar-e-do-enem/">https://www.camara.leg.br/noticias/863023-projeto-altera-lei-de-dados-pessoais-para-permitir-compartilhamento-de-informacoes-do-censo-escolar-e-do-enem/</a>. Acesso em 10 abr. 2022.

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JOTA

Exigir liberdade de escolha em toda e qualquer situação criará problemas práticos em situações como na saúde

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LGPD: Exigir liberdade de escolha em toda e qualquer situação criará problemas práticos em situações como na saúde