José Augusto Fontoura Costa

Ao falar dos direitos primitivos, Henry S. Maine faz a seguinte afirmação: "A única manifestação de autoridade sobre o certo e o errado é uma sentença que segue os fatos, não uma que pressuponha uma lei que foi violada, mas a que foi soprada pela primeira vez e por um poder superior na mente do juiz, no momento da decisão".<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> A ideia é que, antes da consolidação de regularidades na forma de costumes e de códigos, a decisão tendia a ser orientada por uma percepção imediata de justiça, uma reação tão clara e direta que apenas poderia ser uma manifestação do sobrenatural.
Em outros termos, antes de o fazer jurídico ser cercado e conduzido por conjuntos normativos estruturados, o ato de decidir parece estar pautado pela situação de fato, da qual surge a controvérsia, e a abertura do adjudicador a esses sussurros transcendentais voltados a expressar a justiça. A hipótese central deste artigo é a da importância de abordar os casos internacionais complexos de maneiras similares à de sistemas jurídicos menos estruturados, concentrando os esforços em uma compreensão integral do caso e admitindo a necessidade de ouvir o murmúrio de outras fontes. Isso depende, em alguma medida, do afastamento da concepção dominante de Direito.
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O atual mainstream teórico jurídico foi historicamente construído em torno da noção de um ordenamento correspondente à organização do poder estatal e serve perfeitamente bem para explicar o modo de decidir de juízes e tribunais estatais. Como se verá, porém, ele não é suficiente para explicar e orientar as estratégias de estruturação de relações contratuais e de solução de controvérsias no campo das operações econômicas internacionais. Disso surge uma hipótese subsidiária: a de que tal circunstância põe em xeque a compreensão teórica dominante do Direito, insuficiente para explicar o funcionamento de processos decisórios importantes, ainda que os abrigue sob o manto da completude formal do ordenamento estatal. Uma terceira hipótese: a teoria da nova lex mercatoria pode ter nascido anacrônica, pois busca se legitimar mediante sua caracterização como um ordenamento jurídico e, assim, conduz a discussão a temas de pouco sentido prático (como se há ou não unidade, autonomia, coerência, completude e estrutura escalonada no direito internacional dos comerciantes).
A concepção dominante é útil e adequada para as formas mais tradicionais de efetivação do Direito, sobretudo a aplicação por tribunais estatais de leis postas pelo Estado. A própria concepção moderna do Direito Internacional Privado, pautada pela eventual autorização de aplicação de Direito estrangeiro por determinação de normas do foro, funciona bem nos limites dessa técnica. Em outras palavras, quando o juiz aplica norma estrangeira, apenas o faz por determinação e nos limites da determinação da lex fori e, portanto, desde a perspectiva da integral absorção da controvérsia pelo Direito forâneo.
Por partes. Em 1648, a Paz de Vestfália consagrou a predominância da soberania estatal sobre a formação e aplicação do Direito. Nesse mesmo período, juristas da recém-fundada República dos Países Baixos, com destaque para Ulrich Huber, afirmavam a noção de territorialidade estrita e a noção de aplicação do Direito estrangeiro como dependente da comitas gentium.
Em outro período de intensas transformações, o final do século XVIII e o princípio do XIX, teve início não só uma onda de adoção de instrumentos escritos como constituições, como, de modo igualmente revolucionário, passaram a sistematizar as normas privadas na forma de códigos. Do ponto de vista teórico, a constitucionalização e codificação do Direito tornaram tecnicamente dispensável o apelo à doutrina pautada pelo jus commune como instrumento de atribuição de sentido e sistematicidade ao Direito, inclusive na forma de coerência e completude do ordenamento estatal.
Essa concepção de sistema jurídico é fundamental na orientação da tarefa de aplicação do Direito pelos Judiciários estatais, os quais figuram como Poderes e não meros intérpretes. Não se dedicam meramente a dirimir controvérsias, mas a fazer valer a vontade do Estado.
Daí a dificuldade de lidar com as operações econômicas internacionais. A existência de fatos e atos relevantes em mais de um território e regidos por mais de um ordenamento jurídico desafiam as qualidades práticas da reunião de todo o Direito sob uma única autoridade. Na verdade, operações internacionais nas quais ocorre circulação de mercadorias e fatores produtivos não se adaptam bem à regulação por um único Estado. A tendência é que as normas dos vários países envolvidos venham a ter impacto sobre a operação e, por isso, a análise a partir de um único sistema estatal é perigosa e pode, até mesmo, levar a equívocos que prejudiquem a plena consecução do que foi concertado. Recorde-se, aliás, que a própria delimitação da autonomia privada não é idêntica em cada ordem nacional, ou seja, algo facultado e autorizado às partes em um Direito pode não o ser em outro.
Mas quando o caso chega ao árbitro internacional a visão das questões será diferente. É verdade que leis nacionais de arbitragem insistem na aproximação funcional do árbitro aos juízes estatais, particularmente por meio da atribuição de deveres e responsabilidades equivalentes à dos juízes estatais e da atribuição do caráter de título executivo judicial às sentenças arbitrais. Na prática, porém, o árbitro internacional observa a relação a partir das óticas da vontade das partes e, principalmente, da coerência econômica da operação em relação aos instrumentos descritivos dos deveres e obrigações. Isso é bem diferente de exercer um poder.
Um ponto central dessa discussão é compreender a desvinculação do árbitro da função de promover a aplicação da lex fori como atividade preponderante. O que se espera é a efetiva atenção aos meandros econômicos e técnicos da operação efetiva como determinantes da identificação das soluções mais adequadas.
É aí que as presunções de coerência e completude do sistema normativo aplicado cede passo à verificação da adequação das soluções normativas aos sentidos práticos – técnicos e econômicos – da operação analisada. A perspectiva de construção dos sentidos deixa de ser a da lei e passa a ser a do caso. A mais simples das estruturações discursivas de sentido – a dos chamados direitos subjetivos – já havia sido superada pela lógica dos ordenamentos, pelo menos nos juízos estatais; na arbitragem internacional, por seu turno, ocorre uma nova revolução: a consistência se muda do antigo abrigo do sistema normativo estatal para a construção orientada pelo caso concretamente considerado.
Isso decorre de três fatores: (1) a concorrência e sobreposição de jurisdições e leis aplicáveis potencialmente relacionadas à operação, (2) a busca de estruturação por meio de instrumentos contratuais tendentes a constituir regimes próprios e (3) a complexidade das operações e dos casos delas derivados, nos quais raramente, se é que em algum momento, é abordada uma única questão controversa.
Há, aí, um giro radical. Verdadeira revolução. As decisões e suas justificativas tenderão a se concentrar na tensão entre o instrumento contratual e a prática efetiva da operação. Sempre que possível, essa tensão se projeta sobre o pano de fundo estendido pelos usos e práticas do setor onde se incrusta a operação e cuja normalidade servirá para esclarecer sentidos e orientar as decisões naqueles aspectos em que o instrumento se mostrar impreciso, lacunoso ou incompleto. Nesse ambiente, a atenção à lógica dos ordenamentos passa a ser suplementar, meramente acessória; útil apenas para justificar uma que outra decisão informada pela praxis e como cautela necessária para se esquivar de ameaças ao reconhecimento e efetivação judicial das sentenças.
Por outro lado, ocorrem inúmeras operações que carecem de tal pano de fundo: joint ventures para o desenvolvimento de vacinas, por exemplo, tendem a ser menos repetitivas do que contratos de compra e venda e café in natura... Onde inexistem operações reiteradas, contratos-formulário, associações de comerciantes ou vários outros instrumentos de consolidação de um ethos setorial robusto, a formulação argumentativa das justificações tenderá a buscar outros elementos, com ênfase no próprio texto do contrato e, sempre que preciso, em normas externas mais genéricas e abstratas, como princípios gerais do Direito ou elementos pragmáticos tomados por empréstimo a outros setores. A função dos ordenamentos será, aqui também, periférica e relacionada à função de evitar eventuais dissabores quando for preciso buscar a força estatal.
Retome-se a questão do título do artigo: de onde vem a organização que estrutura o Direito? Ela reside, em sua forma pressuposta, no ordenamento estatal? Ela resulta da articulação intelectual e acadêmica das coerências de sentido? Ela se constitui, em cada caso concreto, no momento da construção da argumentação decisória?
Uma possível solução prática: considerando a abordagem pragmática dos árbitros internacionais na busca de soluções adequadas para as relações que extrapolam o âmbito de vigor de um único ordenamento jurídico, colocando-se em campos onde várias ordens se intersectam, a lógica que orienta a decisão se desloca para a consideração de aspectos técnicos e econômicos, com maior ênfase na centralidade dos instrumentos contratuais empregados.
Nesse sentido, se colocam em xeque as vantagens de se pensar, kelsenianamente, na sentença arbitral como um conjunto normativo derivado de um complexo de normas superiores limitadas, formal e materialmente, pelo ordenamento. Aqui, por hipótese, a lex mercatoria serve como base teórica de articulação do sentido, efetivada por meio de um discurso decisório construído no campo prático das balizas dadas pelo instrumento contratual, a praxis setorial e as condições fáticas da operação econômica concreta.
Essas circunstâncias redefinem as próprias funções do contrato, sobretudo em suas manifestações complexas, relacionais e de duração. Mais do que fonte de obrigações ou promessa juridicamente exigível, para usar uma definição corrente na tradição anglo-americana, o contrato aparece como um instrumento de organização da realização de objetivos para os quais concorrem atividades e coisas. É, ao mesmo tempo, memória da distribuição de custos e riscos e descrição dos deveres de cada parte para sua realização. Isso pode estar no instrumento contratual e, daí, aliás, a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-nova-lex-mercatoria-e-a-vontade-31082021">importância de um considerável grau de formalismo</a> para a delimitação temporal e material da operação instituída pelo contrato<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Não se pode descurar, porém, da correta aplicação do Direito, sobretudo em respeito da escolha expressa pelas partes no contrato e na arbitragem. Essa atenção, porém, mais do que direcionadora da ratio decidendi, é empregada, depois de construído e discutido o caso e suas consequências para a lógica do negócio, para testar se soluções pontuais estão em harmonia com a lei aplicável e, sobretudo, adequadas a qualquer teste de correção. Como em operações econômicas complexas o aparecimento do litígio dificilmente se explica por um único ponto fático ou jurídico, a construção geral do caso aparece como exercício central. A aplicação da lei se manifesta pontualmente, mas o raciocínio definitivo é mais atento à dialética entre o instrumento contratual e a realidade da operação.
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De qualquer modo, dado haver considerável extensão da autonomia privada em matéria comercial em muitos dos Direitos estatais, é relativamente difícil romper as barreiras do materialmente aceitável. Não é impossível, mas bem difícil. Esse enquadramento, muitas vezes post hoc, não afasta a preponderância de uma análise centrada nos (1) instrumentos contratuais, (2) estrutura econômica da operação e (3) praxis setorial como forma de selecionar as melhores soluções, melhores no sentido de adequação jurídica e econômica.
É certo que tal forma de decidir faz particular sentido no campo dos litígios transnacionais, nos quais o concurso de mais de um ordenamento jurídico enfraquece a própria ideia de solução do caso como sinônimo de aplicação do Direito objetivo. Não obstante, o mesmo modelo de compreensão e estruturação das respostas se repete em casos exclusivamente internos. Talvez simplesmente seja um modo preferencial de resolver casos complexos, para os quais a presença do Ordenamento jurídico seja mais um elemento a ser levado em conta, por mais importante que seja.
Daí a importância da terceira provocação: a insistência em uma teoria da nova lex mercatoria que a propõe como uma entidade mimética em relação às ordens jurídicas estatais dificilmente faz sentido. A importância de seu reconhecimento reside na necessidade de abordagens capazes de colocar a estrutura das operações econômicas, os instrumentos contratuais e as práticas setoriais no centro das discussões e dos processos de tomada de decisão. Mais ousada, porém igualmente importante, é a noção de que, no comércio internacional, o campo de atuação das partes é quase ilimitado, até porque aí seria inadequada a noção de autonomia privada, pois esta, compreendida como atribuição de faculdades de agir e se obrigar por uma ordem jurídica estatal aos particulares, não faria sentido em um âmbito transnacional que se diferenciaria do das operações estritamente internas.
Em outras palavras, se a liberdade para contratar é resultante de autorização dada por um ordenamento jurídico para que sujeitos privados o façam, nas operações transnacionais pode-se, ou mesmo deve-se, buscar fundamento diverso. A alternativa de criar, para um mesmo instrumento regendo uma mesma operação comercial, um espelho obrigacional em cada um dos ordenamentos jurídicos relevantes pode ser teoricamente consistente com a identidade direito/ordenamento, mas tem duvidoso poder explicativo e carece de qualquer espírito prático.
Por fim, retomando a questão da organização que estrutura o Direito: ao que tudo indica, mesmo na prática de tribunais estatais em casos simples, a manutenção da coerência e completude do Direito é uma tarefa a cargo dos intérpretes e aplicadores; certamente não é algo logicamente dedutível dos conjuntos de fontes normativas abarcados por um ordenamento positivo. Nos litígios arbitrais internacionais complexos, a necessidade de construção dos sentidos para a articulação discursiva do caso oblitera o esforço de cuidar dos atributos lógicos do ordenamento, sem prejuízo da imensa importância de verificar a correção da aplicação da lei. Em ambas as situações, ao que parece, a organização do Direito é resultado da tarefa do aplicador, apoiado em uma teoria da lex mercatoria capaz de reposicionar a noção de ordenamento jurídico.
<hr />
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Henry Sumner Maine. "Ancient law: its connection with the early history of society, and its relation to modern ideas". Londres: John Murray, 1861. P. 8. In verbis: "The only authoritative statement of right and wrong is a judicial sentence after the facts, not one presupposing a law which has been violated, but one  which is breathed for the first time by a higher power into the judge’s mind at the moment of adjudication".
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Em artigo anterior, nesta mesma série, discuti as vantagens da forma sobre uma pressuposta vontade: <a href="about:blank">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-nova-lex-mercatoria-e-a-vontade-31082021</a> Dada a centralidade do assunto será interessante voltar ao assunto em outras ocasiões.

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JOTA

Teoria da nova lex mercatoria pode ter nascido anacrônica, pois busca se legitimar mediante caracterização como ordenamento jurídico

Desafios conceituais da lex mercatoria

Teoria da nova lex mercatoria pode ter nascido anacrônica, pois busca se legitimar mediante caracterização como ordenamento jurídico