Marcos Afonso Johner

Entrou em vigor a Lei 14.321, de 31 de março de 2022, que acrescentou o crime de “violência institucional” (art. 15-A) à <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm">Lei 13.869/2019</a> (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-abuso-de-autoridade">Lei de Abuso de Autoridade</a>). Pretendo aqui fazer uma análise da racionalidade legislativa da elaboração do novo tipo penal.
A medida foi tomada a partir da repercussão gerada pelo tratamento dispensado a Mariana Ferrer em audiência de instrução e julgamento em Santa Catarina, ocasião em que foi submetida a diversos constrangimentos. O projeto de lei (<a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-5091-2020">PL 5091/2020</a>) foi apresentado na mesma semana em que o caso ganhou notoriedade e seus autores enfatizaram ser “importante que este Parlamento dê uma resposta que ajude a coibir a prática da violência institucional”.
A relatora do projeto na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), deputada Dorinha Seabra Rezende (União Brasil-TO), destacou que “a gravidade e a invisibilidade da violência institucional requerem urgência na tomada de providências pelo Poder Legislativo a fim de um melhor reconhecimento e enfrentamento desse problema”. Daí ter concluído que, “por esse motivo, insta utilizar a instância penal, como ultima ratio, para conter essas condutas com alto poder de lesividade, revelando-se o projeto ora examinado extremamente meritório e oportuno”.
Após tramitar por 36 dias, o projeto foi aprovado com a seguinte redação:
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">Art. 15-A. Praticar o agente público violência institucional, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à vítima ou à testemunha de violência ou que causem a sua revitimização.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">§ 1º Para fins do disposto neste artigo, considera-se revitimização o discurso ou a prática institucional que submeta a vítima ou a testemunha a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a levem a reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">§ 2º É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">§ 3º A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado.</blockquote>
Na Casa Revisora, notou-se a impertinência dos §§ 2º e 3º, que repetiam dispositivos da parte geral do CP. A senadora Rose de Freitas (MDB-ES), relatora no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/senado">Senado</a>, bem notou as falhas do tipo penal, criticando o emprego do termo “violência institucional”, sem defini-lo na lei, além de recorrer ao princípio da taxatividade, que não autorizaria “tamanha elasticidade na aplicação da lei penal”. Foram propostas modificações no tipo, com o que a relatora acreditou “respeitar princípios comezinhos do direito penal e ao mesmo tempo repreender e prevenir condutas como a que lamentavelmente ocorreu em Santa Catarina”. Eis a emenda:
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">Art. 15-A Submeter qualquer vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que as levem a reviver, sem estrita necessidade:</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">I – a situação de violência; ou</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento e/ou estigmatização.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada em dois terços.</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation" style="padding-left: 50px;">2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.</blockquote>
O projeto retornou à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/camara-dos-deputados">Câmara dos Deputados</a>. A deputada Dorinha inicialmente apresentou parecer que rejeitava a emenda proposta no Senado; no entanto, durante as deliberações em plenário, houve consenso parlamentar para aceitar as modificações da Casa Revisora, sendo o projeto aprovado e encaminhado à sanção da Presidência da República.
Pode-se situar essa lei no plano das chamadas legislações penais simbólicas, editadas com a finalidade de acalmar um clamor popular e passar a sensação de que algo foi feito. Ela contém vícios já em sua base, porque, de um caso particular, supôs-se que a totalidade dos demais casos semelhantes ocorreriam nas mesmas condições. Para tanto, propôs como solução uma medida de caráter penal, sem, no entanto, explicar como ela seria necessária e adequada para evitar que agentes públicos praticassem as condutas típicas.
O legislador deveria ter explicado por que respostas não penais se revelaram insuficientes nesse caso. Houve manifestação em plenário do deputado Kim Kataguiri (União Brasil-SP), pontuando que sanções administrativas poderiam apresentar melhores resultados, sugestão que parece ter sido ignorada. Além disso, não foi debatida a necessidade de mudanças institucionais e a exigência de capacitações técnicas dos atores do sistema de justiça criminal, para conduzir corretamente as suas atividades. É ingenuidade, muitas vezes transvestida em malícia, pensar que as leis penais resolverão os problemas da sociedade; é preciso uma mudança de cultura.
Do mesmo modo, o legislador deveria ter esclarecido por que o meio escolhido é adequado para alcançar o fim proposto. A análise da adequação envolve questões de clareza e de precisão do tipo penal para produzir o efeito dissuasório (uma mescla entre o que Díez Ripollés e Atienza chamam de racionalidade pragmática e racionalidade linguística).
O deputado Kim Kataguiri também destacou a imprecisão dos termos “desnecessários” e “potencialmente”, contidos na lei. Nunca pensei que fosse dizê-lo, mas o deputado teve razão. Vejamos alguns problemas do tipo:
<ul>
<li>Não especifica o que são “procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos”, nem o que se entende por “estrita necessidade”. Para saber o que é desnecessário, tem-se que saber o que é necessário; e por estrita necessidade, o que se entende por desnecessidade. A redação é redundante e dificulta divisar com clareza as fronteiras do lícito e do ilícito.</li>
<li>Refere-se às “situações de violência” e a elas equipara “outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização”. O termo “potencialmente” é graduável e, portanto, não é fixo, deixando margens de liberdade muito grandes ao intérprete.</li>
<li>Refere-se a “indevida revitimização”, sem esclarecer o que se entende por indevida e, também, por revitimização. Pense-se em acidente de trânsito no qual não é provada a culpa do réu; nesse caso, há vítima? Seria então possível aplicar-se a noção de “revitimização”?</li>
<li>Apresenta dificuldades probatórias, sobretudo por força do art. 1º, § 1º, da Lei 13.869. No entanto, como a pena é baixa, permite a aplicação dos institutos negociais (transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal), o que pode acabar dispensando a exigência de prova para a aplicação de pena. Além do mais, muitos sujeitos ativos do crime tem foro por prerrogativa de função.</li>
</ul>
Além disso, pergunto-me por que (1) o projeto não foi debatido no âmbito da CCJ e só foi discutido em plenário; (2) não foram ouvidos experts para auxiliar a atividade legislativa a melhorar o tipo penal; (3) não foram apresentados estudos de impacto legislativo; (4) não foram consultadas pessoas interessadas para pronunciar-se sobre a medida.
Não basta se ater apenas à qualidade da matéria; é preciso também prestar atenção à qualidade da forma do processo legislativo, do modo de condução das atividades parlamentares, do grau de consulta às partes interessadas, do tempo necessário para o amadurecimento da decisão. O legislador precisa justificar as suas escolhas e, para isso, não bastam argumentos genéricos do tipo “a proposta cumpre com as exigências formais e materiais”. São imprescindíveis dados e informações que embasem empiricamente a proposta.
Ao fim e ao cabo, o legislador quis dizer tudo, e quando se quer dizer tudo, acaba não se dizendo nada.
<hr />
Sobre racionalidade legislativa, podem ser consultados os seguintes materiais:
RUIVO, Marcelo Almeida. Legislação penal e ciências criminais: por uma teoria orientadora dos interesses político-criminais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 147, p. 587-614. São Paulo. Setembro de 2018.
SCALCON, Raquel lima. Avaliação de impacto legislativo: a prática europeia e suas lições para o Brasil. Revista de Informação Legislativa, v. 54, n. 214, p. 113-130, abr./jun. 2017. Disponível em: [<a href="https://bit.ly/3u1QiRT">https://bit.ly/3u1QiRT</a>]. Acesso em: 01.04.2022.
SCALCON, Raquel Lima. Breves reflexões sobre a racionalidade do processo legislativo e seu impacto na presunção e no controle de constitucionalidade da lei penal. p. 393-407. In: D’AVILA, Fábio Roberto et al. Direito Penal e Constituição: diálogos entre Brasil e Portugal. Porto Alegre: Boutique Jurídica, 2018.

Plenário do Senado Federal / Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

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JOTA

Lei 14.321/22 fica no plano das legislações penais simbólicas, editadas para acalmar um clamor popular

Lei que prevê crime de violência institucional contém vícios já na base

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