Tatiana Aguiar
Mestre e doutora pela PUC-SP. Especialista em Direito Homoafetivo e de Gênero. Professora do IDP, da FGV Direito SP e do IBET. Integrante do Grupo de Pesquisa de Tributação e Gênero da FGV Direito SP e PGFN

Nos últimos dias, uma notícia relativa à exigência da autorização marital por alguns planos de saúde para inserção de dispositivo intra-uterino (DIU) em algumas mulheres, com base na Lei do Planejamento Familiar, ganhou destaque na mídia[1].
Não se trata, contudo, de um caso raro no nosso ordenamento jurídico. Por isso, o presente artigo se propõe a refletir sobre o parágrafo quinto do artigo décimo da Lei do Planejamento Familiar, o qual prevê que a pessoa casada que queira se submeter ao procedimento de esterilização deve ter a autorização do seu companheiro ou companheira, estendendo a análise, brevemente ao caso citado acima.
Embora reconheçamos que esta determinação se volte à ambos os integrantes da sociedade conjugal, optamos por observá-lo à luz dos direitos da mulher, dada a construção social dos estereótipos de gênero, que a coloca, em condição de subserviência em relação ao homem, numa sociedade patriarcal e sexista, onde este ultimo, contrariamente, é visto como provedor e desobrigado à executar as tarefas domésticas e familiares, tendo o Direito como seu aliado enquanto instrumento confirmatório deste padrão.
Se olharmos em retrospectiva, quer nos parecer que desde sempre à mulher foi dada a função precípua de ser mãe. Todavia, essa visão contemporânea não se confirma pela história. MOURA e ARAÚJO (2004, p. 45), em estudo intitulado “A maternidade na história e a história dos cuidados maternos”, nos relatam, a partir das ideias de Badinter, que durante a idade antiga e média a maternidade não era valorizada, o homem já se colocava como patriarca da família e à sua esposa e filhos eram dados lugares subalternos, em que se igualavam diante da superioridade do chefe de família.
Somente a partir do século XVIII, em virtude do lugar de destaque assumido pela burguesia, é que este cenário começa a mudar. Por razões econômicas e visando o crescimento populacional, a ideia do amor maternal passa a ser estimulada entre as mulheres, de modo a fazer com que as crias vingassem e pudessem a se tornar mão de obra no futuro.
Percebe-se que a relação entre a mulher e a maternagem, a suposta privilegiada função de rainha do lar, nunca foi algo natural, mas sim uma construção cultural bastante recente com finalidades políticas e econômicas, a fim de que a mulher se mantivesse circunscrita ao ambiente doméstico e assumisse a responsabilidade de perpetuar a espécie (MOURA e ARAÚJO, 2004, p. 45).
Um dos reflexos dessa estrutura sexista em que estamos inseridos é, justamente essa visão da mulher como uma máquina geratriz de filhos à serviço da família, e não como dona seu próprio corpo, assim como a sua disponibilidade para cria-los, em qualquer circunstância, o mesmo não acontecendo com os homens que, de forma velada, estão legitimados pela sociedade a abandonar seus filhos sem grandes reprovações morais, sociais ou jurídicas.
Prova disso é que em pesquisa realizada pelo CNJ restou demonstrado que mais de 5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros não contam com o nome do seu genitor nos seus registros civis. (CNJ, 2015). Por outro lado, em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (IPEA, 2015), em 2015, constatou-se que 40,5% das famílias brasileiras já eram chefiadas por mulheres, numero que certamente vem aumentando dada a complexidade cada vez maior da sociedade.
Segundo Paulo Lobo, o próprio direito é responsável pela perpetuação desta visão sexista da sociedade, na medida em que já nas Ordenações Filipinas a mulher era descrita como fraca de entendimento. (2019, p. 68). O Código de 1916 não diferia muito ao colocar a mulher em situação de inferioridade ao instituir o poder marital, determinando que ela deveria ser tão obediente ao marido, quanto seus filhos e ainda a impedia de litigar judicialmente sem autorização daquele, logo, sem autonomia.
O mesmo autor nos lembra que até 2014, quando a Lei 13.058 passou a estabelecer a guarda compartilhada como regra, a tendência “natural” do juízes era conceder a guarda exclusiva às mães, em caso de separação, isso se dava, na opinião dele, pelo fato da própria sociedade atribuir à mulher o papel de dona de casa e ao homem o papel de provedor, razão pela qual este não teria tempo e disponibilidade para cuidar dos seus filhos. Ele entende que essa postura é altamente preconceituosa, já que não há propensão biológica, nem psicológica que justifique esse entendimento, somente a construção social o explica. (LOBO, 2019, p. 66)
Lobo ainda lembra que somente na década de sessenta, com o estatuto da mulher casada, considerada a “lei da abolição da incapacidade feminina”, que a situação da mulher passou a ser um pouco mais equânime, haja vista ter deixado de ser considerada civilmente incapaz.
Mesmo assim, somente com a Constituição de 1988 que a mulher passou, teoricamente, a ser considerada sujeito de direito em paridade com homem, já que, até então, este era tido como chefe da sociedade conjugal e o papel da mulher era de mera colaboradora. E, o Código de 2002, já na linha da mais recente Carta Magna extinguiu expressamente qualquer indicio de poder marital. (2019, p.67 a 69)
Em 1996, foi publicada a Lei nº 9263, denominada Lei do Planejamento familiar. Este diploma legal regulamentou o processo de esterilização em seu artigo décimo, onde deixou claro se tratar de um procedimento voluntário (grifos nossos) e acresceu uma série de disposições. Dentre esta nos interessa tratar do parágrafo quinto que estabelece o seguinte: “Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.”
Ora, se se trata de um ato de vontade, mas em seguida o legislador acrescenta que no caso de pessoas casadas ambos devem consentir para a realização daquele procedimento, quem seria o sujeito do ato volitivo: o que se submeterá à esterilização ou o quem a autoriza?
Nos parece que a lei se refere à estes últimos, já que sem essa aquiescência o médico não poderá realiza-la e pior, a primeira vista, quer nos parecer que se houver uma incompatibilidade entre as vontades, será a do terceiro (marido ou esposa) que prevalecerá, já que não há como aquele ocorrer sem a “perfectibilização” da condição imposta pelo parágrafo em análise.
Ao nosso sentir, um dos participantes do núcleo familiar não pode ser constrangido em nome do grupo parental, nem mesmo pelo estado-lei. Quando falamos de planejamento familiar não há duvida que estamos diante de um projeto coletivo que deve atender aos interesses de todos os que compõem aquela comunidade, porém, em caso de conflito, a vontade de um não deve se sobrepor ao do outro, nem impedir a tomada de decisão deste último, já que no fim das contas é o corpo deste que está em jogo.
Este raciocínio ganha ainda mais força, principalmente, quando estamos falando de um conflito entre um homem e uma mulher integrantes de uma sociedade conjugal, em que esta última quer se submeter ao procedimento de esterilização e seu companheiro não, pois além do desrespeito à autonomia corporal feminina, como dissemos acima, ainda vivemos em uma sociedade em que os cuidados familiares são assumidos majoritariamente pelas mulheres.
Portanto, impedi-la de dar a palavra final sobre não ter mais filhos ou evita-los, é expô-la a um risco de engravidar e de assumir as consequências de uma gravidez por ela indesejada e da criação desta criança sozinha ou, no mínimo, submete-la à divisões de tarefas e responsabilidades bem desiguais, principalmente, se considerarmos o dado estatístico que revela que é de grande monta o pleno abandono paterno no Brasil, fazendo com que milhares de mulheres se tornem mães solos e crianças fiquem parcialmente órfãs de pais vivos, como ressaltamos acima.
Como se não bastasse, a nossa Constituição Federal estabelece um Estado Democrático do Direto, o qual valoriza a liberdade/autonomia, abomina a opressão e protege a dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 1988).
Por estas razões, é que consideramos haver violação aos direitos à liberdade e à dignidade da pessoa humana no momento em que o parágrafo quinto do artigo 10 da Lei do Planejamento Familiar condicionar a esterilização da mulher casada à aprovação marital, além de podermos considera-lo reflexo desse cenário sexista transcrito acima.
Se tal ilegalidade já era infundada para procedimentos definitivos desta natureza, o que dizer do seu uso como fundamento legal para condicionar o uso de um instrumento contraceptivo provisório como o DIU? Esta discussão que ganhou a mídia deve seguir o mesmo raciocínio lançado acima e pelos mesmos argumentos aqui defendidos.
Referências
BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil, de 05 de Outubro de 1988. Diário Oficial de União, Brasília/DF, 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 12 de abril de 2020.
_______. Conselho Nacional de Justiça. Relatório Pai presente e certidões. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/conteudo/destaques/arquivo/2015/04/b550153d316d6948b61dfbf7c07f13ea.pdf>. Acesso em 06 de março de 2021.
IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas. Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. 2017. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_chefia_familia.html>. Acesso em 04 de janeiro de 2021.
LOBO, Paulo. Direito Civil: Famílias: Volume 5. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553616909/>. Acesso em 27 de fevereiro de 2021.
MOURA. Solange Maria Sobbotka Rolim de; ARAUJO. Maria de Fátima. A Maternidade na História e a História dos Cuidados Maternos. Revista Psicologia, Ciência e profissão, 2004, n. 24. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S141498932004000100006&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em 14 de fevereiro de 2021.
Notas
[1] DAMASCENO. Victoria. Seguros de saúde exigem consentimento do marido para inserção do DIU em mulheres casadas. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/08/seguros-de-saude-exigem-consentimento-do-marido-para-insercao-do-diu-em-mulheres-casadas.shtml>. Acesso 05 de agosto de 2021.