Maria Teodora Rocha Maia do Amaral

Ulisses Levy Silvério dos Reis

<p>A liberdade de expressão é um dos pressupostos de existência de uma democracia constitucional. A partir desse direito é que foi possível aos atores sociais discutir em quais condições, parâmetros e diretrizes se basearia a organização do Estado. Observa-se que a garantia da liberdade de expressão representa uma antonímia a um Estado com feições ditatoriais, geralmente marcados por várias formas de censura, repressão e invisibilização do pensamento e da personalidade. No Brasil recente, várias tensões a este direito fundamental vêm sendo realizadas a partir da utilização da Lei n. 7.170, de 14 de dezembro de 1983, chamada de Lei da Segurança Nacional (LSN), produzida nos fins do último regime ditatorial. Críticos do governo estão sendo alvos de investigações criminais com base nesta norma em razão de opiniões expressadas em jornais, redes sociais e outros meios de comunicação. Embora vários dispositivos da LSN sejam incompatíveis com a Constituição Federal de 1988, a sua revogação completa privaria o Estado de mecanismos necessários à defesa da democracia constitucional. Busca-se aqui analisar a evolução deste debate a partir dos recentes acontecimentos havidos no Brasil.</p>
<p>Devido à relevância dada à proteção da liberdade de expressão (potencializada pelo recente passado autoritário) no Brasil, sua tutela foi consagrada na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental. Assim como todos os direitos fundamentais, por não ser absoluta, esta liberdade não pode ser vista como um salvo-conduto para sustentar qualquer tipo de narrativa, sobretudo, quando pode violar outros direitos. É costumeiro haver colisões entre a liberdade de expressão e outros bens juridicamente tutelados, como a honra, a dignidade da pessoa humana (em suas várias acepções), a privacidade, entre outros. Nessas ocasiões, costuma-se imprimir limitações à extensão deste direito.</p>
<p><a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a></p>
<p>O cometimento de excessos em relação à liberdade de expressão e a necessidade de contê-los, portanto, não é uma novidade. Nos últimos anos, o abuso desse direito recebeu uma nova roupagem e passou a ser utilizado como uma égide que tenta validar falas autoritárias e abertamente contrárias ao regime democrático e às instituições. É o que ocorreu, por exemplo, no caso do deputado federal <a href="https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/02/17/deputado-federal-daniel-silveira-e-preso-em-casa-apos-defesa-do-ai-5-e-ataques-ao-supremo.ghtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Daniel Silveira</a> (PSL-RJ), que teve prisão em flagrante decretada pelo ministro Alexandre de Moraes após a publicação de um vídeo - na rede social <em>Youtube</em> - em que propunha a ruptura da ordem constitucional por meio da utilização das Forças Armadas, tendo em vista o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF). O fundamento legal para a prisão foi a LSN. A utilização da norma nesse caso enfrentou <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-deputado-o-stf-e-o-guarda-da-esquina-18022021#_edn1">críticas</a> da comunidade jurídica.</p>
<p>O fato é que, embora a Lei de Segurança Nacional tenha sido usada pelo STF para conter a atuação de um deputado que sustentou uma fala atentatória à democracia constitucional, ela também vem sendo usada pelo governo federal para perseguir os seus críticos. A estratégia já foi qualificada como um mecanismo de <a href="http://www.iconnectblog.com/2021/02/undemocratic-legislation-to-undermine-freedom-of-speech-in-brazil/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">perseguição</a> aos opositores políticos.</p>
<p>De acordo com um recente <a href="https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,inqueritos-da-pf-com-base-na-lei-de-seguranca-nacional-crescem-285-no-governo-bolsonaro,70003652910" target="_blank" rel="noopener noreferrer">levantamento</a>, entre 2019 e 2020, foram abertos 77 inquéritos policiais com base na LSN para investigar críticos do governo, um aumento de 258% em relação aos anos anteriores. Essa utilização representa uma perseguição de opositores patrocinada pelo próprio Estado. Diversos casos, cada vez mais recorrentes, se tornaram públicos<a href="applewebdata://0160E6EE-A42C-405E-84D1-E8D9867068C0#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> já no ano de 2021, como o de Guilherme Boulos (PSOL-SP), ex-candidato a prefeito de São Paulo e líder nacional do seu partido, que virou alvo de uma <a href="https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2021/04/pf-diz-que-boulos-ameacou-bolsonaro-abre-investigacao-e-marca-depoimento.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">investigação</a> pela suposta ameaça ao presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), por meio de uma postagem feita em rede social.</p>
<p>Em sua conta pessoal, Boulos (PSOL-SP) escreveu: “Um lembrete para Bolsonaro: a dinastia de Luís XIV terminou na guilhotina”. Essa mensagem foi uma resposta à declaração “Eu sou a Constituição”, feita por Bolsonaro no dia 20 de abril de 2020. A fala remete diretamente à frase atribuída ao rei da França, Luís XIV, no século XVII: “O Estado sou eu”. Se não há vedações ao uso de analogias históricas nas falas do presidente, apenas a imposição de uma nova forma de censura justificaria a impossibilidade de o político paulista rebater a manifestação presidencial a partir de um contemporâneo acontecimento correlato.</p>
<p>O <em>tweet</em> afirmando que a dinastia do rei Luís XIV terminou na guilhotina é a simples reprodução de um fato histórico, sem que seja possível imputar nenhum indício de ameaça ao presidente (ou a qualquer outro cidadão), de existência de meios materiais para a suposta consumação da ameaça ou de vontade deliberada de reproduzir o conteúdo da mensagem. A utilização da LSN, nesse caso, representou uma tentativa de intimidação, especialmente por se tratar de um opositor político, que viola a literalidade constitucional garantidora da livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV) e da livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX).</p>
<blockquote class="jota-article__eye"><p>É necessário haver mecanismos de proteção do Estado Democrático de Direito e, consequentemente, do direito à liberdade de expressão sem que seja necessário recorrer (ironicamente) a uma lei proveniente da <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-que-ou-a-quem-a-lei-de-seguranca-nacional-de-fato-protege-24032021">ditadura</a>.</p></blockquote>
<p>Já existem iniciativas nesse sentido, como o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2257960" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Projeto de Lei 3.864/2020</a>, que trata da revogação total da LSN e da instituição de uma legislação própria para a defesa do Estado Democrático de Direito. No entanto, a demora em sua apreciação e a inoperância na tramitação no Congresso Nacional mobilizou um grupo de 20 advogados da OAB/SP, que <a href="https://www.poder360.com.br/justica/grupo-da-oab-sp-ira-a-corte-interamericana-contra-lei-de-seguranca-nacional/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">encaminhará</a> uma reclamação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em face das violações cometidas a partir da ainda vigente LSN.</p>
<p>Mas essa não é a única saída. Tramita no STF, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/psb-vai-ao-stf-contra-trechos-da-lei-de-seguranca-nacional-04032021">duas</a> arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), buscando o controle de constitucionalidade da LSN. As ações, de autoria dos partidos PTB e PSB, possuem escopos distintos. Enquanto a primeira (ADPF 797) busca a declaração da inconstitucionalidade completa da lei a partir da não-recepção de nenhum dos seus artigos, a segunda (ADPF 799) reivindica do STF a não recepção de alguns deles e uma interpretação conforme à Constituição de outros considerados fundamentais para a tutela do Estado Democrático de Direito. Concorda-se aqui com esta segunda visão. Até que o Congresso Nacional regulamente o assunto pela edição de uma nova legislação consentânea com a Constituição de 1988, faz-se necessário manter em vigência os mecanismos de salvaguarda da democracia numa espécie de substrato mínimo da <a href="https://www.youtube.com/watch?v=2VAGGv4wClw" target="_blank" rel="noopener noreferrer">democracia militante</a>.</p>
<p>A utilização arbitrária da LSN não é o único exemplo atual de ameaça do direito à liberdade de expressão. Existem vários relatos de ataques virtuais e físicos recebidos em razão das pesquisas desenvolvidas por acadêmicos, como foi o caso de <a href="https://theintercept.com/2021/03/17/cientista-amazonia-alvo-perseguicao-ameacas-lucas-ferrante/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Lucas Ferrante</a>, de <a href="https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/22/politica/1550871025_250666.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Debora Diniz</a> e de <a href="https://www.abrasco.org.br/site/noticias/posicionamentos-oficiais-abrasco/apoio-larissa-bombardi/57149/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Larissa Mies Bombardi</a>.  A questão é que, quando a ameaça é originária de particulares, espera-se a atuação estatal para coibi-la. E quando a repressão é oriunda do próprio Estado?</p>
<p>A liberdade de expressão é essencial para uma democracia constitucional. Ela é um dos principais instrumentos pelo qual se pode apontar, sem receio de ser punido/perseguido, os equívocos (e até os crimes) que um agente público cometeu. Por esse motivo, ela ajuda a garantir a sobrevivência do Estado Democrático de Direito. A existência de ameaças a esse direito fundamental é sintoma de um Estado no qual as instituições democráticas estão enfraquecendo gradativamente. As críticas, quando fundamentadas, rompem a inércia decorrente da hegemonia narrativa naturalmente detida pelos governos. Empreendê-las só é possível em uma democracia constitucional que garante a efetivação dos direitos fundamentais. Precisa-se, no Brasil, de uma lei de salvaguarda do Estado Democrático de Direito. Enquanto ela não aparece, que a LSN seja preservada naquilo que for consentâneo com a Constituição.</p>
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<p class="jota-article__reference"><a href="applewebdata://0160E6EE-A42C-405E-84D1-E8D9867068C0#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Como o do <em>youtuber</em> Felipe Neto, do sociólogo Tiago Costa Rodrigues, dos jornalistas Ruy Castro e Hélio Schwartsman, do ex-reitor e professor Pedro Hallal e do professor Eraldo dos Santos Pinheiro (ambos da UFPel), do advogado Marcelo Feller e dos cinco manifestantes que protestavam, em Brasília/DF, no dia 18 de março de 2021.</p>


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JOTA

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