Leandro Maciel do Nascimento

A entrada em vigor da Lei Complementar nº 179/2021, que “define os objetivos do Banco Central do Brasil e dispõe sobre sua autonomia e sobre a nomeação e a exoneração de seu Presidente e de seus Diretores”, reforçará ainda mais processo de autogoverno do Banco Central do Brasil (BCB).
Em resumo, o cerne da nova lei está em dois aspectos. De um lado, a explicitação da natureza jurídica do BCB, o qual passou a ser uma autarquia de natureza especial caracterizada a) “pela ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica”, b)  “pela autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira”, c) “pela investidura a termo de seus dirigentes” e d) “pela estabilidade durante seus mandatos” (artigo 6º).
De outro lado, a previsão de mandatos para seus dirigentes, em períodos distintos do mandato do Presidente da República (artigo 4º). A propósito, caso seja constatado “comprovado e reiterado desempenho insuficiente” no curso do mandato, o dirigente do BCB somente poderá ser exonerado por decisão da maioria absoluta do Senado Federal, mediante requerimento do Chefe do Poder Executivo (artigo 5º, § 1º). Nesses termos, a presidência do BCB deixou de ser um cargo de livre e exoneração. 
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Poucas entidades possuem tão elevado grau de proteção funcional aos seus dirigentes e de desvinculação dos governos. No Brasil, apenas o Ministério Publico e o Tribunal de Contas. Esses órgãos, além das garantias institucionais e das prerrogativas de seus membros, possuem iniciativa privativa de lei em matérias específicas, competência que não foi estendida, nessa oportunidade, ao BCB.
No entanto, a questão da autonomia de um Banco Central não se resume aos mandatos da diretoria e nem a desvinculação de qualquer dos ministérios. No caso brasileiro, trata-se de um processo em curso há vários anos e que envolve diversos aspectos jurídicos e operacionais, aos quais a Lei Complementar n. 179/21 trouxe mais elementos.
Nesse sentido, mesmo antes do advento da nova lei, o BCB já estava no grupo dos mais autônomos do mundo, tanto de fato e quanto de direito. E essa afirmação se pauta em três pontos. Primeiro, pelo modo como suas atividades são custeadas. Segundo, em face da garantia de que não lhe faltarão títulos públicos para exercer suas atribuições. E, terceiro, em razão do modo de apuração e de destinação de seus resultados. Explica-se.
Primeiro ponto. Diferentemente dos demais órgãos e entidades que compõem a estrutura do Estado brasileiro, o Banco Central do Brasil (BCB) possui um tratamento orçamentário diferenciado e mais favorecido quanto à sua atividade finalística.
Tal afirmação causa surpresa, principalmente porque a política monetária não é neutra em termos fiscais. Curiosamente, proteger a moeda e manter seu poder de compra custa muito dinheiro. No entanto, essa atividade não passa, a rigor, pelo ciclo orçamentário. Pelo menos, não da forma como ocorre com o restante da administração pública em geral, cujas necessidades devem ser objeto de planejamento, apresentadas em planilhas e veiculadas na proposta de lei orçamentária anual (LOA). Esta, por sua vez, requer aprovação legislativa, de modo que projetos e atividades sejam materializados em créditos. Contudo, dado que o orçamento brasileiro em regra não possui caráter vinculante, um montante significativo das autorizações legais de despesa estará sujeito a contingenciamento ao longo do exercício financeiro.
Com o BCB não é assim. Embora movimente recursos na casa dos trilhões de reais em suas atividades finalísticas, tais valores não estão detalhados na LOA. Em verdade, o BCB possui características orçamentárias bem peculiares, pois a legislação estabelece uma distinção sobre o modo como suas despesas são custeadas: 1) as de custeio e de investimentos devem estar previstas na LOA (artigo 5º, § 6º, da LRF), ao passo que 2) as atividades finalísticas estão fora do ciclo orçamentário. Nesse sentido, os prejuízos gerados pela execução da política monetária são arcados pelo estoque de resultados positivos de anos anteriores ou, em último caso, pela emissão de títulos públicos, conforme artigo 4º da Lei n. 13.820/19. Em resumo, o Tesouro Nacional (TN) é o garantidor de última instância, através da dívida pública.
A bem da verdade, tal arranjo não é uma exclusividade brasileira e não é uma novidade da LC n. 179/21. Já existia anteriormente e foi reforçado pela Lei 13.820/19. Em todo caso, é intuitivo que esse modelo proporciona maior autonomia para o BCB. As regras atuais não exigem, por exemplo, que a autarquia justifique, no processo orçamentário anual, suas opções finalísticas para obter recursos para suas atribuições finalísticas.
Ressalte-se, contudo, que não se observa esse grau de liberdade orçamentária em outros campos de atuação governamental. Nem mesmo em setores sensíveis, como saúde, educação e segurança pública, que, além de estratégicos, lidam mais diretamente com a vida das pessoas e apresentam demandas urgentes e cada vez mais crescentes. Nessas áreas, gestores e beneficiários se deparam com recursos realmente limitados. Em resumo, é possível afirmar que não existe escassez de recursos para o BCB, fato que torna mais ampla sua liberdade de ação.
Segundo ponto. Além de não ter preocupações orçamentárias para executar suas atividades finalísticas, pode-se afirmar que o principal instrumento de trabalho do BCB (sua carteira de títulos públicos) é igualmente ilimitado. Pelas regras em vigor, a autarquia sempre terá títulos públicos à sua disposição.
Com efeito, embora o BCB esteja proibido pela LRF de emitir títulos próprios, a Lei 13.820/19 estabelece que o Tesouro Nacional tem o dever de manter uma carteira mínima de títulos à disposição da autoridade monetária. Assim, havendo redução do estoque para níveis abaixo de determinado patamar (4% da carteira total de títulos), é obrigatória a reposição do volume, nos termos do artigo 7º, da Lei n. 13.820/19.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Portanto, nesses termos, não é permitido, por exemplo, que essa reposição seja condicionada a uma eventual mudança de rumos da política monetária. Apenas para ilustrar, conforme o último balanço anual do BCB, a carteira de títulos em moeda nacional, em 31.12.2020, correspondia a quase R$ 2 trilhões,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> o qual é um montante elevado tanto em termos absolutos quanto em proporção do produto interno bruto.
Terceiro ponto. Atualmente o BCB passou a contar, pelo menos em tese, com uma maior proteção quanto ao repasse de resultados ao Tesouro Nacional. Mas tal proteção já existia antes da LC n. 179/21, de modo que a autarquia já estava relativamente protegida contra eventuais pressões do governo para gerar resultados positivos, que gerariam receitas para o Tesouro Nacional. Até 2019, quando entrou em vigor a Lei n. 13.820/19, esse era considerado um ponto crítico no relacionamento entre o BCB e o Tesouro Nacional, tendo sido inclusive apontado em relatórios de organizações internacionais, como o FMI.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
O repasse de resultados positivos de um banco central ao caixa do governo é tema que requer atenção. Inicialmente, a autoridade monetária é entidade potencialmente lucrativa, pois emite passivo (no caso, a moeda) sem ter que pagar juros por isso. Os modelos de apuração e de repasse de resultados variam de país para país. No Brasil, a Lei n. 4.595/64 estabelecia em sua redação original que os resultados do BCB seriam “incorporados ao seu patrimônio” (artigo 8º). Esse modelo durou até a segunda metade dos anos 1980, quando houve a criação da Secretaria do Tesouro Nacional e a extinção da “conta-movimento”. A partir então, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n. 2.376/87, o BCB passou a ter que repassar os resultados positivos ao Tesouro Nacional.
Em verdade, esse é um dos assuntos mais controversos no relacionamento entre as duas instituições. No caso brasileiro, era considerado elemento de vulnerabilidade da autonomia do BCB, principalmente a partir dos anos 2000, quando as reservas em moeda estrangeira aumentaram de modo considerável.
<blockquote class="jota-article__eye">Com a criação do mecanismo de equalização cambial (pela Lei n. 11.803/08), houve um elevado fluxo de dinheiro e de títulos públicos entre o BCB e o TN, com o consequente aumento das operações compromissadas e da dívida pública bruta.</blockquote>
Até 2019, vigorava a regra da LRF, segundo a qual os resultados positivos do BCB deveriam ser transferidos em dinheiro para a conta única do TN. Por outro lado, de modo assimétrico, os resultados negativos deveriam ser cobertos pela emissão de títulos. Em outras palavras, se o BCB desse lucro, deveria repassá-lo ao governo em dinheiro; se desse prejuízo, a cobertura seria feita com títulos públicos. Havia um sofisticado sistema de segregação de resultados cambiais e não cambiais, com fundamento na Lei n. 11.803/08, e esse modelo poderia gerar incentivos para o governo pressionar o BCB a apresentar resultados positivos.
Isso poderia ocorrer porque as oscilações do Dólar, por exemplo, refletiam no valor em Real das reservas internacionais (cujo montante é fixado pelo BCB). Ao final de cada semestre, no fechamento dos balanços, essa variação poderia gerar resultados positivos, ainda que meramente contábeis. Como dito, os lucros (inclusive os cambiais) deveriam ser repassados em dinheiro ao TN, ao passo que os prejuízos eram cobertos pela emissão de dívida no ano seguinte.
Tratava-se, conforme se extrai dos balanços do BCB dos últimos anos, de elevados fluxos de dinheiro e de títulos, na casa de centenas de bilhões de reais. No fim das contas, na vigência da Lei 11.803/08, observou-se aumento da capacidade financeira do Governo Federal, ao custo do aumento das operações compromissadas e do montante da dívida bruta.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
De todo modo, antes da LC n. 179/21, tal mecanismo foi restringido (embora não completamente extinto) pela Lei n. 13.820/19. Desde então, estabeleceu-se um sistema de reservas e de compensações entre resultados positivos e negativos. Ilustrativamente, o último balanço anual do BCB indica a ocorrência de resultado positivo no primeiro semestre de 2020 e negativo no segundo. E aponta o repasse de R$ 325 bilhões para o Tesouro Nacional, a título de resultado positivo, vinculados ao pagamento da dívida pública mobiliária federal interna.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Em suma, embora pudessem ser citados outros exemplos, os três pontos aqui abordados são suficientes para demonstrar que o Banco Central do Brasil já possuía ampla liberdade de atuação, de fato e de direito, mesmo antes da vigência da LC n. 179/21. Nesse contexto, a nova lei, aprovada de modo célere no auge da segunda onda da pandemia de Covid-19 no Brasil, ao desvincular a autoridade monetária de qualquer ministério e ao estabelecer mandato fixo para seus membros, não é o marco zero da autonomia do BCB. Na verdade, apenas reforça um processo em curso já há alguns anos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Art. 7º Sempre que o valor da carteira de títulos da DPMFi livres para negociação em poder do Banco Central do Brasil atingir percentual igual ou inferior a 4% (quatro por cento) de sua carteira total de títulos, a União efetuará emissão de títulos adequados aos fins de política monetária em favor do Banco, em montante necessário para que sua carteira de títulos livres para negociação atinja o valor de 5% (cinco por cento) da carteira total.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Mais precisamente, R$ 1.925.057.299.000,00, entre títulos livres, vinculados a operações compromissadas, vinculados a garantias de operações e títulos inegociáveis, conforme. Disponível em: <a href="https://www.bcb.gov.br/content/acessoinformacao/balanceteslai/Demonstrações%20Financeiras%20BCB%20-%2031.12.2020.pdf">https://www.bcb.gov.br/content/acessoinformacao/balanceteslai/Demonstrações%20Financeiras%20BCB%20-%2031.12.2020.pdf</a> . Acesso em: 05.05.2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Conforme relatório “Brazil: fiscal transparency evaluation” (IMF Country Report No. 17/104). Disponível em: <a href="https://www.imf.org/en/Publications/CR/Issues/2017/05/03/Brazil-Fiscal-Transparency-Evaluation-44874">https://www.imf.org/en/Publications/CR/Issues/2017/05/03/Brazil-Fiscal-Transparency-Evaluation-44874</a> . Acesso em: 05.05.2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “De acordo com os números do próprio Banco Central, as emissões de títulos para a cobertura do resultado negativo foram responsáveis por 15,3% do PIB do aumento da carteira do Banco Central, no período 2006-2017, enquanto a transferência do resultado positivo levou ao aumento de 16,8% do PIB do saldo da conta única, no mesmo período, sendo 12,1% do PIB relativos ao resultado cambial.” (PELLEGRINI, Josué. A relação entre Tesouro e Banco Central. Nota Técnica IFI n. 25/2018. Instituição Fiscal Independente. Brasília: Senado, 2018. Disponível em: <a href="https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/551109/NT25_relacao_Tesouro_BACEN.pdf">https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/551109/NT25_relacao_Tesouro_BACEN.pdf</a> . Acesso em: 10.06.2021).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> “23.2 Reserva de resultados.  Constituída pela parcela do resultado positivo do BCB correspondente ao resultado financeiro positivo das operações com reservas cambiais e com derivativos cambiais realizadas no mercado interno, apuradas a partir de 1º de julho de 2019, conforme definido pela Lei nº 13.820, de 2019, tem por objeto a cobertura de eventuais resultados negativos do BCB. Adicionalmente, seu saldo poderá ser destinado ao pagamento da DPMFi, desde que: a) seja mantido o patrimônio líquido do BCB em,  no mínimo, 1,5% de seu ativo; b) severas restrições nas condições de liquidez afetem significativamente o refinanciamento da DPMFi; e c) haja autorização do CMN. No 2º semestre de 2020, ocorreu a realização de reserva de resultado para cobertura do resultado negativo (Nota 31.1), bem como a realização pela transferência ao Tesouro Nacional em observação ao previsto no art. 5º da Lei 13.820. tendo em vista as consequências econômicas da crise causada pela pandemia do novo coronavírus (Covi-19), que afetou significativamente o refinanciamento da DPMFi, o CMN autorizou a destinação de parcela da Reserva de Resultado à União, no valor de R$ 325.000.000 [milhares], que foi transferida à Conta Única em 28 de agosto de 2020” (Grifado).Disponível em: <a href="https://www.bcb.gov.br/content/acessoinformacao/balanceteslai/Demonstrações%20Financeiras%20BCB%20-%2031.12.2020.pdf">https://www.bcb.gov.br/content/acessoinformacao/balanceteslai/Demonstrações%20Financeiras%20BCB%20-%2031.12.2020.pdf</a> . Acesso em: 05.05.2021.

Banco Central

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JOTA

Antes do advento da nova lei, o BC já estava no grupo dos mais autônomos do mundo, tanto de fato e quanto de direito

A Lei Complementar 179/2021 e a autonomia do Banco Central

A consolidação de um processo iniciado há alguns anos