Alexandre Vidigal de Oliveira

Corrupção é uma terminologia criminal. A Lei 12.846/13, porém, denominada lei "anticorrupção", nada tem de norma penal. É uma norma de responsabilização exclusivamente cível e administrativa.
O nome que a associa ao termo penal "corrupção" tem a virtude de facilitar a percepção social de seu desiderato pois aquele termo é de comum conhecimento popular, e nisso estabelece uma comunicação direta e sem rodeios daquilo que objetivou, e que foi o intento em se criar mais um instrumento reativo às condutas ilícitas praticadas contra a administração pública, mas, agora, com foco concentrado exclusivamente na responsabilização da pessoa jurídica.
Talvez até fosse melhor que, tomando-se emprestado o termo "corrupção", devesse aquela norma ser chamada de "Lei do Corruptor", até porque este, de regra, utiliza-se de condutas outras, fora dos estritos contornos do tipo penal da corrupção, para alcançar vantagens em sua relação com o setor público, condutas estas que a Lei 12.846/13 efetivamente objetivou responsabilizar e que, até sua vigência, e salvo pontual, esporádica e reflexamente, as pessoas jurídicas se encontravam alheias às consequências de suas práticas desviantes, ou as suportavam de modo bastante desproporcional aos benefícios substancialmente obtidos.
E nisso a Lei 12.846/13 inaugura novo paradigma de conscientização ao  despertar o empresariado brasileiro com atuação no país e no exterior, ou o empresariado multinacional que aqui atua, a observar lisura e comprometimento de integridade em suas relações negociais com o Estado, em um ambiente com a necessidade de práticas empresarias escoradas na cultura da honestidade.
Claro que, em uma sociedade ideal, o apelo da honestidade deveria ser despertado como um compromisso consciente, quase que impregnado no DNA das pessoas jurídicas e como ressonância deste mesmo DNA de honestidade de seus empreendedores e dirigentes. No mundo real, porém, não sendo essa a realidade compartilhada, faz-se necessário o rigor da lei a punir a violação àqueles valores de honestidade e nisso com a correspondente projeção intimidatória, própria das normas sancionadoras.
Assim, não se pode deixar de reconhecer a importante mudança de mentalidade que a Lei 12.846/13 passa a exigir das empresas e pelo recado que transmite da necessária retidão, sob pena de, agindo de modo contrário, ser muito grande o risco de pagarem caro por isso.
Em uma análise mais ampla, a Lei 12.846/13 passou a tratar da outra ponta da linha que liga a relação público/privada, na medida em que, para o agente público infrator, corrupto, ímprobo, desleal ou mesmo, apenas, desidioso no cumprimento dos seus deveres funcionais naquela relação, já havia um sistema sancionador razoavelmente eficaz de resposta às práticas ilícitas de sangria dos recursos públicos.
Era necessário, portanto, ir além, não mais limitando a responsabilização ao CPF, mas também implementando-a, com o mesmo ou maior vigor, ao CNPJ.
Aproveitando-se de instrumentos de prevenção, apuração, responsabilização e solução para os ilícitos praticados pelas empresas já previstos em nosso ordenamento jurídico, como o acordo de leniência (Lei 12.529/11), e os programas de integridade/compliance (Lei 12.683/12), a Lei 12.846/13 acabou dando-lhes nova roupagem, adaptando-os às especificidades que objetivava alcançar. Além disso, avançou em medidas como a da sanção civil de "dissolução compulsória da pessoa jurídica", prevista em seu artigo 19, III, medida extrema e excepcional em nosso Direito, e que encontra alguma semelhança na previsão do artigo 21, III, do revogado Código Civil de 1916, que trata do término da existência da pessoa jurídica, e também tendo alguma sutil aproximação com a liquidação extrajudicial das instituições financeiras, na forma do artigo 15, I, "b", da Lei 6024/74, e na liquidação forçada das empresas que incorrem em crime ambiental, prevista no artigo 24, da Lei 9605/98.
Embora não seja a Lei 12.846/13 uma norma de primoroso conteúdo e sistematização, não é difícil reconhecer seus méritos a desencadearem esperado impacto em um novo modelo na relação público/privada, marginalizando a prática, até então aparentemente tolerada pelas empresas, de desvios no trato com a coisa pública, e como se fosse uma realidade intrínseca à sua própria sobrevivência no mercado.
Mesmo virtuosa a lei anticorrupção, nem por isso se pode deixar de reconhecer algumas inconsistências bastante consideráveis nesse novo modelo de responsabilização empresarial, com temas a suscitarem algumas dúvidas, e que têm encontrado apenas respostas evasivas, improvisadas e insuficientes às complexidades que exprimem.
A responsabilidade objetiva, por exemplo, desafia algumas reflexões. É certo que a responsabilidade objetiva é muita responsabilidade, mas não é toda responsabilidade. É objetiva, mas não é absoluta. A ciência jurídica ensina que há situações como as da excludente de ilicitude e que podem frustrar a desejada responsabilização objetiva, se não quanto ao dever de reparação integral do dano, ao menos, no que toca a sanções administrativas e civis, como a  Lei 12.846/13 procurou disciplinar. Não fora isso, o próprio artigo 2º da lei exige que o ato lesivo tenha sido praticado pela empresa “em seu interesse ou benefício”. Esse “interesse” e “benefício”, portanto, acabam firmando-se como autênticas condições para se configurar a responsabilização administrativa e civil da empresa, restando por mitigar a desejada responsabilidade sem culpa que a lei previu alcançar.
Outro ponto diz respeito à responsabilização civil/judicial, prevista nos incisos I a IV do artigo 19, e à opção dada ou não à autoridade para suas aplicações, quer dizer, à margem de discricionariedade que lhe cabe observar. Conquanto o "caput" do artigo 19 refira-se a uma faculdade conferida à administração pública e ao Ministério Público, a leitura atenta do mesmo dispositivo, e quando considerado seu inciso I - perdimento de bens - e o inciso III e § 1º - dissolução compulsória da pessoa jurídica - levam à necessária constatação de que nesses casos não haverá escolha da autoridade para a ação judicial, e sim o dever legal de atuação dos respectivos entes, tal seja, uma atuação vinculada.
Por sua vez, quando consideradas as sanções dos incisos II - suspensão ou interdição temporária -  e IV – proibição de benefícios em créditos públicos -, do artigo 19, aí sim a discricionariedade se faz presente. E neste ponto, até mesmo porque nem o Decreto 8.420/15 tratou a respeito, para que tais penalidades não fiquem ao inteiro alvedrio da autoridade e com o risco dos excessos ou omissões que daí podem advir, com suas graves consequências funcionais e até criminais, uma alternativa segura é aproveitar, para a aplicação ou não daquelas sanções, e mesmo de sua fixação temporal, os parâmetros disponibilizados para a escolha e correspondente mensuração das sanções administrativas, contidos no § 1º, do artigo 6º, como a "peculiaridade do caso concreto", a "gravidade" e a "natureza das infrações", bem como das circunstâncias específicas para a dosimetria daquela sanção administrativa, e elencadas nos nove incisos do artigo 7º.
É bem verdade que a distribuição temática contida na Lei 12.846/13 pode mesmo levar à suposição de que os parâmetros encontrados nos artigos 6º e 7º são restritos às sanções administrativas, pois somente estas estão no Capítulo III, e, portanto, não se aplicando para as sanções cíveis/judiciais que estão no Capítulo VI. De todo modo, e considerando-se a necessidade de adoção de uma interpretação sistemática da Lei 12.846/13, pela ideia de conjunto e consequente compatibilidade que deve haver entre suas disposições como integrantes de um mesmo todo, em razão do escopo único que a justifica, evidencia-se ser adequado adotar-se os critérios da sanção administrativa também como critérios da sanção civil, do artigo 19.
Outra questão é quanto à natureza jurídica do título executivo que decorre das sanções aplicadas. O valor da reparação integral do dano e o valor da multa, definidos no Processo Administrativo de Responsabilização-PAR, se não forem pagos serão inscritos em dívida ativa da fazenda pública, constituindo-se em crédito fiscal, cobrado com os privilégios da execução fiscal, na forma da Lei 6830/80. Por sua vez, o crédito resultante do Acordo de Leniência, e no qual se inclui aquela mesma reparação integral do dano e a multa, se não cumprido resultará em título executivo extrajudicial, na forma do artigo 585, II, do CPC/73 (NCPC, art. 783, II, III e IV), como prevê o artigo 37, do Decreto 8.420/15, ou seja, não se constituindo em crédito fiscal. Tal situação revela uma patente incongruência da norma, pois, para créditos de mesma natureza, embora decorrentes de origens diversas - o PAR ou o Acordo de Leniência - acabam tendo, equivocadamente, feição jurídica diferenciada. Sem maiores dificuldades de compreensão, resta claro que se está diante de uma incompatibilidade normativa, e a revelar o flagrante vício que, neste caso, deriva da norma regulamentadora.
Um ponto controvertido e mesmo a gerar alguma perplexidade, é no que diz respeito ao fato de que os Acordos de Leniência têm sido submetidos à homologação judicial.
A Lei 12.846/13 não deixa dúvidas quanto ao Acordo de Leniência consumar-se tão somente com sua "celebração", sem a necessidade de sua convalidação dar-se por qualquer outro ato ou manifestação, a não ser aquela própria, exclusiva e exaustiva pactuação apenas entre as partes envolvidas: a administração pública e/ou o Ministério Público, e a empresa.
Disso resulta que o Acordo de Leniência prescinde de homologação judicial, não sendo adequado, portanto, cogitar-se nessa providência.
Essas, portanto, algumas breves considerações a pontuar que a lei anticorrupção, já bastante difundida no meio empresarial e jurídico, está a desafiar a devida atenção à sua escorreita aplicação.

Corruption in business. Man putting money in suit jacket pocket.

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JOTA

Algumas inconsistências consideráveis nesse novo modelo de responsabilização empresarial

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