
A Lei 14.285/2021, de 29 de dezembro, alterou dispositivos do Código Florestal referentes à proteção de Áreas de Preservação Permanente (APPs) em áreas urbanas. Modificou, também, o art. 22 da Lei 11.952/2009 e o art. 4º da Lei 6.766/1979.
Em poucas palavras, o novo diploma legal desloca para os municípios e o Distrito Federal a competência para definir as faixas marginais de qualquer curso d’água perene ou intermitente em áreas urbanas consolidadas – que são sujeitas a regime de preservação permanente – de forma distinta dos parâmetros estabelecidos no inciso I, do caput do art. 4º do Código Florestal. Vale dizer, sendo da competência municipal (ou distrital) a determinação de áreas urbanas consolidadas, tem-se, agora, a competência local para definição de APPs às margens de cursos d’água nessas áreas, independentemente de qualquer parâmetro mínimo estabelecido no Código Florestal.
Cabe o registro de que, na tramitação do projeto de lei (PL 2510/2019), o Senado Federal, funcionando como Casa revisora, chegou a aprovar emenda ao texto, para assegurar uma largura mínima de 15 metros desocupados para as faixas marginais de cursos d’água nas áreas urbanas consolidadas. Todavia, retornando à Câmara dos Deputados, a alteração processada no Senado foi rejeitada (274 x 137 votos). O projeto foi à sanção presidencial, do que resultou a Lei 14.285/2021.
As inovações legislativas implicam, na prática, diminuição, a critério do legislador local, da extensão de APPs em áreas urbanas consolidadas, as quais, até então, deveriam observar, como já dito, os padrões estabelecidos pelo Código Florestal, que veicula norma geral sobre essa matéria. Esse aspecto já permite visualizar fortes traços de inconstitucionalidade, uma vez que tais disposições violam a competência privativa da União no tocante à definição de normas gerais mais protetivas, que são de observância compulsória por todos os entes políticos em matéria ambiental (CF, art. 24, VI, e parágrafo único).
É amplo o debate acerca do mecanismo de repartição de competências na estrutura do Estado Federal brasileiro, que, como sabido, adota o modelo de federalismo cooperativo. No intrincado desenho de um condomínio legislativo, no qual União, estados, Distrito Federal e municípios compartilham competências em várias matérias – entre as quais a proteção do meio ambiente –, a Constituição da República – núcleo irradiador da chamada competência das competências – estabelece a competência da União, dos estados e do Distrito Federal para legislar concorrentemente sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição (art. 24, inciso VI), como também sobre responsabilidade por danos ao meio ambiente (art. 24, inciso VIII).
Nesse espaço de competência legislativa concorrente, a competência da União diz respeito à definição de normas gerais, reservando-se aos estados competência suplementar – supletiva ou complementar (CF, art. 24, §§2° e 3°).
No que se refere aos municípios, a competência legislativa desses entes políticos relaciona-se com a predominância de assuntos de interesse local (CF, art. 30, I), cabendo-lhes, também, suplementar a legislação federal e estadual, naquilo que for pertinente (CF, art. 30, II). Têm os municípios competência legislativa suplementar, podendo apenas regulamentar ou suprir lacunas deixadas pela legislação federal e estadual, ajustando-a ao interesse local.
As competências legislativas municipais são balizadas pelo princípio da predominância do interesse local. Isso também ressalta do disposto no art. 182, CF, que confere aos municípios competência para elaboração de seus respectivos planos diretores com vistas à ordenação do desenvolvimento das funções sociais da cidade e à garantia do bem-estar dos citadinos. Decerto que por interesse local não se deve entender interesse único e exclusivo do município, mas sim aquele que se entrelaça predominantemente com a realidade da comuna.
Como destacado por Regina Maria Macedo Nery Ferrari, “não há interesse local que também não seja reflexamente da União e dos estados-membros, como não há interesse nacional ou regional que não se reflita nos municípios, como parte integrante de uma realidade maior que é a Federação brasileira”.[1]
Noutro giro, em se tratando de normas gerais, a União veicula parâmetros vinculatórios baseados na ideia de promoção do interesse nacional comum, sem prejuízo da edição de normas particularizantes relativas a interesses regionais ou locais. Relembrem-se, para melhor delimitação do conteúdo das normas gerais, os seguintes critérios apontados por Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “1. declaram um valor juridicamente protegido; 2. conformam um padrão vinculatório para a norma particularizante; 3. vedam o legislador e o aplicador de agirem em contrariedade ao valor nelas declarado; 4. aplicam-se concreta e diretamente às relações e situações específicas no âmbito de competência administrativa federal; 5. aplicam-se concreta e diretamente às relações e situações específicas no âmbito de competência administrativa estadual (ou municipal), sempre que o estado-membro (ou município) não haja exercido sua competência concorrente particularizante; 6. aplicam-se concreta e diretamente às relações e situações específicas no âmbito de competência administrativa estadual (ou municipal), sempre que o estado-membro (ou município) haja exercido sua competência concorrente particularizante em contrariedade ao valor nelas declarado”.[2]
Isso significa, noutras palavras, que, existente norma de caráter geral que ofereça um determinado padrão de proteção ambiental, o exercício da competência concorrente pelos demais entes políticos há de observar necessariamente o parâmetro normativo ali veiculado (cf. ADI n. 3.357-RS, Redator do acórdão Ministro Dias Toffoli, j. 30.11.2017).
As demais pessoas políticas, segundo vertente à qual me filio, podem reforçar os níveis de proteção já fixados em norma editada pela União, mas nunca flexibilizá-los. E mais: não é dado à União, por lei federal, abdicar da necessidade de observância da norma geral, conforme prescreve a própria Constituição da República. Uma vez fixada a norma geral pela União, é cabível sua suplementação (CF, art. 24, § 2º), mas não sua desconsideração. É bem claro, pois, o caráter residual da competência legislativa suplementar dos estados, municípios e do Distrito Federal. E essa residualidade se revela mais densa, ainda, em se tratando da competência municipal, ante a cláusula delimitadora interesse local, prevista no art. 30, I, CF.
É possível afirmar, portanto, que, no exercício da competência legislativa dos municípios (CF, art. 30, I e II), especialmente em matéria ambiental, o sistema constitucional não tolera que isso se desenvolva de forma alheia – e, eventualmente, contrária – aos padrões gerais estruturados pela norma federal para aplicação em nível nacional, com o propósito de oferecer um patamar mínimo de proteção às áreas de preservação permanente.
Assim, ao abrir mão desses padrões vinculatórios, “liberando” municípios e o Distrito Federal do piso de proteção veiculado na norma geral consubstanciada no art. 4º, I, do Código Florestal, o novel diploma legal subverte a primazia estabelecida pela Constituição da República à norma geral, em flagrante desrespeito ao disposto no art. 24, VI, e parágrafo único, da Carta Maior.
Vale repisar que a norma geral veiculadora de um patamar mínimo de proteção do bem jurídico fundamental, decorrente do exercício da competência da União, há de ter preferência sobre a competência suplementar dos demais entes políticos. Nas palavras de Luís Roberto Barroso, “os entes locais, no exercício de suas próprias competências, não podem restringir ou inviabilizar o exercício de competências de caráter nacional atribuídas à União.”[3]
Nessa mesma linha de compreensão – voltada, em síntese, à efetivação do princípio do nível mais elevado de proteção em relação a bens jurídicos fundamentais – está o Parecer ND n. 11.250/2021, do Ministério Público Federal, Subprocurador-Geral da República Nicolao Dino, perante o Superior Tribunal de Justiça, nos autos do RMS n. 65.812/SP – Segunda Turma, no qual foi acentuado que:
“[C]omo importante vetor de solução de conflitos interfederativos, em face de matérias de competência comum ou concorrente, tem-se a busca do nível mais elevado de proteção ao bem jurídico em jogo, notadamente quando este se reveste de caráter fundamental, [repelindo-se] medidas que implicam proteção deficiente ou insuficiente ao bem/interesse”.
Assim se verifica, por exemplo, em questões ambientais – que também se inserem no âmbito da competência comum (CF, art. 23), em relação às quais, devem ser assegurados níveis adequados e suficientes de proteção.
A discussão sobre a complexa rede de repartição de competências legislativas e as balizas a serem observadas pelos municípios em sua atribuição suplementar se faz presente amiúde na agenda do Supremo Tribunal Federal (STF). Na ADI nº 4.988/TO, Relator Ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, foi assentado que:
“[A] experiência jurisprudencial desta SUPREMA CORTE mostra que a definição do âmbito normativo de um direito fundamental e, por via de consequência, sua redução, deve guardar correlação com a finalidade de interesse público que se espera efetivar, porquanto os atos legislativos, assim como os demais atos estatais, estão sujeitos a uma espécie de reserva de proporcionalidade (ADI 855, Red. P/ acórdão Min. GILMAR MENDES, DJe de 27/3/2009).”
No mesmo sentido, o acórdão da ADI nº 5312/TO, Relator Ministro Alexandre de Moraes, bem como o acórdão no RE nº 586.224/SP, Rel. Ministro Luiz Fux (j. 5.3.2015), no qual o STF firmou a tese de que:
“O município é competente para legislar sobre o meio ambiente com a União e Estado, no limite do seu interesse local e desde que tal regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (art. 24, inciso VI, c/c 30, incisos I e II, da Constituição Federal)”.
Em outro passo, as alterações normativas decorrentes da Lei 14.285/2021 fragilizam a proteção do meio ambiente, especificamente no que se refere às áreas de preservação permanente em áreas urbanas, na medida em que favorecem o estabelecimento de faixas marginais em tamanhos distintos – e, pois, menores – que os patamares previstos no Código Florestal.
Nunca é demais lembrar que o regime de preservação permanente para a vegetação ripária seja em área rural, seja em área urbana, decorre de sua múltipla função ambiental de proteção dos cursos d’água, evitando assoreamentos, estabilizando o leito hídrico, filtrando detritos, entre outras funções (Código Florestal, art. 3º, II).
A autorização legal para fixação de faixas marginais ao arrepio do patamar mínimo fixado na norma geral veiculada pela União fragmenta perigosamente a definição de faixas marginais em cursos d’água que banham mais de um município, afetando sua preservação como um todo. Favorece, como dito acima, a redução desses espaços especialmente protegidos, em nível local, implicando, a médio prazo, o acirramento da crise hídrica no país.
Essa guinada legislativa caminha em descompasso com o disposto no art. 225, § 1º, inciso I, da Constituição da República, segundo o qual incumbe ao Poder Público “preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e promover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas”. Viola-se, desta forma, o dever constitucional imposto ao Estado (lato sensu) e à coletividade de promover o meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, protegendo e restaurando processos ecológicos essenciais. Dito de outra forma, a delegação aberta e desmedida de competência para os entes subnacionais restringe indevidamente o conteúdo do direito fundamental ao meio ambiente sadio, ao mesmo tempo em que descumpre o dever estatal de adequada e efetiva proteção ao bem jurídico.
Além de violar o art. 225, § 1º, inciso I, CF, oportuniza-se grave e inconstitucional regressão a níveis de proteção inferiores aos já estabelecidos pelo Código Florestal, configurando- se, sob esse ângulo, ofensa ao princípio da proibição do retrocesso socioambiental.
Não se põe em dúvida – cabe assinalar – a existência [essencial e intangível] de espaços institucionais definidos pela Constituição, destinados à livre e democrática formulação e implementação de “escolhas” de políticas públicas. O que se coloca como ponto de reflexão é, sim, a necessidade de reconhecimento e observância, também a partir de vetores constitucionais – expressos e implícitos – de núcleos essenciais, mormente quando já devidamente positivados, e de cuja marca não se deve retroceder.
No caso em análise, o regime de garantia de áreas de preservação permanente acha-se, agora, flexibilizado pela nova lei, sem que se verifiquem circunstâncias de fato determinantes e legitimadoras. E essas circunstâncias, na realidade, em vez de sugerirem fragilização, assinalam crescentemente em direção à necessidade de fortalecimento dos níveis de proteção de mananciais e cursos d’água, ante o já mencionado quadro de escassez progressiva de recursos hídricos ora verificado. Daí a apontada violação ao princípio da vedação do retrocesso socioambiental.
Não obstante a ausência de previsão normativa expressa, o princípio da proibição do retrocesso socioambiental acha-se presente na ordem constitucional brasileira. Identifica-se como um princípio geral estruturante que atua, a um só tempo, como trava impeditiva de regressão a patamares inferiores de proteção e como mola-mestra da atuação do Estado administrador e do Estado legislador na seara ambiental. Uma mola vocacionada a impulsionar adiante, à frente, sempre no sentido de ampliar e reforçar os níveis de promoção do direito ao meio ambiente sadio, sinalizando a formação e a implementação de políticas públicas sintonizadas com graus de proteção que o atual processo de exaurimento do meio ambiente, em diversas facetas, recomenda.[4]
Como registra Herman Benjamin, o texto constitucional delimita uma “zona de vedação reducionista” [e que] “prescrever, como objetivo da Política Nacional do Meio Ambiente, a ‘melhoria da qualidade ambiental propícia à vida’ é até dizer mais do que ambiciona o princípio da proibição do retrocesso, pois não bastará manter ou conservar o que se tem, impondo-se melhorar, avançar (= progresso) no terreno daquilo que um dia ecologicamente se teve, e desapareceu, ou hoje se encontra dilapidado, e, se não zelado de maneira correta, mais cedo ou mais tarde desaparecerá”.[5]
Por último – e nem por isso menos relevante –, as modificações trazidas pela Lei 14.285/2021 geram insegurança jurídica, especificamente no que se refere ao regime jurídico de APPs. Sim, porque, caso subsistam as disposições legais questionadas, os mais de 5.560 municípios existentes na Federação brasileira estão agora autorizados a dispor de forma distinta sobre faixas marginais em curso d’água em regiões urbanas, com dimensões/larguras díspares e sem obrigatoriedade de observância de um parâmetro mínimo, a depender, apenas, da definição das “áreas urbanas consolidadas”.
Salta aos olhos a fragilização do sistema jurídico-normativo que, a partir do Código Florestal, busca definir critérios minimamente homogêneos para promover a higidez e a integridade de espaços territoriais especialmente protegidos. Afinal de contas, como apontado acima, grande parte desses cursos d’água percorre mais de um município. Sendo assim, a fragmentação do parâmetro (largura) de implementação do regime de preservação permanente enfraquece o grau de proteção originariamente definido na norma geral.
Esse tema, por sua relevância, é de interesse geral (nacional), não havendo, no caso, predominância de interesse local suficientemente legítimo a justificar a desconsideração de um parâmetro mínimo veiculado na norma de caráter geral. Tem-se, por esse ângulo, um cenário propício à quebra de segurança jurídica no que toca à proteção de APPs em margens de cursos d’água.
A segurança jurídica tem sido apontada pela jurisprudência do STF como elemento estruturante do funcionamento do Estado em múltiplos aspectos, sendo considerada como “sub-princípio do Estado de Direito” (STF, MS n. 22.357/DF). A situação ora retratada compromete, destarte, a segurança jurídica, ante a possibilidade, por expresso permissivo legal, de estabelecimento de milhares de parâmetros diferentes de faixas marginais de cursos d’água em áreas urbanas, nos diversos municípios brasileiros, sem nenhum elemento uniformizador.
Note-se, como reforço argumentativo, que, em se tratando de gerenciamento e implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, a Lei 9.433/1997 estabelece, no art. 31, que os “Poderes Executivos do Distrito Federal e dos municípios promoverão a integração das políticas locais de saneamento básico, de uso, ocupação e conservação do solo e de meio ambiente com as políticas federal e estaduais de recursos hídricos”.
Isso assinala a desejável articulação entre ação governamental e políticas setoriais em nível local com as políticas federal e estadual de recursos hídricos, significando, noutras palavras, que estratégias de proteção de APPs à margem de cursos d’água não podem ser instituídas em descompasso com padrões mínimos de proteção estabelecidos em nível nacional. Tal linha argumentativa reforça a conclusão quanto ao cenário de insegurança jurídica que decorre da outorga de competência aos municípios para dispor de forma diversa daquela indicada no art. 4º, I, do Código Florestal, ao tangenciar a desejável atuação concertada dos entes políticos com base na normatividade de caráter geral.
Em síntese, a delegação de competência aos entes subnacionais (municípios e Distrito Federal) veiculada na Lei 14.285/2021 apresenta fortes traços de inconstitucionalidade, sendo inteiramente adequada e necessária sua arguição perante o STF, porque:
- ao autorizar a definição de “faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput deste artigo” [art. 4º do Código Florestal], desrespeita o art. 24, VI e parágrafo único, da Carta, violando a competência privativa da União no tocante à definição de normas gerais mais protetivas, que são de observância compulsória por todos os entes políticos em matéria ambiental;
- fragiliza os padrões de proteção em APPs, violando o princípio da proibição de não regressão, bem como o dever constitucional do Poder Público de proteger e restaurar processos ecológicos essenciais;
- restringe indevidamente o conteúdo do direito fundamental ao meio ambiente sadio, ao mesmo tempo em que descumpre o dever estatal de adequada e efetiva proteção ao bem jurídico;
- gera insegurança jurídica, ao possibilitar a definição de milhares de parâmetros distintos de faixas marginais de cursos d’água em áreas urbanas consolidadas, nos diversos municípios brasileiros e no Distrito Federal, sem observância do elemento uniformizador previsto em norma geral editada pela União.
Sendo esse o quadro que se apresenta, dois caminhos se abrem para o caso sob exame, ambos tendo por ponto de partida a inconstitucionalidade dos preceitos normativos apontados: um, conducente à pronúncia de nulidade ab initio da lei questionada, por sua contrariedade à normatividade constitucional, pela aplicação direta do princípio da nulidade da lei inconstitucional, em sede de controle difuso ou concentrado de constitucionalidade[6]; outro, que permita compatibilizar aquelas disposições com a normatividade constitucional, especialmente aquela que assinala a competência da União na definição de normas gerais de observância compulsória pelos demais entes políticos no exercício de sua competência legislativa suplementar, bem como a exegese da qual se extraia o máximo grau de eficácia possível à norma constitucional do art. 225, que confere força protetiva a áreas de relevância ambiental e assinalam o dever estatal de proteção do meio ambiente e de preservação de processos ecológicos essenciais.
A despeito de considerar adequada a primeira via acima indicada, afigura-se também plausível o segundo caminho, com a delimitação da exegese constitucionalmente possível, adotando-se, para tanto, o método de interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto.
Como sabido, essa técnica é muito mais que uma estratégia hermenêutica, configurando, na realidade, poderosa e eficiente ferramenta de controle de constitucionalidade, cujo prudente manejo resulta no estabelecimento da linha interpretativa para determinada norma que garanta e viabilize, ao fim e ao cabo, um sentido harmônico com o texto constitucional.
Nas palavras de Luís Roberto Barroso, “a interpretação conforme a Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara ilegítima uma determinada leitura da norma legal”.[7] Trata-se, então, de exercício criativo e determinante dos limites da possibilidade da desejável e necessária compatibilidade com a Constituição, fora da qual a norma legal não pode nem deve subsistir validamente no ordenamento jurídico-positivo.[8]
A jurisprudência do STF contém inúmeros e relevantes casos de implementação da técnica de interpretação conforme a Constituição. Na ADI n. 1.371-8-DF, Relator Ministro Néri da Silveira (DJ. 3.10.2003), por exemplo, aplicou-se essa técnica, para estabelecer “única exegese constitucionalmente possível” ao art. 237, V, da Lei Complementar n. 75/1993, fora da qual, portanto, a norma seria(á) reputada inconstitucional.
Em se tratando especificamente de normas [constitucionais] ambientais, destaque-se a linha de abordagem desenvolvida pelo Ministro Relator Luiz Fux, na ADC 42/DF (conexa às ADIs 4.901, 4.902, 4.903 e 4.37, todas versando sobre preceitos do Código Florestal), segundo a qual, diante de normas polissêmicas “cabe ao STF selecionar a interpretação que melhor maximize a eficácia das normas constitucionais”.
Destacou-se no voto do relator, no ponto atinente ao art. 4º, IV, do Código Florestal, que:
“Entre [..] duas leituras possíveis […] para a interpretação do artigo 4º, inciso IV, da Lei 12.651/2017, certamente aquela de caráter mais protetivo tem maior efeito de maximização da eficácia das normas constitucionais de natureza ambiental, sem que, para tanto, outros interesses igualmente protegidos – tais como a liberdade econômica – sejam sobremaneira prejudicados”.
Com essas considerações, pontuo, em caráter derradeiro, como limite de possibilidade de interpretação e aplicação das disposições da Lei 14.285/2021, que, numa interpretação conforme a Constituição, eventual definição de faixas marginais de qualquer curso d’água (APP) distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput, do art. 4º do Código Florestal, deve observar obrigatoriamente os patamares mínimos ali fixados, respeitando-se, dessa forma, o disposto no art. 24, § 1º, CF, que confere caráter de generalidade e vinculação ao comando editado pela União. Seja como for, faz-se necessário, urgente e oportuno deflagrar o exercício da jurisdição constitucional.
[1] FERRARI: Regina Maria Macedo Nery: Elementos de Direito Municipal. São Paulo: RT, pág. 80.
[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo: “Competência concorrente limitada: o problema da conceituação das normas gerais”. Revista de Informação Legislativa, ano 25, n° 100, out./dez.1988. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, 1988, págs. 155/156.
[3] BARROSO, Luís Roberto, in Direito Ambiental Comparado. DAIBERT, Arlindo (Org.). Belo Horizonte: Fórum, pág. 113.
[4] DINO, Nicolao. Acórdão nas ADIs nºs 4.901, 4.902, 4.903, 4.937 e na ADC nº 42 (Código Florestal): comentários ao voto-vista da Ministra Cármen Lúcia. In BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcelos e; FREITAS, Vladimir Passos de; SOARES JÚNIOR, Jarbas (Coord.). Comentários aos acórdãos ambientais paradigmas do Supremo Tribunal Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 426.
[5] BENJAMIN, Antônio Herman. Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental. In: COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE. O Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental. Brasília-DF: Senado Federal, 2012. p. 64.
[6] cf. ADI n. 2.797-ED, Redator do acórdão Ministro Ayres Britto, j. 16.5.2012; ADI n. 3.601-ED, Rel. Ministro Dias Toffoli, j. 9.9.2010.
[7] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 194.
[8] Nesse sentido, assinala Jorge Miranda: “A interpretação conforme à Constituição não consiste então tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito o que seja mais conforme com a Constituição quanto em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, embora não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei ” (MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 3ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p. 264). Na mesma linha, destaque-se, na doutrina brasileira, SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2002. pp. 208/209.