João Vitor Silva

Acaba de ser publicada a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp208.htm">Lei Complementar 208/2024</a>, que permite a cessão de créditos tributários e não tributários pelo Poder Público. Em meio a outros aspectos, a referida Lei Complementar introduziu o seguinte preceito na Lei 4.320/64: “A cessão de direitos creditórios de que trata este artigo poderá ser realizada por intermédio de sociedade de propósito específico, criada para esse fim pelo ente cedente, dispensada, nessa hipótese, a licitação” (art. 39-A, §7º).
Embora a novidade legislativa seja mais ligada ao Direito Financeiro e ao Direito Tributário, ela também nos convida a refletir sobre um tema de extrema relevante do Direito Administrativo: as licitações, e, mais especificamente, as situações em que ela pode – ou deve – ser afastada. Nesse particular, surge a pergunta que inspira o presente texto: como interpretar a expressão “dispensada, nessa hipótese, a licitação”?
Como se sabe, o art. 37, XXI, CF/88 exige que as obras, os serviços, as compras e as alienações da Administração Pública sejam precedidas de licitação<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Nada obstante, o próprio dispositivo prevê que a legislação ordinária – in casu, legislação ordinária da União (art. 22, XXVIII, da CF/88)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> – pode afastar a regra licitatória em casos específicos. São os casos de contratação direta, que, consoante entendimento tradicional, subdividem-se em duas modalidades: (i) inexigibilidade e (ii) dispensa.
De um lado, a inexigibilidade de licitação se caracteriza pela inviabilidade de competição para a escolha do contratado<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O grande exemplo é a contratação de artistas renomados para shows, em relação aos quais não há critério objetivo de seleção (art. 74, II, da Lei nº 14.133/21).
De outro lado, a dispensa de licitação ocorre quando a competição é viável, mas, por decisão do legislador, a Administração Pública pode decidir não licitar<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. É o caso, v.g., das contratações envolvendo baixos valores (art. 75, I e II, da Lei nº 14.133/21). Enquanto as hipóteses legais de inexigibilidade são exemplificativas, as hipóteses legais de dispensa são taxativas<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Com base nesse binômio inexigibilidade-dispensa, o próprio texto do art. 39-A, §7º, da Lei 4.320/64 sugere que a contratação de sociedade de propósito específico, para cessão de créditos tributários ou não tributários, traduz hipótese de dispensa de licitação. Consequentemente, caberia à Administração Pública decidir, em cada caso, de forma discricionária, se fará ou não procedimento licitatório para tal fim.
Sem dúvidas, trata-se de interpretação plausível. Todavia, pode-se cogitar de uma terceira modalidade de contratação direta aplicável ao art. 39-A, §7º, da Lei 4.320/64: a licitação dispensada, também chamada de licitação proibida<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Em síntese, tal figura identifica a situação em que a competição é possível, mas, por decisão prévia do legislador, a Administração Pública não pode licitar<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Ao contrário do que ocorre na dispensa de licitação, a lei suprime qualquer margem de discricionariedade do gestor<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Note-se que a diferença não é apenas teórica, mas prática. Sendo hipótese de dispensa de licitação, os gestores precisam motivar o afastamento do certame em cada caso concreto e respondem por vícios nessa motivação. Já sendo hipótese de licitação dispensada, a escolha ex ante do legislador afasta tal dever e mitiga o risco de responsabilização.
Na atual quadra de hipercontrole público<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, em que gestores fazem licitações impertinentes só para escapar desse risco, a licitação dispensada pode evitar o desperdício de recursos públicos em processos inócuos, de modo a prestigiar os princípios constitucionais da eficiência e da economicidade (art. 37, caput, e art. 70, caput, da CF/88).
Pois bem: o debate está em aberto e só o tempo definirá a interpretação do novo art. 39-A, §7º, da Lei 4.320/64. Seja como for, uma coisa é certa: apesar da desconfiança que alguns autores têm em relação à licitação dispensada, o momento parece propício para abandonar antigos preconceitos e adotar um olhar mais pragmático sobre o tema das contratações públicas.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Em que pese a Constituição não fornecer um conceito normativo de licitação, há substancial consenso de que ela identifica “um procedimento administrativo destinado a permitir a competição entre os interessados em contratar com a Administração Pública, disciplinado por lei e por um ato administrativo prévio (edital), que estabelecem critérios objetivos para a seleção da proposta mais vantajosa e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, com observância do princípio da isonomia” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. p. 241).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> O art. 22, XXVIII, da CF/88 prevê que a União tem competência privativa para legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação pública”. Por mais que a definição de “normas gerais” suscite várias controvérsias, o STF já decidiu que, em matéria de licitações, ela abrange a definição das hipóteses de contratação direta. A título de exemplo:  AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL. ARTIGO 34, VII DA LEI ESTADUAL PARANAENSE N. 15608/2007. LICITAÇÃO E CONTRATAÇÃO. NORMAS GERAIS. HIPÓTESE INOVADORA DE DISPENSA DE LICITAÇÃO. INVASÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MODULAÇÃO DOS EFEITOS. (..). 3. Usurpa a competência da União para legislar sobre normais gerais de licitação norma estadual que prevê ser dispensável o procedimento licitatório para aquisição por pessoa jurídica de direito interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública, e que tenha sido criado especificamente para este fim específico, sem a limitação temporal estabelecida pela Lei 8.666/1993 para essa hipótese de dispensa de licitação. (...) (STF. ADI 4.658/PR. Tribunal Pleno. rel. Min. Edson Fachin. Data de julgamento: 25/10/19. Data de publicação do acórdão: 11/11/19).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Essa inviabilidade pode ser tanto fática quanto jurídica. A inviabilidade fática ocorre por ausência de pluralidade de alternativas ou de mercado concorrencial, por exemplo. Já a inviabilidade jurídica se dá, v.g., pela impossibilidade de julgamento objetivo das propostas ou pela ausência de definição objetiva da prestação. Nesse sentido, cf. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. p. 281.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 23. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2023. p. 207.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e contrato administrativo. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2024. p. 262.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 37. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2024. p. 448.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> FURTADO, Lucas Rocha. Curso de licitações e contratos administrativos. 7. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 146.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> PEREIRA, JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à le de licitações e contratações da administração pública. 8. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 215.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Sobre a cultura do hipercontrole da Administração Pública no Brasil, cf. MENDONÇA, José Vicente Santos de. Art. 21 da LINDB - Indicando consequências e regularizando atos e negócios. In: Revista De Direito Administrativo, 43–61. Disponível em: &lt;<a href="https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/77649">https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/77649</a>&gt;. Data de acesso: 07/07/24.

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JOTA

Momento parece propício para abandonar antigos preconceitos e adotar olhar mais pragmático sobre contratações públicas

LC 208 e cessão de créditos públicos: dispensa de licitação ou licitação dispensada?

Momento parece propício para abandonar antigos preconceitos e adotar olhar mais pragmático sobre contratações públicas na LC 208