Janaína Penalva

Ela disse: “The Lord rules my life”.
Em junho, a Suprema Corte americana definiu a constitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nas últimas semanas, ganhou manchete a notícia de que essa decisão foi desafiada por uma funcionária de um Estado americano que se recusou a emitir licenças de casamento a casais de pessoas do mesmo sexo. A funcionária, Kim Davis, justificou sua decisão afirmando que atuava por um mandamento divino.
Embora esse seja o caso mais recente divulgado pela mídia internacional, há muitos outros: o dono da confeitaria nos EUA que se negou a fazer um bolo para uma celebração de um casamento gay, um prefeito na França que se recusou a realizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo por razões religiosas, casamentos coletivos no Brasil que segregam por orientação sexual, dentre inúmeros outros registros de discriminação.
Esses episódios nos instigam a perguntar: é constitucional desobedecer ao direito por razões de cunho religioso? É possível substituir a concepção pública, estatal de justiça, ou seja, a lei, por uma concepção privada? O que fazer quando cumprir a lei desencadeia um conflito moral no indivíduo?
O tema é a objeção de consciência. Uma questão ética e também jurídica que nos convoca a pensar sobre quando um cidadão pode resistir à autoridade do Estado por considerar a lei injusta.
O que acaba de acontecer nos EUA em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo é notícia velha no campo dos direitos sexuais e reprodutivos e na discussão sobre o direito à vida. A objeção de consciência por razões religiosas é um dos principais obstáculos que países enfrentam ao legalizar o aborto ou estender esse direito a novas situações. Médicos e profissionais de saúde resistem aos direitos das mulheres, esvaziando a força normativa de leis que legalizaram o aborto ao se negarem a realizar o procedimento.
A Suprema Corte da Colômbia enfrenta o tema da objeção de consciência em alguns setores. Esse ano, foi instada a fazer valer decisão anterior que julgou constitucional a eutanásia. Como a quantidade de médicos que se negavam a realizar a eutanásia ameaçava a efetividade do direito, a Corte determinou que o Ministério da Saúde tomasse providências para garantir aos cidadãos colombianos o direito a uma morte digna. O Ministério da Saúde colombiano editou então portaria regulamentando a objeção de consciência no âmbito da saúde.
Na Espanha, a Corte Constitucional julgou caso interessante também em 2015. Um farmacêutico sevilhano sustentava seu direito de não vender pílulas do dia seguinte e preservativos. A Corte decidiu a seu favor no que tange à pílula do dia seguinte, recusando o pleito apenas no que tange à venda de preservativos. A Corte Constitucional espanhola já havia se pronunciado sobre o tema da objeção de consciência em relação ao aborto e fez um paralelo no julgamento desse caso. O Tribunal reconhece o direito de médicos e farmacêuticos à objeção de consciência, estabelecendo limites para o exercício desse direito.
Há algo muito revelador na análise dos casos concretos sobre a recusa em cumprir obrigações sob a justificativa de mandamentos religiosos: parece que apenas onde há minorias, há espaço para se questionar a justiça da lei.
A proteção da integridade moral do indivíduo é dever do Estado, assim como a proteção do pluralismo e a garantia de que todas as pessoas recebam a mesma consideração e respeito. Nesse processo, há o que chamaremos “agentes de materialização”, agentes do Estado que, dependendo das formas de organização institucional, podem fazer com que leis ou decisões judiciais simplesmente desapareçam. Conforme os poderes que detiverem e os níveis de controle que sofrerem, esses agentes podem esvaziar as conquistas de direitos. Esses “agentes de materialização” são os realizadores do poder administrativo do Estado: o poder de polícia, o poder regulamentar, o poder disciplinar.
Nas últimas duas grandes decisões do STF sobre igualdade de gênero, a anencefalia e a união civil de pessoas do mesmo sexo, os médicos do SUS e os oficiais de registro são os “agentes de materialização” dessas decisões. Ao se recusarem a registrar um casamento de pessoas do mesmo sexo ou realizar o aborto legal no caso de anencefalia, estupro ou risco de morte da mulher esses agentes terminam por sequestrar a soberania popular e a própria constituição, em um movimento autoritário e impeditivo da igualdade.
É preciso então permanecer em posição de vigilância em relação à lei. Vigilância não é desconfiança. Mesmo cientes que o direito é uma estrutura de poder sexuada e generificada, ainda não temos outra forma de regular nossas relações. Como ensina J. Habermas, a forma do direito é hoje indisponível. Não temos outra maneira de regular a sociedade, portanto, precisaremos de definições gerais e abstratas, protegidas pela coerção estatal, mas construídas democraticamente e sempre passíveis de revisão.
Assim, é imperioso termos legislações contra o feminicício, a homofobia, a transfobia, a misoginia, o racismo, etc. Assim como é igualmente imperioso revogar leis violentas, a exemplo do que tentamos fazer agora com a lei de drogas. De toda sorte, leis ou decisões judiciais boas não garantem nada se não seguirmos vigilantes.
Se a polícia se recusar a registrar a violência doméstica por compreenderem que a subordinação das mulheres é bíblica, a Lei Maria da Penha será apenas uma homenagem, se os médicos se recusarem a realizar o aborto no caso de anencefalia, por entenderem que a vida começa na concepção, a decisão do STF na ADPF 54 terá sido uma farsa, se os oficiais de registro renovarem as definições democráticas sobre a igualdade de gênero, decidindo qual casamento eles querem registrar, teremos um sistema em que os “agentes de materialização” têm poderes para recusar a transformação que as leis impõem. Eles serão então os verdadeiros soberanos.
No tema dos direitos sexuais e reprodutivos, é preciso vigiar a laicidade do Estado. Garantir a liberdade de consciência e de crença também é proteger os direitos fundamentais, mas o exercício dessa liberdade tem limites na igualdade. A objeção de consciência não pode ser um refúgio para a discriminação e a violação de direitos.
Não podemos pactuar com o cinismo dessa discussão. Não há um problema posto em abstrato, o tema é a legalidade da objeção de consciência por razões religiosas em face de populações dispensáveis, disponíveis, silenciadas, oprimidas. Não está em discussão se os anarquistas estão dispensados de recolher os impostos. Está em discussão se mulheres podem abortar, se a população LGBT pode se casar, se quem quer morrer pode dispor do direito à vida.
O Estado não existe, o que existe são seus agentes. Se seus agentes têm como dever de ofício materializar as leis e decisões estatais, eles não podem substituir essas definições públicas por suas concepções de ética privada. Isso, evidentemente, vale para um Estado constitucional, para uma comunidade política que respeita a democracia e protege os direitos fundamentais. Excluímos, assim, o dever de obediência a estados totalitários e violentos.
A Constituição está em constante disputa, mas essa disputa se dá sob as condições definidas pela própria Constituição. O exercício da função pública – de registrar o casamento, de realizar o aborto legal, a eutanásia, de vender preservativos etc – não é um espaço de debates, discussão e construção de consensos. Isso se faz no exercício da representação e da participação. Também as ações judiciais (re)constroem o direito no nível individual. E são esses os espaços de discussão sobre o que é o direito. O exercício da função pública não é arena de disputa de direitos.
Todavia, a questão é mais complexa que parece, afinal, o direito só existe ali onde se materializa. Todos os membros de uma comunidade política definem o que é a Constituição, formam difusamente suas concepções sobre o que são os direitos. Ocorre que os agentes públicos estão em uma posição especial, são mais poderosos que os demais cidadãos porque agem em nome do Estado. Por isso, é preciso redobrar a vigilância.
Mas, afinal, por que Kim Davis não pode se negar a cumprir a lei por temor a Deus?
Porque suas razões não estão na Constituição, estão fora dela: na religião. Liberdade religiosa tem muitos limites em um Estado laico e o principal limite é a igualdade. Kim Davis não é livre para discriminar, não é livre para decidir quem pode se casar. Deus pode governá­la, mas não em assuntos públicos.
O direito constitucionalmente assegurado à liberdade religiosa deve ser interpretado de forma que seu exercício se limite à esfera privada. Nesse sentido, eventual regulação da objeção de consciência deve ser feita tendo como princípio a garantia de que os direitos individuais não deixem de ser assegurados no caso concreto. Isso exigirá uma definição de quais profissionais podem acionar o instituto da objeção de consciência, em quais circunstâncias e quais são os deveres que a objeção de consciência criará ao objetor. Essa não deve ser uma possibilidade garantida a todos os profissionais, sob pena de se inviabilizar o sistema. É também indispensável que o profissional fique responsável por informar e garantir que o cidadão possa exercer seu direito com auxílio de outro agente do Estado, sem prejuízos de local ou tempo.
Assim, a regulação da objeção de consciência é tema que merece análise a partir do princípio da laicidade do estado. Em qualquer caso, o indispensável é que direitos não sejam violados em nome da religião daqueles agentes cuja função é materializar os deveres do poder público e não discriminar as pessoas.
<a href="https://www.jota.info/nao-existe-mais-casamento-gay-nos-eua-apenas-casamento-decide-suprema-corte">+JOTA: Não há mais casamento gay nos EUA. Apenas casamento, decide Suprema Corte</a>

Booking photo of Rowan County clerk Kim Davis provided by the Carter County Detention Center in Grayson

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JOTA

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